Revi há pouco tempo a série inglesa da BBC "Guerra e Paz", inspirada no romance de Leão Tolstoï - adaptado por John Davies em 1972- e voltei a sentir-me arrastada pelo turbilhão das
tragédias, do amor e da morte, da vida e da guerras, das personagens e das lutas que se travam por causa das paixões das pessoas.
A
família Rostov que, segundo alguns estudiosos, se inspiraria na parte feliz da família de Tolstoï -a família
materna- enquanto a família do Príncipe Bolkonsky seria a parte mais complicada
da sua génese: a família do pai.
"Um baile", quadro de Grigori Gagarine
Guerra
e Paz é um microcosmo de famílias,
casas, pessoas, de sentimentos, de anseios, de ambições e frustrações, um mundo
onde há um pouco de tudo do nosso mundo.
Virginia
Woolf disse do autor: “Desde a primeira
palavra nós sentimos, temos a certeza que Tolstoï é um homem que vê o que nós
vemos, que procede como nós temos o hábito de proceder, não de dentro para
fora, mas de fora para dentro. Nada escapa ao seu olhar que tudo regista.”
... ... ...
“Por quê a vida? A vida domina
Tolstoï (como a alma domina Dostoievski). Há sempre no coração das pétalas brilhantes
e luminosas de uma flor este escorpião que pergunta: “Por quê a vida?”
Continuando
a história… Os Rostov, família de boa gente, são, por vezes, de uma ingenuidade quase infantil.
E com tanta loucura.
Penso no Conde Rostov que acaba praticamente arruinado, tendo gastado
todo o dinheiro da mulher. Porque não sabia dirigir a propriedade, porque era
incapaz de negar fosse o que fosse, porque todos os dias a sua mesa estava
cheia de gente!
E lembro a generosidade de Nicolau, o filho mais velho, bom, instintivo, não particularmente inteligente, diria. E os outros: Pétia, uma criança ainda, e Vera, a mais velha, um pouco insípida, que pouco tem a dizer para a história (para mim). E, claro, não esquecendo a bondade do Conde Rostov; aliada à compreensão pragmática da Condessa Rostova.
Depois, vem a exuberância excessiva e a vivacidade imatura, a inconsciência egocêntrica da inconstante Natasha
Rostova. As paixões avassaladoras que logo se mudavam noutra paixão igualmente fatal e avassaladora, em histórias de que ela era o centro…
Ler
um livro faz-nos entrar num mundo que aceitamos mais ou menos criticamente. Conheço
pessoas que “odeiam” (com ódio autêntico!) a figura de Natasha!
Natasha e o irmão, Nicolau Rostov (série inglesa 1972)
Não,
nunca odiei a Natasha que vive a vida como um feu
follet, a arder, girando sobre si própria, louca, e sem pensar em nada mais senão em si. Até que um dia...
E depois, há os Bolkonsky – pai, filha e filho- que se apreciam sem hesitar. Para as figuras destes
príncipes -da grande aristocracia russa – Tolstoï ter-se-ia inspirado na sua família paterna.
O
velho Príncipe – um erudito, de grande saber e estudos, quase um
enciclopedista. Um “homem das luzes”, um matemático, um homem de ciência, estratega (o general Kutuzov tem por ele uma admiração sem
limites!) que exige que a filha estude matemática com ele.
É
exigente e duro com ela. Quer que a princesa Maria seja diferente: num tempo em que as mulheres pouco mais faziam
do que bordar, ler uns livrinhos e dar ordens às criadas.
E outras, quase
analfabetas, esperavam apenas um bom casamento para “se realizarem”… Ou apenas
“arrumarem-se” e deixarem de incomodar!~
O
velho Príncipe é severo, sim, e pouco ou nada cede ao seu coração, se bem que
ele lhe bata forte no peito.
Na
agonia, vai lamentar muita coisa que não disse desses seus sentimentos à
filha, Maria Bolkonskya. E dirá –finalmente!- que a amava muito: “A minha alma está perturbada. Penso em ti.”
Maria
Bolkonskya é inteligente, e intuitiva também, uma mulher religiosa que sabe tomar decisões reflectidas. É a incarnação de
todas as qualidades de "nobreza de coração", bons sentimentos, generosidade, respeito pelos outros.
André
Bolkonsky, o filho ( no filme, é o actor Alan Dobie, que faz um papel extraordinário), parece-me amargo e céptico. Desiludido das
pessoas e das coisas da vida - mesmo ainda antes de encontrar Natasha e de ela lhe dar cabo da
vida.
No
entanto há momentos inesquecíveis desta personagem, nas suas interrogações sobre a vida e a sua morte. Gravemente ferido, em Austerlitz, contempla o céu azul sem fim e imagina como deve ser
maravilhoso participar desse azul. A morte preocupava-o desde sempre.
Ferido,
novamente, agora de modo muito mais grave, na batalha de Borodino, volta a pensar na morte,
na vida e no amor. Tenta redimensionar os sentimentos.
André Bolkonsky, batalha de Austerlitz (série da BBC, 1972)
“Sentia um afastamento por todos os
sentimento terrenos (…). Aquela coisa terrível eterna, desconhecida e longínqua
cuja presença nunca deixara de experimentar durante a vida inteira, estava
agora muito próxima dele, quase compreensível e sensível.”
(...)
“Outrora, tinha medo da morte¸ por duas vezes passara pela angústia, pela agonia
dolorosa e terrível e agora completamente estranho para ele. Experimentara-o
pela primeira vez quando, de olhos presos na beleza dos campos, das searas, dos
bosques, do azul do céu, vira chegar a morte numa granada que avançava para
ele, a redopiar.”
E Tolstoi escreve:
“A
doença seguia o curso normal, era a luta suprema entre a vida e a morte.” (pg 163 da edição portuguesa)
André Bolkonsky sonha e delira, entre a vida e a morte.
Napoleão - batalha de Borodino( filme de Bondcharuk)
“O amor! Que é o amor? O amor é o inimigo da morte. O amor é a
vida. Tudo o que eu compreendo, só o compreendo pelo amor. Tudo existe apenas
porque amo. Tudo está ligado somente pelo amor. O amor é Deus, e morrer significa que eu, numa
pequena parte do amor, volto à origem comum e eterna. (…)"
Bezukhov (Hopkins) e Natasha (Morag Hood)
Sim,
a morte é o contrário do amor. A morte
mata a vida. Compreendemos porque amamos. Porque estamos dentro de um amor total - em que
somos, todos, parte de uma origem comum e
eterna.
O
Príncipe André está a viver a sua “luta
suprema entre a vida e a morte” e talvez o saiba.
“Desde
esse dia, André começou, como se saísse dum sonho, a sair da vida”, escreve
Tolstoï. (p.165)
... ... ...
E Pedro Bezukhov?
Bezukhov-Hopkins, BBC,1972
O hesitante e tímido Pedro Bezukhov, interpretado magistralmente por um jovem Anthony Hopkins desconhecido… Sem vocação, sem inclinações, duvidoso, à
procura de uma filosofia e de se encontrar. De um sentido para a vida, que
Tolstoï nunca se cansou de “perseguir”!
Entra para a maçonaria, desilude-se, quer um
destino invulgar e julga-se destinado
a matar Napoleão. Põe a sua fortuna ao serviço do exército russo, vai procurar o campo -onde está Bolkonsky, seu amigo, que o recebe com espanto. A batalha vai começar e ele anda por ali, civil, de chapéu alto, sem entender o perigo!
batalha de Borodino (filme de Bondcharuk)
Durante
o incêndio de Moscovo, depois da entrada dos franceses, é preso pelas tropas de
napoleão e acusado pelos de incendiário.
Enquanto, a nobreza russa fugira da capital deitando fogo aos armazéns e às
casas, Pierre decide ficar.
Moscovo ocupada (Sergei Bondcharuk, 1968)
Passeia-se
pela cidade, vestido como um comum camponês,
a ver tudo o que se passa, chocado com o que se lhe depara: uma menina
dentro de uma casa a arder e a mãe, desesperada, a pedir que a vá salvar. Ele vai…
Anthony Hopkins
A
menina salva-se mas perde-se da mãe e, à procura de outra família para a deixar, é
nesse momento que Pedro é preso, acusado de atear esse fogo. Na prisão, reflecte sobre a vida e reconhece que não fez nada de
interessante, de válido, na passado. Levam-no perante um pelotão de fuzilamento,
mas, no último momento, não o matam.
"Podia morrer"!, pensou. Como o adolescente que fora fuzilado, segundos antes na frente dele. E o que tinha sido toda a sua vida? Nada!
"Podia morrer"!, pensou. Como o adolescente que fora fuzilado, segundos antes na frente dele. E o que tinha sido toda a sua vida? Nada!
Na prisão-palheiro, interroga-se, então, sobre a angústia, as dúvidas, o sentido da vida quando, no fim, nos espera o aniquilamento. É na prisão que encontra uma figura que o ajudará a perceber (aceitar?) a vida.
Na retirada de Moscovo, prisioneiros dos soldados de Napoleão, observa tudo em redor. Sofre a neve, o frio, a fome, o medo.
Conversa com um camponês, um homem sem idade, Platão Karataiev, que será mais um ser inesquecível desta epopeia. Que vive, filosofando simplesmente, como se “fizesse parte da natureza”.
Na retirada de Moscovo, prisioneiro com Pedro Bezukhov dos soldados de Napoleão, observa tudo em redor, resignado. Sofre a neve, o frio, a fome, o medo, aceitando o inevitável, conquistando cada bocadinho do que é possível. E o Conde percebe que muito se conquista com o sofrimento!
A retirada da Rússia, Bondcharuk (1968)
Com ele, Pedro Bezukhov vai aprender o “sentido da vida”.
Diz Virginia Woolf:
“Há sempre no coração dos seus livros uma
personagem (que pode ser Oléguine, nos “Cossacos”, ou Bezukhov na “Guerra e
Paz”) que recolhe em si toda a
experiência, faz girar o mundo entre os dedos e nunca deixa de perguntar, mesmo
quando disso tira prazer, qual o sentido da nossa vida, e quais deverão ser as
nossas finalidades.”
Mais tarde, contará as suas peripécias e dirá, resumindo: "Andei por aqui e por ali à procura deste ou daquele segredo da vida; Não sabia que o ia encontrar no sofrimento."
Debrucei-me
sobre Bezukhov porque me parece englobar muitas das hesitações, das dúvidas essenciais de Tolstoï. Um homem que procura, que quer saber, que muda e volta a mudar, a escolher, sempre!
o jovem Tolstoï, na Guerra do Cáucaso
Mas, vendo bem, quanto de Tolstoï estará em cada uma das suas outras personagens...
É
a vida "viva" que se liberta daquelas páginas e a grandeza de Tolstoï é pôr as gentes
de hoje a discutirem por causa das suas figuras que “viveram” há tantos anos!
Acabo,
porque se não nunca mais terminava! …Não quero maçar quem me possa vir a ler!
(1) Guerra
e Paz, Obras Completas de Leão Tolstoi, Editorial Inquérito, 1942. Tradução de José Marinho, filósofo e pedagogo português (1904-1975)
(2) Virginia Woolf, L'art du Roman (capítulos "Les étapes du roman", "Le point de vue russe"), Editions du Seuil, 1939
Mais uma excelente partilha
ResponderEliminarMemória viva
A mim não me maça! Pelo contrário! Adoro ler sobre os autores e livros de que fala.
ResponderEliminarFico com muita pena de não ter mais tempo para ler todos os livros de que fala, e outros. Trabalhamos demais e sobra pouco tempo. Mas o lazer faz muita falta. Eu acredito que faz bem à saúde.
Espreitei o link do filme, mas não tem legendas...
Um beijinho grande :)
Muito interessante.
ResponderEliminarNão vi esta série mas sou fã da BBC.
Beijinho. :))
O livro que mais vezes reli, na totalidade ou páginas. Desde que o li, em jovem, ainda não encontrei substituto - é o meu livro preferido. E Tolstoi o meu romancista.
ResponderEliminarTb vi os vários filmes e séries que se fizeram sobre a obra.
Li-o e tenho-o na trad. de João Gaspar Simões e Isabel da Nóbrega. Ando a arranjar coragem para comprar a trad. dos Guerra, feita do russo.
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