De repente decidi-me: vou a Portalegre! E fui lá parar de camioneta! Nunca tinha ido nem sozinha, nem de camioneta.
Tudo é diferente conforme a perspectiva, sabemos. Ao chegar ao Alentejo a paisagem muda muito e, vista do alto da camioneta, era um quadro impressionante. Parecia-me um longo quadro impressionista a desfilar como em filme.
Ao ver aqueles campos amarelos como dantes, um ou outro sobreiro ou azinheira empoleirados no cimo de uma colina, as flores roxas e as giestas amarelas, comovi-me. Foi através de uma nuvenzinha de lágrimas que fui chegando à minha terra.
Fim de Primavera, ainda não tinham aparecido os campos de papoilas mas eu sabia que iam chegar. Chegam sempre sem as esperarmos e os campos mudam-se para a cor vermelha.
Seriam as saudades? A necessidade de me recompor depois de algumas partidas do destino que nos apanham sempre desprevenidos?
O que é isto da
nossa memória. Há muito que pensava viajar, ver coisas diferentes e
afastar-me por uns dias de tristezas sem remédio. E acabava sempre a
pensar no meu Alentejo. Era disto que eu precisava. A
Os campos pareciam agora pequenos quadros impressionistas com pedacinhos de Monet, de Bonnard ou até de Renoir. A beleza comove-nos, penso.
O coração começou a acelerar, a garganta ficou presa num soluço. A solidão dos campos envolvia-me, entrava em mim apesar de rodeada de gente que viajava comigo.
A viagem foi, assim, entre tecida de pensamentos nem sempre alegres. E as cores dos campos, dos casais brancos, dos montinhos muito arrumados com duas ou três árvores e algumas trepadeiras vermelhas e mal-me-queres amarelos enchiam-me os olhos de cor.
As nuvens revoltas no céu, mudando constantemente de posição, de tamanho e de cor eram uma alegria para o olhar e um repouso. Pouco a pouco a minha alma acalmou.
Portalegre sempre bela, quer houvesse névoa, chuva ou sol ardente, aparecia-nos de repente, talvez ao virar de uma curva da estrada. De repente lá estava a cidade que se via num alto, entre duas serras.
Suave e imponente, com as torres do castelo, os picos da Catedral ao longe, à chegada. E um carreirinho de pinheiros a subir pela serra acima que eu conhecia tão bem.
Era esta a minha memória. A seguir vinham as saudades, como vêm sempre desde a partida de tantos meus amores dali. As mesmas saudades que sentia quando, vinda de outros lugares, chegava a Portalegre.
Era a imagem do meu pai, à porta da casa da quinta com um leve sorriso e o cigarro na mão. Ouvia o carro descer pela azinhaga e lá estava atento à nossa chegada, à porta da casa. Um beijo e uma palmadinha na cara, sempre a sua saudação.
Penso que comigo tinha uma atitude um pouco mais tímida, tal como também eu a tinha, aparentemente sem grandes manifestações afectivas – que só tivera talvez em criança e adolescente.
Lembro o meu Salmo preferido, o 42.11 - que prefiro na versão em inglês antigo, de King James – simplesmente porque o meu primeiro “Livro dos Salmos”, que foi comprado em Telavive, era uma edição em hebraico e inglês clássico.
“Why art thou cast down, O my soul?
And art thou disquieted within me?"
Portalegre sempre bela, quer haja névoa, chuva ou sol ardente,
aparecia de surpresa, ao virar de uma curva da estrada. De repente lá estava a cidade
que se via numa pequena altitude, entre duas serras. Sim, bela, e que
me faz sentir bater o coração mais forte dentro do peito. Por quê esta
tristeza?
"Porque estás tão triste ó minh'alma ? E tão desinquieta no meu peito?"
A cidade ficou mais vazia para mim há muitos anos e era como se agora tivesse um buraco no peito onde tantas pequenas coisas estavam guardadas. Imagens, gestos, imagens, conversas, silêncios.
Mas desta vez havia muita gente
que eu queria rever: a irmã, a família, os amigos. E tantos lugares novos que descobri, depois, no carro da minha amiga Luísa, às voltas na Serra de São Mamede. Tanta beleza natural!
Via agora o Rossio lindo como o via na minha ideia. Por lá anda o lindo Coreto, agora com muitas árvores à volta e encostado a um lado. Sem música.
O Coreto não
tem igual: tanta suavidade - a cor da pedra, as escadas que subíamos, a brincar,
antes de chegar a Banda que ia tocar à noite nos dias de Feira. E volta a memória das festas...
Chegava a feira – aliás, as feiras. Alegrava-me sempre a ideia das festas. E trepava pelas escadas do Coreto acima, e descia e subia, até vir alguém dizer-me para me sentar porque íamos ouvir a música.
Ouvia com a face encostada na mão apoiada no braço dobrado. Tinha um laço nos cabelos e entrava noutro mundo.
Ouvia, sim, e gostava e gostava de ouvir, mas quando chegava o intervalo brincava e corria outra vez à volta do nosso elegante Coreto.
E descia a noite. Quantas vezes vi a lua lá no alto do céu - azul bem escuro - a brilhar sobre a minha cidade. Desta vez tudo foi diferente. Mais calmo? não sei - talvez um tempo mais pensativo com muitas interrogações sem resposta.
Vinham mais suaves e distantes as lembranças, as árvores no Outono, as ruas, a Catedral, a Corredoura. Os passeios no Rossio tão mudado.
E agora a ver a Serra de São
Mamede com surpresas ainda para mim.
Como a descoberta do Miradouro das Carreiras - onde a Luísa me levou - que se bate com tantos miradouros famosos do mundo - na sua simplicidade da natureza exposta num belo dia de Primavera.
Desta vez até houve lugares novos que descobria agora no carro da minha amiga Luísa, às voltas pela Serra. Tanta beleza natural!
O tempo passou a correr. E voltei outra vez na camioneta. Na
viagem de regresso já não havia a mesma excitação.
Sentia-me como se tivesse
um buraco no peito onde tantas pequenas coisas estavam guardadas para sempre. Imagens, gestos, imagens, conversas, silêncios. Um pouco da vida perdida. Mas que não morrera.
Ia olhando com mais atenção coisas que me tinham escapado na vinda. As pequenas aldeias, aglomerados de poucas casas brancas, um pequeno largo com bancos e mais nada. Ou os "montinhos" de casas branquinhas, espalhados e com vacas e rebanhos por ali.
A vegetação, rara, no meio da planície que a Primavera enchia de flores
azuis e de giestas a nascer. Os sobreiros com o tronco ferido e
vermelho e as folhas de um verde acinzentado.
Creio que vinha mais meditativa - sabia que cada instante passa inexoravelmente e nunca mais será o mesmo.
E que cada hora devia ser aproveitada porque se o
passado ficou para trás e não volta mais e se o futuro não sabemos como
será - ou até "se será"- é esta a nossa hora de viver.
Não sei se alguma fui a Portalegre, talvez tenha passado perto e gostei muito de ver e ler sobre este passeio, tocou-me pelas saudades que sinto dos que partiram e pela ideia de termos de aproveitar o presente.
ResponderEliminarum grande beijinho
É verdade, Gábi! O mundo vai ficando cada vez mais vazio de afectos.Custa muito. Mas é bom fazer estes passeios porque fazem muito bem à "alma" coitada! Muitos beijinhos. Gostava de te ver, mas nunca mais fui ao Porto! E tenho lá tantos bons amigos! Beijinhos e obrigada.
ResponderEliminarO regresso ao passado é sempre uma montanha russa de emoções, uma viagem que todos fazemos muitas vezes, pelo menos em pensamento. Quando há 25 anos morreu o meu pai, despedi-me da casa onde voltava todos os anos pelo Natal, e fiz fotos a todas as ruazinhas da minha infância. Sabia que não voltaria nunca mais, e assim foi. "O meu mundo é outro", como diz a canção... Há coisas e pessoas que prefiro que permaneçam na memória tal como as conheci e elas a mim...Beijinhos
ResponderEliminarQue belo texto!
ResponderEliminarRegresso ao passado, com saudade, mas também com aceitação. A passagem para "uma nova fase" começou com a morte do meu pai há quase 18 anos. A vida nunca mais foi a mesma. Mas partem uns e chegam outros: sobrinhos, sobrinhos-netos...
Há um ano e pouco partiu a minha mãe. Entre um e outro foram vários tios, mas a vida é assim. E enquanto forem os mais velhos, permanece a lei natural da vida e aceita-se melhor do que quando partem os mais novos.
Enfim...mas sinto sempre a minha mãe e o meu pai perto de mim.
Volto à rua da minha infância, sem dramas, com saudade boa. Quando temos alguma reunião de família num restaurante ali perto, gostamos de ir tirar fotografias à "nossa" porta, onde também alguns sobrinhos viveram parte da infância, na casa da avó, onde ficavam depois da escola até os pais os irem buscar depois do trabalho.
Agora são os netos dos meus irmãos que vão para casa deles...a vida continua o seu percurso.
É bom recordar, é bom ter boas memórias e continuar a construir outras, com a certeza de que os que partiram estão dentro do nosso coração.
Beijinhos