Zinaida
Serebriakova, Camponesa dormindo
Ela
canta, pobre ceifeira
Julgando-se
feliz talvez;
Canta,
e ceifa, e a sua voz, cheia
De
alegre e anónima viuvez,
Ondula
como um canto de ave
No ar
limpo como um limiar,
E há
curvas no enredo suave
Do som
que ela tem a cantar.
Ouvi-la
alegra e entristece,
Na sua
voz há o campo e a lida,
E
canta como se tivesse
Mais
razões p'ra cantar que a vida.
Ah!
canta, canta sem razão!
O que
em mim sente 'stá pensando.
Derrama
no meu coração
A tua
incerta voz ondeando!
Ah,
poder ser tu, sendo eu!
Ter a
tua alegre inconsciência,
E a
consciência disso! Ó céu!
Ó
campo! Ó canção! A ciência
Pesa
tanto e a vida é tão breve!
Entrai
por mim dentro! Tornai
Minha
alma a vossa sombra leve!
Depois,
levando-me, passai!"
Fernando
Pessoa ortónimo, in “Cancioneiro“
*
Pensei numa amiga que gosta de Fernando Pessoa. Gostava
de "dar" a minha ideia sobre este poema de que muito gosto...
~Muita da temática de Pessoa anda por aqui... Tanto desassossego!
Ser e não ser, querer ser e não querer, pensar e sentir, inconsciência de se ser alegre e não se saber, porque inconscientes disso, consciência que mata o sentir que se é alegre... não se acabava. Porque é o poeta que brinca com a inteligência em cada segundo, porque é a loucura lúcida em pensamento que não sente.
Pensando neste poema, penso: o poeta
inveja a ceifeira? Sim, ele quer ser como ela (e não quer) e ao longo dos versos entre o pensar e sentir o coração balança: porque se sente alegria mas não tem consciencia disso, para que serve ser alegre? Não o sabes...
E ouve a canção “ondular” ao sabor do movimento
da ceifeira, das curvas do som da voz e fica alegre e triste ao ouvi-la.
“Ouvi-la
alegra e entristece,”
“há
curvas no enredo suave
Do som
que ela tem a cantar.”
Ela
canta, “na alegre e anónima viuvez”, ela
é alegre porque inconsciente do “porquê” do seu canto (até nem tem razões para estar contente), porque não sabe por que canta, e
triste (viúva) porque não tendo consciência, não sabe que é feliz...
Na seara que ceifa, entre o trigo doirado e as papoilas de que o poeta não fala porque as não vê, ela canta apenas. Simplesmente, canta.
Na seara que ceifa, entre o trigo doirado e as papoilas de que o poeta não fala porque as não vê, ela canta apenas. Simplesmente, canta.
Van
Gogh, Campo de papoilas 1890
“Ah!
canta, canta sem razão!
E o
que em mim sente ‘stá pensando”,
Logo, o
poeta, "pensando", tendo “consciência”, percebe que não pode ter essa alegria, de quem canta “sem razão”.
“Ah,
poder ser tu, sendo eu!”
Impossível...
“A tua
incerta voz ondeando!“ , a voz que ele desejaria ter talvez, mas sendo consciente dela.
Impossível.
Desejava
que o canto se derramasse no seu peito,
mas como fazê-lo, se o não sente?
Invoca
o campo, a canção (Inconscientes)... mas sabe que a ciência ( o saber, o ser
consciente) pesa.
“Ó
campo! Ó canção! A ciência
Pesa
tanto e a vida é tão breve!”
De
facto, “aquela alegria que as coisas têm de fora” não é real. Só as coisas a
têm. Graças ao imaginar , podemos experimentar a alegria, mas é sempre “de fora”...
Ser
inconsciente é “não ser”:
“Só
a inocência e a ignorância são
felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que
é ser sem no saber?
Ser
como a pedra,
um
lugar , nada mais.”
(O horror de Conhecer, V)
A
alegria inconsciente não é alegria, porque não sabe que o é... Oscila o poeta entre o que o horroriza: o
horror de pensar, e, simultaneamente, o horror
do aniquilamento de “não ser” que significaria a morte absoluta.
Dilema
irresolúvel.
“Ah,
poder ser tu, sendo eu!
Ter a
tua alegre inconsciência,
E a
consciência disso! Ó céu! “
Querer
ser “ela”, inconscientemente alegre, mas
“saber”, ter consciência dessa alegria? Da inocência dessa alegria simplesmente sentida?
Zinaida
Serebriakova Camponeses
“Quanto
mais fundamente penso, mais
Profundamente
me descompreendo.
O
saber é a inconsciência de ignorar..."
(O
horror de Conhecer, IV)
Como
dirá noutro poema, lamentando os paradoxos do seu pensar:
“(...) ó horror
paradoxal deste
pensar...”
(O horror de Conhecer, XVII)
Como muito bem escreveu, sobre este poema , Jacinto Prado Coelho, ele que tão bem
soube entender o poeta:
“Poema
da ambição impossível de ser conscientemente
inconsciente - e o sabê-la impossível contagia de tristeza o canto da
ceifeira”.
Fernando
Pessoa nunca terá a alegria da ceifeira... Resta-lhe pedir aos campos, à natureza que o levem e lhe resolvam o dilema. Ele, que nada prende, ele "caçador só do uivar dos lobos longe", ele -quem sabe? Sim, quem sabe? Talvez a sombra que passa fique na sua alma...
E talvez o leve, ao passar.
"Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!"
De
facto, um dia disse:
“Cai sobre mim, apagamento
meu!
Querer querer, inútil pedra ao mar!
Saco p’ra colher vento, cesto de água,
Caçador só do uivar dos lobos longe...”
Vim fechar o ordenador e vi o teu comentário à minha madame Bovary. Respondi-te, e já morta de sono vim até aqui, e encontrei-me com umas filosofias que a esta hora já não consigo pòr em ordem. Olha, deixo-te os versos do gato, que são mais do mesmo:
ResponderEliminarGato que brincas na rua/ como se fosse na cama/ invejo a sorte que é tua/ porque nem sorte se chama,/ Bom servo das leis fatais/ que regem coisas e gentes/ que tens instintos gerais/ e sentes só o que sentes./ És feliz porque és assim,/ todo o nada que és é teu,/ eu tenho-me e estou sem mim,/ pertenço-me e não sou eu...
Não sei se está correcto, mas é isto mais ou menos. F. Pessoa tinha uma neurose de cavalo, talvez sem ela não tivesse sido o génio que foi. Talvez.
Outro beijinho, no meu blog tens um.
É muito bonito o poema.
ResponderEliminarGostei de ler a interpretação que ajuda a percebê-lo melhor.
São lindas todas as pinturas que escolheu.
Um beijinho grande
Olá Maria João,
ResponderEliminarAcho que este texto da Ceifeira e as considerações que faz sobre ele dão um bom retrato do Pessoa: o desassossego e a indefinição, o querer ser e não o ser, a possibilidade impossível, a procura de algo que não atinge, a alegria na tristeza...
Sinceramente gostei do que escreveu.
Abraço amigo
Raul
Uma belíssima viagem
ResponderEliminarpelo interior das pedras
Bjs tantos
F. Pessoa passou toda a vida desassossegado! Nós, agora, sabemos o que isso é...
ResponderEliminarAdorei as ilustrações e a ligação com o texto.
Um beijinho.:))
“Só a inocência e a ignorância são
ResponderEliminarfelizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber?
Ser como a pedra,
um lugar , nada mais.”
Sou suspeita porque gosto muito, muito, muitooooooooooooo de Pessoa e o que encontrei foi o seu mundo desassossegado e por isso imensamente maravilhoso.
Uma postagem de excelência como é hábito mas esta tocou-me especialmente:))
Beijinho.
Sei que gosta muito dele. Eu "dei-o" muitas vezes nos últimos anos, nos 12º, antes de me reformar.E Fiquei a gostar mais dele... Tenho imensos "apontamentos" porque tive de pensar muito sobre ele....
Eliminarbeijo