Nos últimos tempos tenho pensado nas pessoas sensíveis, com uma sensibilidade artística, que viveram perto de ambientes de Cultura - e que teriam tantas coisas a dizer sobre a própria vida, sobre as leituras, sobre o que viveram, pensaram e sentiram. Gente que ficou silenciosa e nunca escreveu.
Lembro pessoas que me foram próximas, a minha mãe por exemplo, uma leitora extraordinária, que amava o piano e o tocava de modo excelente segundo dizia um dos seus professores no Conservatório cujo nome (evidentemente) não recordo.
A Primavera despertava-a para o piano. Ela revivia, saía de uma forma de letargo, e todos os dias nos despertava para a beleza da música e dos livros. Ela e o meu pai. Lia muito a minha mãe. Um canto numa das estantes era reservado para os livros dela.
Gostava de Georges Sand, de Jane Austen e de Sigrid Undset. Tenho ainda os três volumes do romance “Christina Lavransdatter” que herdei dela. Adorava todo o Charles Dickens, sobretudo este livro que ainda tenho, "Pickwick's Club", na tradução portuguesa da maravilhosa "Edição Romano Torres".
Lia também escritores brasileiros Ligya Fagundes Teles, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José de Alencar. Lembro-me de ouvir a minha mãe rir com o desfecho do livro "A pata da gazela". Guardei - recordação dela- dois livrinhos com as lendas tupi-guaranis, "Ubirajara" (o Senhor da lança) e "Iracema" (Lábios de mel).
Às vezes falava de Anton Tchekhov que muito admirava, fascinava-o a sua simplicidade e profundidade. Sim, "Tchekhov, escritor e médico" e encolhia os ombros numa desculpa e, com um ar tímido, dizia: “mas hoje em dia há muita coisa para se estudar, tudo evolui a uma tal velocidade. No tempo do Tchekhov não era assim.”
Depois da Revolução dos Cravos, a do 25 de Abril, o meu pai começou a publicar, numa espécie de folhetins a sua história -que intitulara: “Evocação das Raízes”. Pouco tempo durou a publicação - um dia contarei com vagar o porquê dessa sua desistência.
Marcou-nos muito o nosso pai, como é natural um pai marcar. A minha irmã Mamé que viveu mais anos próxima dos pais -porque nós as outras irmãs casámos muito cedo - ouvia-o muito. Toda a sua vida foi marcada por ele.
Casou e foi viver para a Alemanha com o marido, médico. Amava o seu Alentejo, como todas nós. Vinham passar as férias de Verão a Portalegre e, assim, a conversa entre ela e o meu pai continuou.
Alguns anos depois do meu pai morrer, a minha irmã – que assina Maria Malzbender - escreveu uma curta lembrança: “No Alentejo – Uma Vida”, com fotografias de Adalrich Malzbender, seu marido.
Nesse livrinho fala de conversas com o pai e sinto que, no fundo, é a "promessa" de ser ela a "falar" por ele e a continuar as “evocações” que o meu pai não terminou. Talvez nessas lhe tenha pedido que as continuasse por ele.
O texto é curto mas fala dos longos diálogos em que foi sabendo mais particulares pouco falados da vida do nosso pai. Diz que, a dada altura, começou a escrever num caderno essas conversas com o meu pai. Com certeza, espero, terá apontado muita coisa - "conversas" que por aí hão-de aparecer um dia...
“Muitas vezes imagino que volto a estar com o meu pai e recordo com saudades as nossas conversas na minha casa na Alemanha, algumas delas muito pouco tempo antes de nos deixar para sempre. E muitas, aqui no campo, no meio da Serra.
Decidi um dia apontar num caderno tudo o que me contava da sua vida, pois senti que o meu pai gostava que eu conhecesse as suas histórias. Referia-se à sua infância com imensa emoção, nunca esquecendo a “sua gente”. Sempre com o seu imenso “protesto perante a indiferença dos outros.”
E mais adiante:
“O meu pai nasceu no Alentejo, no alto duma serra, numa casa pobre e tosca, ao lado dum pinhal bravo, que nas noites ventosas ‘ramalhava’ agonias.
Entre o céu e a terra. Terra dura, terra árida. Terra de cardos e carqueja. Havia apenas o vermelho de algumas papoilas e o amarelo de uma velha giesta. E uma pequena figueira perto da casa, que o alegrava se via nela um figo maduro.”
Continua: “O meu pai não parava de se interrogar, já adolescente, sobre o futuro que queria. Depois da escola, começou a trabalhar numa serralharia e pensava: “queria ser serralheiro mecânico? Aceitava esse destino ou queria ir mais longe, saltar da sua condição de camponês miserável e tentar perscrutar as alturas?”
Nos nossos diálogos o meu pai insistia muito na expressão: “a caminhada da vida, onde se devia procurar o Absoluto, o real invisível, a visão alta.”
Continua Maria Malzbender:
Às vezes dizia: “A fonte da verdadeira harmonia está naquilo em que nós acreditamos.” Ou, então: “O homem realiza-se por aquilo que faz, quer seja uma trabalho manual, intelectual ou criador, onde aí a sua individualidade se forma e a consciência de si próprio. (...)
Todos nós somos responsáveis e nos devemos uns aos outros, numa vida horizontal, de ajuda mútua”, afirmava sempre insubmisso, sempre à procura de “uma quimera invisível”. Eram estas as suas palavras.
(Impressiona-me a leitura. Quantas vezes ouvi ao meu pai estas conversas, este seu desejo de absoluto, a visão clara mas complexa das coisas, a visão poliédrica, palavra muito importante para ele. Tive pena de não ter conversado mais com ele, mas havia entre os dois uma forma de entendimento no silêncio. Eu tornara-me numa pessoa silenciosa e tímida. Mas era tão bom ficar sentada ao pé dele a olharmos para as mesmas coisas.)
Pego agora no outro livro de Maria Malzbender - o que recebi ontem. O livro intitula-se “Como nuvem ou pássaro” e nele é a poesia que sobressai.
Começa com uma “Carta para Eugénio de Andrade”. O poeta Eugénio de Andrade que conheceu ainda nova, era um poeta que amava desde a sua adolescência. Um dia foi procurá-lo. O poeta gostava de a ouvir e, suponho, sentia amizade por ela. Teve uma longa correspondência com o poeta. Fala aqui desse encontro.
“Gostaria de voltar a ligar para sua casa...mas o poeta partiu
e a sua viagem é longa. Sei que não nos encontraremos nunca mais. Escrever-lhe? Sim, escrevo muito
Também sei que, nesse mundo onde está agora, não me pode responder, e assim guardo as minhas cartas por dispersas em todas aquelas ilhas dispersas, onde estou a sós comigo.
Nelas me encontro de novo naquela tarde de Abril, a conversar consigo em sua casa, as palmeiras e o rio ali ao lado e eu trémula de timidez pelo seu inesperado convite, a olhar as rendilhadas de luz que espreitavam pela janela e logo desciam na parede branca como fios de prata, na sua secretária de mármore, na sua voz suave...
Escrevera o poeta: “Gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo no Verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio. Palavras que cheiram a vento e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol...”.
E eu falava do que gostava, da frescura dos verdes diferentes do meu velho jardim, do pequeno lago com nenúfares, das trepadeiras a embaraçar-me nos caminhos, do cheiro a erva molhada e dos cachos azuis da glicínia...
Foi o Alentejo que talvez me tenha aberto a sua porta, o fascínio do poeta pela alvura de cal, pela luz, pelos campos pasmados, pela nobreza da terra agreste e os horizontes rasos.
E foi, através dessa porta, que eu tentei caminhar para o que me liberta e é singelo e solto, e que como o vento nos leva, a gostar de ser nuvem ou pássaro...
Seria bom ser nuvem ou pássaro.
Depois desta espécie de “Introdução”, de que citei algumas passagens, seguem-se quatro poemas e um texto em prosa. Como no girar de um carrossel imparável, voltam as recordações de infância e a marca profunda que deixaram na autora.
“A despedida da mãe” é uma ode de ternura pela nossa mãe e é dedicada aos filhos, Miguel e Manuel;
No poema “Naquele jardim Julho 2013” é a imagem do pai que perpassa, num dia de Verão, muito anos depois da sua morte noutro Verão, em Agosto.
O poema é dedicado ao neto mais velho, Lucas.
No poema seguinte, “Simplesmente
usar o coração”, refere a importância da lição do pai, do seu amor pelas coisas simples da natureza como as florzinhas sem nome que encontrava nos seus passeios pelos campos - e tantas coisas mais.
as madressilvas
“Ela recorda o pai,/recordá-lo/é ter um tecto,/uma ilha, /um farol,/é reviver o afecto, /o amor,/a confiança,/é ser cúmplice da verdade,/ e do respeito,/é recusar o ódio,/a intolerância,/a violência.”
Não tem dedicatória – será com certeza para todos os que conheceram o "pai".
“O quarto das bonecas” é outra recordação: o quarto cujas paredes a nossa mãe pintou com bonecos.
Pintou as paredes brancas com desenhos feitos a caneta de feltro, de cores diferentes, com uma imaginação e uma delicadeza extraordinárias.
Durante anos e anos aquelas paredes me emocionaram sempre também. No fundo é uma poesia em prosa e é dedicada à neta mais nova, a pequena Sara.
"os meninos"
“Lá estavam eles, os “meninos”, o sol enorme colado ao tecto, as flores de cores garridas, os pássaros, as joaninhas, as árvores com folhas muito abertas, as borboletas, os balões a voar, a menina suspensa no papagaio, feliz por estar tão perto do céu e das nuvens.”
"a menina suspensa no papagaio "
“E tu vieste” é o último poema e é dedicado ao marido, Adal Malzbender, com quem partilhou esta sua vida e que ilustrou os dois livros com fotografias.
Terminei a leitura dos dois livrinhos com o coração apertado, tantas são as recordações vividas com ela, minha irmã pequenina, tanta a amizade e as brincadeiras desde sempre. Digo só que foi uma alegria muito grande ter lido o que a minha irmã escreveu e ter aqui falado dela.
Maria Malzbender, há uns anos, em minha casa
***
(1) Os dois livrinhos são "edições de autor", criadas na "LOADING" tipografia/informática, de Portalegre. "Criadas" porque se trata de uma real "criação": as edições foram muito cuidadas, quase "com amor". Só em Portalegre, claro (estou a brincar...).
(2) Os "guaranis" formam o
maior povo nativo, em quantidade de indivíduos, vivendo no Brasil. Eles são
originários do tronco da família linguística tupi-guarani.
https://www.todamateria.com.br/cultura-tupi-guarani/
Que maravilha, Maria João! Adorei tudo o que li, gostei dos desenhos e das fotos; a sua irmã é parecida consigo.
ResponderEliminarE esta leitura trouxe-me uma saudade enorme do meu pai, que era uma pessoa simples, mas que um dia começou a escrever a história da sua vida para nos deixar, mas não acabou (acho que se aborreceu). Guardo religiosamente o pedaço que escreveu, num caderno de capas grossas, numa bela caligrafia inconfundível. Também nos contava histórias, que por sermos novos e ocupados, nem sempre ouviamos com a atenção devida e hoje lamento, não ter dedicado mais tempo a ouvir o meu pai e a minha mãe. Tenho tantas saudades dos dois...
Este seu post transporta-nos para esta saudade.
ADOREI!
Beijinhos e boa semana.
Gosto tanto de a ver de volta aqui ao blogue:))
Obrigada querida Isabel, minha "fiel leitora" (lembras-te?). Imagino que sentes o mesmo, é um golpe doloroso. E na altura não entendemos como são "preciosas" certas coisas. Somos jovens e achamos que temos o tempo todo à frente - e que não vamos esquecer. Tens que voltar ao teu blogue! Tens tanta coisa a dizer também. Eu vou ver se me mantenho fiel ao compromisso de escrever...Beijinhos
EliminarAcabo de ler este refrescante post que me encheu de boas vibrações, escrito com muita sensibilidade sobre a beleza das coisas. A Mamé é uma pessoa interessante com uma vida interessante, rodeada de amor e harmonia. Tem um lindo sorriso, todos desejamos conviver com gente que valha a pena conhecer e tratar. Pedi-lhe amizade, oxalá me diga que sim... Gostaria de poder entrar no seu mundo ( muito ao de leve, claro, en silêncio mesmo). Esses dois livrinhos vão fazer as delícias de amigos e admiradores. Ter regressado às suas raízes e viver como vive diz muito dela, tudo à nossa volta fala de como somos.
ResponderEliminarUm beijinho grande para ti, a quem já tenho muito carinho!
Obrigada, María, por dizeres "refrescante"! De facto escrevê-lo foi para mim uma sensação de bem-estar, de arrumar coisas dentro de mim - e, de facto, ao acabar, o que senti foi as boas vibrações que referes. Há coisas da vida que devemos tratar com muita ternura. Fico contente por já teres muito carinho por mim. Eu também te sinto como uma amiga - quase desses tempos de que falei...
ResponderEliminarEu vou dizer à Mamé do FB. De certeza que ela gostará de ser tua amiga. Porém, sei que não vai lá muito ultimamente. Pode ser que essa ideia de ter uma pessoa que a quer conhecer a leve a "voltar" lá.
Adorei, Maria João!!
ResponderEliminarObrigada!
Guida