Sei que é impossível "reviver" seja o que for de já vivido - se bem que tentemos sempre fazê-lo talvez pelo medo de perder algum retalho da nossa vida.
A verdade é que "já" não somos os mesmos - por isso não podemos reviver nada. E é tão evidente - que nem é preciso ir buscar a frase de Heráclito para nos darmos conta disso: “Não podemos banhar-nos duas vezes nas águas do mesmo rio”.
Porque não somos os mesmos: não teremos a emoção dessa primeira vez. A água já não será a mesma porque vai fluindo para o mar. O rio também mudou de curso ou andou em frente e recebeu nova água de uma nascente longínqua para encher o seu caudal.
Por nós passou o tempo e ganhámos aquilo que julgamos ser “experiência”. Recordo a frase lapidar de Aldous Huxley, personagem para mim tão extraordinário: “A experiência não é o que te acontece. É o que tu fizeres com o que te aconteceu.”
Mas quero falar de Telavive. Tantas vezes olhei para as mesmas coisas e senti que o que vi me tinha modificado. Mas em quê?
A verdade é que senti "acontecer" dentro de mim e sempre pensei que Huxley tinha razão. Porque a experiência não é, de facto, exactamente o que vivemos, não é "o que passou por cima de nós" é, sim, aquilo que nós fizemos com isso - o que é muito diferente.
Às vezes ouvimos dizer: “Ah, ele tem muita experiência, viveu e viu o mundo lá fora!”, mas a verdade é que pode ter vivido nesses sítios sem alterar nada na "sua vivência" ou na sua "atitude" perante a vida. Vai voltar para casa tal e qual como partiu.
Essa imersão no mundo existe ou não existe. E dependerá sempre do indivíduo que viaja.
Vivi numa casa perto do mar, em São Tomé, vi o que era a estação das chuvas e conheci a Gravana. Ensinou-mo o Senhor Semedo, pescador e nosso guarda, com quem aprendi tantas coisas.
Foi ele que me falou da constelação "Cruzeiro do Sul" que eu imaginara sempre e nunca pudera ver. Ali, no meu jardim, eu vi o Cruzeiro do Sul passar sobre a minha cabeça.
Contou-me das suas pescarias e até de um naufrágio na costa do Gabão. E um dia, quase a medo, disse-me que tinha visto "as sereias". Ouvi-lo era sempre uma aprendizagem.
Houve gente que me ensinou o que sabia e gente que quis saber de mim o que eu sabia. De onde vinha; por que viera; para onde ia. Trocámos os nossos saberes e isso deixou-me uma marca profunda. Era uma pessoa diferente quando saí da ilha, fiquei mais rica.
Pus-me a filosofar mas é esta conversa que me leva a falar da chegada à casa da rua Lassalle em Telavive. Os cinco anos que vivi em Telavive causaram uma mudança em mim.
Senti que absorvia outra realidade e que isso me motivava a viver de outra maneira. Sentia-me mais próxima de mim, do meu verdadeiro "eu". Deixei de me preocupar com coisas que considerava supérfluas, queria estar próxima do meu sentir íntimo.
Passeava de manhã com o Zac - o meu rafeirinho de pelo vermelho - e íamos os dois conhecer as ruas, de Norte a Sul da cidade.
O Zac e eu na varanda
Apanhávamos o "sherut" na Ben Yehuda, pagávamos um bilhete -preço único - que dava para correr as ruas todas. E entrávamos ou saíamos onde nos apetecesse. Bastava fazer sinal - e parava.
O que mudou? O meu modo de pensar ficou "mais aberto". Telavive começou a ser "minha". integrava-me voluntariamente e queria "pertencer" àquele mundo.
Pertencer à minha "cidade branca" como ainda hoje é chamada. Cheia de prédios em estilo Bauhaus, casas brancas, de desenho simples, essencial.
Vou contar como Telavive foi criada na areia - “arrancada” às dunas do deserto que iam até ao mar. Foi a primeira cidade a ser construida completamente pelos judeus.
As dunas existentes foram escavadas - e do próprio mar foram arrancados os pedregulhos e as rochas que serviram para a construção da cidade. Foram tempos e trabalhos "titânicos" em que se trabalhava jornadas inteiras e se descansava só à noite junto ao mar ao pé das fogueiras.
Conta-o Agnon, no seu livro “Tmol shilshom” cuja tradução inglesa tem o nome de “Only yesterday”. “Ontem e anteontem” - seria a tradução à letra em português.
Voltei a Telavive há um ano. Queria ver a minha "cidade sem repouso" como aprendi a chamar-lhe : porque Telavive não para nunca, nem de dia nem de noite.
E nesta última viagem comecei a ler um livro muito interessante, "Naissance d'une ville" de Yaakov Shavit que conta como foi a construção de Telavive - e das casas em estilo Bauhaus. (1).
O livro de Shavit conta esse momento crucial, desse movimento constante e necessário de construir.
Não de qualquer maneira mas sim com medidas, instrumentos precisos de cálculo. Porque os pedreiros, os carpinteiros e os construtores eram engenheiros e arquitectos judeus - fugidos da Alemanha e da Áustria nazis.
Famosos já no mundo, vieram a Israel estudar o terreno a situação climática - e depois desenharam as casas. E ajudaram à sua construção. O trabalho que saía das suas mãos pretendia ser perfeito.
O autor explica-nos "como" e "quem" construira aquelas casas e "porque tinham sido construídas naquele estilo". Uma cidade criada do nada.
Há quem estranhe haver tantas características europeias neste estado do Médio Oriente. A explicação é simples: a maioria dos judeus de Israel veio da Europa. Cerca de 9 milhões viviam nos países da Europa de leste - na União Soviética que Hitler iria ocupar: Polónia, Hungria, Roménia e Ucrânia, onde viviam em pequenas aldeias, os shtetls e por vezes mesmo em ghettos.
Além dos judeus "assimilados" que viviam integrados desde sempre na Alemanha, França, Bélgica, Áustria, na França. De repente viram-se perseguidos, a serem levados para campos de destruição e os que podiam viram-se obrigados a fugir.
Este livro de Aharon Appelfeld, "Badenheim 1939", é um dos livros que falam desse absurdo. O de um grupo de pessoas estar numa estância de férias para onde tinham sido "convidados" -por uma Agência desconhecida. Um lugar de divertimento, com cafés, restaurantes, bailes, e com pessoas agradáveis.
Aguardavam a chegada da Orquestra que ia chegar. E chegou. Mas foram percebendo que algumas pessoas iam desaparecendo pouco a pouco: havia uns comboios que os levavam para outra "estância de férias" melhor.
Não vou contar a história. Philippe Roth escreveu um "Prefácio" muito bom numa edição espanhola que comprei em viagem e que perdi.
Muitos judeus chegaram a Israel. Entre o fim da derrota da Alemanha na Iª Guerra - entre 1918 e 1933 - quando Hitler sobe ao poder, existira na Alemanha um período de desenvolvimento cultural intenso no campo das Artes e nas Ciências.
Foi chamada República de Weimar. Porque foi nessa cidade que as universidades alemãs se tornaram, universalmente, abertas aos estudiosos judeus logo a partir de de 1918. (3)
Nela se ensinavam a moderna Arquitectura e o Design - ligados a um movimento artístico chamado Bauhaus.
Durou pouco essa experiência. Quando Adolf
Hitler sobe ao poder em 1933 muitas figuras da cultura alemã, judeus e não judeus, fugiram para os Estados Unidos, para o Reino Unido e
para outras partes do mundo, como o Brasil. Outros fugiram para Israel.
No final da Guerra, dois terços
dos judeus europeus haviam sido assassinados e a vida judaica na Europa
tinha sido alterada para sempre.
Foi uma integração difícil, contou-me a Susana, que veio muitos anos mais tarde. Estivera dois anos em Auschwitz, sobreviveu, e contava-me muitas histórias. Dizia-me às vezes que tinha sido estranho para ela viver neste mundo novo.
Um mundo feito por gente jovem e enérgica que trabalhava duramente,
que estudava e que não queria olhar para trás. Uma geração que queria esquecer o que os
antepassados tinham vivido. Era um assunto de que não se falava em
família. Ficara para trás um passado de sofrimento e humilhações. Isso não podia voltar a acontecer.
Tinham uma língua desconhecida (2) - agora nova - e a vida era agreste porque sabiam que tinham de se proteger contra os países em redor. Os países que não reconheciam Israel e queriam - e querem - eliminá-lo totalmente.
Essa "gente diferente" de que vos falo, prática e enérgica, não nasceu assim por acaso: nasceu da necessidade de se defender, de criar protecção e de pôr barreiras em redor. Essa foi a juventude, que teve de ser dura para transformar o que a rodeava, eram os "sabras".
Um dia contaram-me: "Sabes por que os judeus nascidos em Israel são chamados "sabras"? Não sabia. De facto quando ouvia dizer "eu sou sabra" não percebia o que era.
Explicaram-me que a palavra "sabra", em hebraico, quer dizer "figo da Índia". Um fruto cheio de picos por fora mas que por dentro é doce.
O israelita considera-se assim - duro quando é necessário para a sobrevivência - mas o coração deles é "doce".
***
E era gente doce e generosa. Dei-me conta disso enquanto lá vivi. Tudo era fácil quando cheguei. As pessoas falavam comigo, contavam a sua história - de onde vinham e queriam saber logo de onde eu vinha e o que fazia.
Bastava um olhar para percebermos que havia uma conexão e que eu não "estava contra" eles. O judeu parece desconfiado de início mas tem uma razão para o ser- basta pensar na vida que tiveram ao longo dos séculos.
Quando lhes dizia que ia ficar em Israel uns anos havia um sorriso aberto. Então queriam saber se falava hebraico e quando dizia que não - explicavam como era importante falar a língua, tornava a vida mais simples para mim.
***
No Verão passado, depois de muitos anos de ausência, voltei a Telavive sozinha, sem o Manuel - companhia de sempre- o que tornou a viagem diferente.
Telavive estava também diferente, muito mais moderna a arquitectura dos novos prédios que transformavam as próprias ruas - e havia metropolitano já.
Do passado restavam imagens, farrapos, memórias, sombras. Memórias vivas. O primeiro local onde me dirigi foi - confesso - ao "Café Segafredo", situado na Dizengoff Street.
Primeiro andei a passear, rua acima rua abaixo, para ver como estava a minha "rua" preferida. Cafés e lojas de flores, como sempre mas um sushi-bar novo, os quiosques onde vendiam sumos de todos os frutos imagináveis.
E vi uns pardais a comer os miolinhos de bolo ou de pão que tinham ficado sobre a mesa de um café.
Depois sentei-me na esplanada do "meu" Café, a olhar para o movimento da rua. Tinha tantas saudades de tudo. Pedi um capuccino porque eram muito bons há uns anos - e continuavam a ser.
E pensava na "conversa" do Huxley. Interessava-me saber o que dessa vivência antiga em Telavive eu tinha recebido - e como me transformara o que guardara dela em mim.
Sentia-me estranha, tudo era irreal e no entanto tão conhecido, tão meu tudo! Olhava, pensava e não acreditava que estava ali.
Como tinha sido antes? Como era hoje? Quem era eu agora?
a Dizengoff Street
(1) Yaakov Shavit, "Tel Aviv, naissance d'une ville". O escritor fala da criação da cidade e do estilo Bauhaus - que conta a odisseia da criação da cidade.
2) Esses edifícios Bauhaus, construídos na primeira metade do século XX, formam da Cidade Branca de Telavive, declarada Património da Humanidade pela Unesco. É interessante saber que a cidade com mais edifícios Bauhaus do mundo está a milhares de quilómetros da Europa, em Telavive. De facto, Telavive conta mais de 4000 edifícios neste estilo.
(3) Uma "língua nova" para eles que falavam yiddish, alguns, ou outras línguas europeias. Em Israel, o linguista Ben Yehuda tinha criado no início do século XX uma língua baseada no hebraico da Bíblia, um pouco no Yiddish e um pouco no Latim: e surgiu o "hebraico moderno".
(5) ULPAN: "Centro Cultural Goldestein para a Cultura e para a Educação", onde se ensina aos que chegam a língua e a cultura hebraicas.
Somos como rios, sempre os mesmos e sempre outros, a vida é movimento. A tua está cheia de viagens e experiências interessantes. Dizes que em Telavive te encontraste a ti mesma, curioso e digno dum estudo psicológico! Oxalá ainda lá voltes, e a encontres por fim com essa paz que todos desejamos tanto para toda essa zona tão desgraçada! Beijinhos
ResponderEliminarGostei do seu post, como sempre.
ResponderEliminarA guerra é uma loucura, uma tristeza.
Beijinhos e resto de bom domingo:))
Senti-me um pouco a viajar enquanto lia - já voltei a cidades onde tinha estado há muitos anos e mesmo reconhecendo alguns pontos, senti como se estivesse em cidades diferentes nas quais nunca antes tivesse estado
ResponderEliminarum beijinho e bom fim-de-semana