“Intensa nos meus sentimentos, alma livre e cigana, vivo e deixo viver...”
escreve a poetisa cigana, Cezarina Devos Macedo
http://cozinhadosvurdons.blogspot.com/2016/04/conversas-na-cozinha-dos-vurdons-eu.html
“Intensa nos meus sentimentos, alma livre e cigana, vivo e deixo viver...”
escreve a poetisa cigana, Cezarina Devos Macedo
http://cozinhadosvurdons.blogspot.com/2016/04/conversas-na-cozinha-dos-vurdons-eu.html
Nos últimos tempos tenho pensado nas pessoas sensíveis, com uma sensibilidade artística, que viveram perto de ambientes de Cultura - e que teriam tantas coisas a dizer sobre a própria vida, sobre as leituras, sobre o que viveram, pensaram e sentiram. Gente que ficou silenciosa e nunca escreveu.
Lembro pessoas que me foram próximas, a minha mãe por exemplo, uma leitora extraordinária, que amava o piano e o tocava de modo excelente segundo dizia um dos seus professores no Conservatório cujo nome (evidentemente) não recordo.
A Primavera despertava-a para o piano. Ela revivia, saía de uma forma de letargo, e todos os dias nos despertava para a beleza da música e dos livros. Ela e o meu pai. Lia muito a minha mãe. Um canto numa das estantes era reservado para os livros dela.
Gostava de Georges Sand, de Jane Austen e de Sigrid Undset. Tenho ainda os três volumes do romance “Christina Lavransdatter” que herdei dela. Adorava todo o Charles Dickens, sobretudo este livro que ainda tenho, "Pickwick's Club", na tradução portuguesa da maravilhosa "Edição Romano Torres".
Lia também escritores brasileiros Ligya Fagundes Teles, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José de Alencar. Lembro-me de ouvir a minha mãe rir com o desfecho do livro "A pata da gazela". Guardei - recordação dela- dois livrinhos com as lendas tupi-guaranis, "Ubirajara" (o Senhor da lança) e "Iracema" (Lábios de mel).
Às vezes falava de Anton Tchekhov que muito admirava, fascinava-o a sua simplicidade e profundidade. Sim, "Tchekhov, escritor e médico" e encolhia os ombros numa desculpa e, com um ar tímido, dizia: “mas hoje em dia há muita coisa para se estudar, tudo evolui a uma tal velocidade. No tempo do Tchekhov não era assim.”
Depois da Revolução dos Cravos, a do 25 de Abril, o meu pai começou a publicar, numa espécie de folhetins a sua história -que intitulara: “Evocação das Raízes”. Pouco tempo durou a publicação - um dia contarei com vagar o porquê dessa sua desistência.
Marcou-nos muito o nosso pai, como é natural um pai marcar. A minha irmã Mamé que viveu mais anos próxima dos pais -porque nós as outras irmãs casámos muito cedo - ouvia-o muito. Toda a sua vida foi marcada por ele.
Casou e foi viver para a Alemanha com o marido, médico. Amava o seu Alentejo, como todas nós. Vinham passar as férias de Verão a Portalegre e, assim, a conversa entre ela e o meu pai continuou.
Alguns anos depois do meu pai morrer, a minha irmã – que assina Maria Malzbender - escreveu uma curta lembrança: “No Alentejo – Uma Vida”, com fotografias de Adalrich Malzbender, seu marido.
Nesse livrinho fala de conversas com o pai e sinto que, no fundo, é a "promessa" de ser ela a "falar" por ele e a continuar as “evocações” que o meu pai não terminou. Talvez nessas lhe tenha pedido que as continuasse por ele.
O texto é curto mas fala dos longos diálogos em que foi sabendo mais particulares pouco falados da vida do nosso pai. Diz que, a dada altura, começou a escrever num caderno essas conversas com o meu pai. Com certeza, espero, terá apontado muita coisa - "conversas" que por aí hão-de aparecer um dia...
“Muitas vezes imagino que volto a estar com o meu pai e recordo com saudades as nossas conversas na minha casa na Alemanha, algumas delas muito pouco tempo antes de nos deixar para sempre. E muitas, aqui no campo, no meio da Serra.
Decidi um dia apontar num caderno tudo o que me contava da sua vida, pois senti que o meu pai gostava que eu conhecesse as suas histórias. Referia-se à sua infância com imensa emoção, nunca esquecendo a “sua gente”. Sempre com o seu imenso “protesto perante a indiferença dos outros.”
E mais adiante:
“O meu pai nasceu no Alentejo, no alto duma serra, numa casa pobre e tosca, ao lado dum pinhal bravo, que nas noites ventosas ‘ramalhava’ agonias.
Entre o céu e a terra. Terra dura, terra árida. Terra de cardos e carqueja. Havia apenas o vermelho de algumas papoilas e o amarelo de uma velha giesta. E uma pequena figueira perto da casa, que o alegrava se via nela um figo maduro.”
Continua: “O meu pai não parava de se interrogar, já adolescente, sobre o futuro que queria. Depois da escola, começou a trabalhar numa serralharia e pensava: “queria ser serralheiro mecânico? Aceitava esse destino ou queria ir mais longe, saltar da sua condição de camponês miserável e tentar perscrutar as alturas?”
Nos nossos diálogos o meu pai insistia muito na expressão: “a caminhada da vida, onde se devia procurar o Absoluto, o real invisível, a visão alta.”
Continua Maria Malzbender:
Às vezes dizia: “A fonte da verdadeira harmonia está naquilo em que nós acreditamos.” Ou, então: “O homem realiza-se por aquilo que faz, quer seja uma trabalho manual, intelectual ou criador, onde aí a sua individualidade se forma e a consciência de si próprio. (...)
Todos nós somos responsáveis e nos devemos uns aos outros, numa vida horizontal, de ajuda mútua”, afirmava sempre insubmisso, sempre à procura de “uma quimera invisível”. Eram estas as suas palavras.
(Impressiona-me a leitura. Quantas vezes ouvi ao meu pai estas conversas, este seu desejo de absoluto, a visão clara mas complexa das coisas, a visão poliédrica, palavra muito importante para ele. Tive pena de não ter conversado mais com ele, mas havia entre os dois uma forma de entendimento no silêncio. Eu tornara-me numa pessoa silenciosa e tímida. Mas era tão bom ficar sentada ao pé dele a olharmos para as mesmas coisas.)
Pego agora no outro livro de Maria Malzbender - o que recebi ontem. O livro intitula-se “Como nuvem ou pássaro” e nele é a poesia que sobressai.
Começa com uma “Carta para Eugénio de Andrade”. O poeta Eugénio de Andrade que conheceu ainda nova, era um poeta que amava desde a sua adolescência. Um dia foi procurá-lo. O poeta gostava de a ouvir e, suponho, sentia amizade por ela. Teve uma longa correspondência com o poeta. Fala aqui desse encontro.
“Gostaria de voltar a ligar para sua casa...mas o poeta partiu
e a sua viagem é longa. Sei que não nos encontraremos nunca mais. Escrever-lhe? Sim, escrevo muito
Também sei que, nesse mundo onde está agora, não me pode responder, e assim guardo as minhas cartas por dispersas em todas aquelas ilhas dispersas, onde estou a sós comigo.
Nelas me encontro de novo naquela tarde de Abril, a conversar consigo em sua casa, as palmeiras e o rio ali ao lado e eu trémula de timidez pelo seu inesperado convite, a olhar as rendilhadas de luz que espreitavam pela janela e logo desciam na parede branca como fios de prata, na sua secretária de mármore, na sua voz suave...
Escrevera o poeta: “Gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo no Verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio. Palavras que cheiram a vento e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol...”.
E eu falava do que gostava, da frescura dos verdes diferentes do meu velho jardim, do pequeno lago com nenúfares, das trepadeiras a embaraçar-me nos caminhos, do cheiro a erva molhada e dos cachos azuis da glicínia...
Foi o Alentejo que talvez me tenha aberto a sua porta, o fascínio do poeta pela alvura de cal, pela luz, pelos campos pasmados, pela nobreza da terra agreste e os horizontes rasos.
E foi, através dessa porta, que eu tentei caminhar para o que me liberta e é singelo e solto, e que como o vento nos leva, a gostar de ser nuvem ou pássaro...
Seria bom ser nuvem ou pássaro.
Depois desta espécie de “Introdução”, de que citei algumas passagens, seguem-se quatro poemas e um texto em prosa. Como no girar de um carrossel imparável, voltam as recordações de infância e a marca profunda que deixaram na autora.
“A despedida da mãe” é uma ode de ternura pela nossa mãe e é dedicada aos filhos, Miguel e Manuel;
No poema “Naquele jardim Julho 2013” é a imagem do pai que perpassa, num dia de Verão, muito anos depois da sua morte noutro Verão, em Agosto.
O poema é dedicado ao neto mais velho, Lucas.
No poema seguinte, “Simplesmente
usar o coração”, refere a importância da lição do pai, do seu amor pelas coisas simples da natureza como as florzinhas sem nome que encontrava nos seus passeios pelos campos - e tantas coisas mais.
as madressilvas
“Ela recorda o pai,/recordá-lo/é ter um tecto,/uma ilha, /um farol,/é reviver o afecto, /o amor,/a confiança,/é ser cúmplice da verdade,/ e do respeito,/é recusar o ódio,/a intolerância,/a violência.”
Não tem dedicatória – será com certeza para todos os que conheceram o "pai".
“O quarto das bonecas” é outra recordação: o quarto cujas paredes a nossa mãe pintou com bonecos.
Pintou as paredes brancas com desenhos feitos a caneta de feltro, de cores diferentes, com uma imaginação e uma delicadeza extraordinárias.
Durante anos e anos aquelas paredes me emocionaram sempre também. No fundo é uma poesia em prosa e é dedicada à neta mais nova, a pequena Sara.
"os meninos"
“Lá estavam eles, os “meninos”, o sol enorme colado ao tecto, as flores de cores garridas, os pássaros, as joaninhas, as árvores com folhas muito abertas, as borboletas, os balões a voar, a menina suspensa no papagaio, feliz por estar tão perto do céu e das nuvens.”
"a menina suspensa no papagaio "
“E tu vieste” é o último poema e é dedicado ao marido, Adal Malzbender, com quem partilhou esta sua vida e que ilustrou os dois livros com fotografias.
Terminei a leitura dos dois livrinhos com o coração apertado, tantas são as recordações vividas com ela, minha irmã pequenina, tanta a amizade e as brincadeiras desde sempre. Digo só que foi uma alegria muito grande ter lido o que a minha irmã escreveu e ter aqui falado dela.
Maria Malzbender, há uns anos, em minha casa
***
(1) Os dois livrinhos são "edições de autor", criadas na "LOADING" tipografia/informática, de Portalegre. "Criadas" porque se trata de uma real "criação": as edições foram muito cuidadas, quase "com amor". Só em Portalegre, claro (estou a brincar...).
(2) Os "guaranis" formam o
maior povo nativo, em quantidade de indivíduos, vivendo no Brasil. Eles são
originários do tronco da família linguística tupi-guarani.
https://www.todamateria.com.br/cultura-tupi-guarani/