Bratislava
é uma cidade calma e bonita que o rio Danúbio atravessa. Vim passar uns tempos com a minha filha. Há muito
tempo que ela não vivia na Europa - e agora está tão perto de casa que vim estar com ela.
Ainda bem que vim - Bratislava e este Inverno a sério tornam-me mais "resistente".
Apanhar um frio de que já não me lembrava. O vento gelado, a
temperatura abaixo de zero – talvez tenham agudizado sensações adormecidas.
Vim
recobrar forças, chorar lágrimas retidas muito tempo, desabafar e ver a
neve cair, indiferente, detrás das vidraças da sala - surpreendida com a beleza que existe e que
ainda posso ver.
Querer voltar para trás não altera nada porque é
impossível - só voltamos através da memória e a memória traz amargura e dor de outras lembranças - e não podemos corrigir nada. E
há sempre uma sensação de culpa em tudo isto.
Esta
cidade tem um poder calmante sobre mim. Será a beleza das
casas e a altura das cúpulas de um verde azul-cobalto?
a Praça Hlavné
Ou a praça central, com o seu nome impossível de pronunciar, "Hlavné", e o soldado do exército napoleónico que se encosta ao banco e olha em frente. Perto fica a Embaixada de França. Napoleão terá tentado entrar na cidade em 1809.
Ao fundo, na ponta direita da Praça, existe outro soldado napoleónico, dentro da sua guarita. Talvez tivessem gostado e por aqui ficaram.
Será que o sentir-me só e não compreender nada do que se diz à minha volta – o que é uma forma de silêncio - me permita ir ao fundo de mim procurar algum alívio? Ou é o rio Danúbio, pacífico, com as águas acinzentadas do Inverno?
Sim, talvez o rio que espreita por todos os lados, como se me seguisse. Em todos os momentos diferente, conforme o céu, conforme as horas do dia mas sempre a passar suave e indiferente. E as suas margens atraentes, cheias de árvores, onde as pessoas se sentam no chão assim que o sol abre.
Há momentos nesta cidade que me fazem lembrar um pouco Trieste. No fundo há nas duas cidades uma atmosfera comum de mitteleuropa, de fim de época, que me agrada. Um mundo passado que se relaciona com o Império Austro-Húngaro a que ambas pertenceram.
Trieste e o Café Degli Specchi
Bratislava é uma cidade de belos Cafés como Trieste. Em Trieste acho que conheci mais cafés bonitos do que a média das pessoas conhecem numa vida - a começar pelo Café Degli Specchi, na Piazza dell' Unità d'Italia. Trieste e o Mollo Audace
É verdade que os Cafés me têm acompanhado ao longo da vida. Creio que existe uma “cultura
dos cafés" e eu preciso dela. Para mim sempre existiu - ainda me lembro de ver as
pessoas da minha cidade a lerem o jornal no Café Central que era do meu avô. E sentia-me bem naquele ambiente, tempos que são hoje uma névoa.
o Café Maximilian
Em Bratislava, os Cafés são sempre confortáveis - e o gelo da rua não passa cá para dentro. Os vidros embaciam e por vezes há uma falsa névoa que altera as imagens. Experimentei vários - até escolher um, o Café Maximilian.
Todos muito diferentes. Uns - como o histórico Café-Restaurante Konditorei - com ricas decorações quase em estilo “rococó”.
Tem mesas com tampos de mármore,
frescos nas paredes - imitações de frescos renascentistas autênticos - cujos temas se referem à grandeza da cidade de Bratislava.
Olhava-o de fora ao passar - porque tocavam música francesa. Ouvi várias vezes o Georges Moustaki e a canção Le Métèque. Então passava muito devagarinho em frente do café para poder ouvir a canção toda.
Gostava também de espreitar lá para dentro através dos vidros da janela grande.
As imagens das pessoas, desfocadas pelos vidros do café, criavam um jogo de formas e de luzes interessante. Uma vez um jovem casal fez-me um "adeus" lá de dentro e riram-se para mim.
Espreitava mas acabava sempre por não entrar. Ontem foi a primeira vez que tive coragem de entrar no Café Konditorei. Uma pastelaria famosa explicaram-me depois.
Pedi um expresso italiano e
um struddel, um bolo com recheio de maçã que já comera em Viena e
em Trieste.
Não tocaram o Moustaki. Puseram uma canção de Georges Brassens, “Je me suis fait tout petit devant une poupée” que me fez reviver outros tempos. Tive pena porque no fundo ia à espera de ouvir Le métèque.
O Café está decorado com uma profusão de objectos belos, de riqueza. Os frescos - imitação de frescos renascentistas - contam histórias que se referem à grandeza de Bratislava. Talvez por tão excessivos pelas imagens e pelas cores, a decoração abafava-me.
Mas encantava-me, sim, o candeeiro do tecto - uma figura que voava com um candeeiro na mão.
Bratislava é uma cidade de cafés! e posso dizer que grande parte deles - e os mais bonitos - ficam na Praça Hlavné.
O meu preferido é o Café
Maximilian, aquele onde vou quase todas as tardes desde que cheguei a Bratislava. Tem uma vista muito aberta para a pequena Praça
central. Escolho sempre a mesma mesa encostada à janela com vista para a Praça Hlavné.
A Praça Hlavné
A Praça Hlavné é talvez uma das mais vivas, muito bem desenhada. É aqui que todos os anos se realiza uma Feira do Natal. Era a
praça onde me sentia melhor. A Hlavné Námestie -seu nome em eslovaco - existia desde o século XIII
e esteve desde sempre no centro da vida social da cidade.
Era de facto naquele
lugar que se realizava sempre uma feira de Natal que ao chegar ainda vi.
Tem
edifícios com uma arquitectura muito bela e variada. Ali fica a Prefeitura da Cidade
Velha. Do meu novo Café vejo-a e também mesmo ao lado a Igreja do Santo Salvador.
Mas da minha janela habitual eu gostava era da fonte Maximilian,
com uma bela bacia de pedra e um pedestal onde se empoleirava o Imperador Maximiliano.
Nas ruas em redor há muitos outros cafés, mais populares, outros muito modernos onde havia famílias com filhos pequenos a lanchar
e a falarem muito. Penso que os eslovacos são comunicativos entre si mas reservados
com os estrangeiros.O Café Maximilian, era um café extraordinário. Pensava sempre que ia entrar noutro mundo, noutro século, e sentia-me bem. Quando
me sentava - sempre no mesmo lugar - olhava para fora e via o mundo tal
como é, o nosso mundo de hoje - e esse contraste divertia-me. Era bonito o meu café, em estilo Liberty e Art Nouveau, com janelas de
vitrais e uma escada de caracol que leva ao andar de cima. Quando, por vezes, estava vazio podia continuar com o meu sonho - mas quando estava cheio e o sonho "de outro tempo" desfazia-se.
Da janela vejo
passar as meninas que saem da escola com barretes de lã de cores vivas, de mãos
dadas com as mães.
A
verdade é que, na tranquilidade de Bratislava, passeando pelas ruas,
vendo a parte cultural antiga - ia sentindo também a vivacidade da
cultura da cidade.
Ao fundo, o portão de São Miguel~
Com muitas livrarias boas, livrarias antiquárias, exposições, cinemas. E a arquitecura leve, com o portão de São Miguel ao fundo da Venturska. Passa-se, abrindo caminho para o velho bairro medieval - onde foi o bairro judeu - hoje destruido e completamente desaparecido.
Antigas farmácias históricas são hoje museus pouco visitados. A cidade ficou vazia dos seus judeus que, na maioria, foram parar aos campos de concentração ali por perto. Mas um dia falarei mais disto.
A verdade é que começava pouco a pouco a afastar imagens que me perseguiam ao chegar a Bratislava. Na margem do Rio Danúbio.
E decidi ler o livro de Claudio Magris, "Danubio" (1). Encontrei-o na Biblioteca da minha filha e foi aí que voltei a pegar o livro que lera há tantos anos em Roma. Um livro que falava da cidade onde me encontrava de passagem. Porque Bratislava é uma das cidades que ficam à beira do Danúbio. No fundo o rio Danúbio percorre grande parte da Europa Central - que abrange muitos países, muitas culturas - e Magris é um guia e um companheiro de viagem extraordinário, porque "sabe" explicar muitas das riquezas culturais que o percurso do rio abrange.
Magris - nesta sua “viagem sentimental” ao longo do rio Danúbio - o rio mais comprido da Europa que a atravessa e vai desaguar no Mar Negro. O rio que passa pelo maior número de países!No
livro, Magris conta coisas desconhecidas sobre as origens do rio, os lugares, as cidades - e
escritores ou poetas ou músicos que viveram nesta região, ou os que sobre ela escreveram. Assim, aprendo.
Um rio cheio de cultura - dele falam os escritores, historiadores, filósofos da Antiguidade romanos e gregos, medievais, renascentistas e por aí adiante até aos dias de hoje. Holderlin,
A verdade é que eu própria me senti renovar, redescobri a leitura – gosto que
havia perdido – talvez pela dificuldade de concentração dos últimos tempos
Vou ao café, sento-me sempre na mesma mesa, olho para a rua e vou
pensando. O rio cerca-me. As pontes, as margens, os barcos, a vista do alto do Castelo. Suavemente, sem pressa, o tempo vai passando. Dizem que o tempo cura. Vou
ficando por estes lugares mais uns dias. Depois deste meu longo silêncio, voltarei daqui a uns dias para contar mais coisas.
(1)Claudio
Magris nasceu em Trieste em 10 de Abril de 1938. Escritor, crítico, é um germanista italiano. Professor de Literatura Alemã, na Universidade de Turim até 1978 e,
depois disso, na Universidade de Trieste. Onde ainda vive.
Que bom que está de volta ao blogue!
ResponderEliminarAdorei ler sobre a sua viagem e gostei muito das fotos.
A sua escrita é sempre cativante.
Saudades!
Beijinhos 😊😊😊
Belo post para regressar aqui depois de um longo silêncio! Os cafés são mágicos, desde o mais sofisticado ao mais simples e recolhido, sempre que seja "o teu café", esse lugar onde se volta sempre, com alguém para conversar sobre tudo e nada, do mais tristes ao mais divertido. Eu sou muito de cafés em "tête à tête", com boas vistas (sempre) e um cigarrito quando era mais nova. Também nos aquece uma certa complicidade com quem nos serve e trata pelo nome. Enfim.
ResponderEliminarGostei de comprovar que continuas sensível e com a capacidade de entusiamo de sempre, sem dúvida que Bratislava foi um revulsivo de que andavas a precisar. Tens de lá voltar, desta vez com calor, para saborear o contraste. Mas que bonita é a neve, vê-la cair detrás dos vidros, "indiferente, e surprendida com a beleza que existe"...
Beijinhos
Sempre a observar, querida María. Sei que queres que eu me aguente, eu si, e estou a fazer o possível...Beijinhos
EliminarGostei muito ler da sua primeira impressão da cidade onde também moro. Bratislava é relativamente pequena talvez agora chegando à uns 700000 habitantes depende da fonte da informação que se lê. A comunidade lusófona está também aumentando com muito bom apoio da sua filha como Embaixadora de Portugal aqui.
ResponderEliminarMuito obrigada pelo seu comentário e pela sua delicadeza ao falar da minha filha. Espero conhecê-lo na minha próxima visita. Abraço
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