quinta-feira, 11 de junho de 2015

Marion e os caracóis...


Tenho uma amiga que me conta histórias fabulosas. Verdadeiras. Da vida dela. Não as conta com a intenção de ser engraçada ou de se dar importância, vêm naturalmente à conversa, são espontâneas.
Ela é uma pessoa especial, vem de outro mundo diferente deste, é  francesa e a sua vida correu por Paris antes de se vir instalar em Portugal. Conta as coisas e olha-me com espanto, ingenuamente. 
Ingénua, a Marion? Não sei, mas se o fosse era no bom sentido da palavra, das pessoas que são crédulas, que são generosas e que se entusiasmam com a vida mesmo quando ela não corre assim tão bem.

Conheço-a há pouco tempo mas estabeleceu-se entre nós uma corrente de simpatia que simplificou tudo.
Muito esguia, lembra-me um “folletto” – que é uma palavra italiana intraduzível. Será a palavra duende? É e- não é- só isso: uma figurinha frágil que anda, por aqui e por ali, na sua leveza quase etérea.
Uma das primeiras histórias dela foi, aliás, a daquele dia de vendaval em que ela, assim leve e etérea, foi projectada ao chão, pelo vento, depois de ter girado e girado como uma folha seca. 
Pensei na bela pintura de Hocusai, Dia de vento outonal, que é linda!
- Salvou-me, contava ela, um senhor ucraniano que parou a carrinha, de propósito, para me ir levantar. E me protegeu de encontro ao carro.
Parecia assustada ainda. Continuou, indignada.
- E parti três dentes! A porta da carrinha, sabes, ia voando!
Com tudo o que se vê dos furacões que percorrem o mundo, fiquei preocupada. Tinha frente aos olhos outras imagens de terror!
- Três dentes? Isso foi horrível!
Encolhe os ombros e diz-me:
- Sabes, adoro a natureza. E os animais. E tu?

Pelas histórias que me conta, sei que é verdade. Além disso, basta ver a cadela, velhinha, deitada num belo colchão com almofada. E a conversa cheia de ternura, que faz com ela, elucida-me. 
Tem um gato enorme, que pesa sete quilos, mas esse ainda não o vi. Sei que existe pois há dias confiou-me que a mãe vem visitá-la e que não quer ficar em casa dela por causa do gato.
Renoir, O gato a dormir

- Ela não quer estar na minha casa, sabes porquê? Porque acha que o meu gato pode comer o mini-cão dela, um chiwawa ou coisa do género. Pesa um quilo só! Imaginas?
E continuamos a conversar. Ela vai-me cortando o cabelo. Ah, porque ainda não disse que a Marion é a melhor cortadora de cabelos curtos que conheço! E eu uso sempre o cabelo muito curto. Desde miúda...
Ela vai avisando, séria:
- Não mexas a cabeça, nem um milímetro! Eu tenho que ver a tua cabeça sempre na mesma posição. É quase matemático. Uma esquadria ou lá como lhe chamam.
Imobilizo-me por uns minutos e ela continua a falar.
- Tens uns pombinhos na varanda, não é? Sabes que eu tive a minha varanda cheia de caracóis?

- O quê?!
E pus-me a rir porque me lembrei de uma história hilariante horrorosa da Patricia Highsmith que é uma pestezinha.  

Dizia Graham Greene, (no prefácio aos Contos), que o mundo dela era “irracional e claustrofóbico”. Entramos sempre nele “com a sensação de um perigo pessoal" e raramente imaginamos o desfecho dos seus livros(1).
 Alguém leu, por acaso, “O observador de caracóis”? Se não leu, não leia se não tem os nervos bem fortes! 
O conto começa assim: Nada mais insignificante do que um caracol. Mas a vida naquela casa nunca mais foi a mesma. Sobretudo desde aquela noite."


- Encontrei um caracol na salada e tive pena dele. Fui pô-lo nas flores e nunca pensei que eles se reproduzissem assim! É verdade que eu os ia alimentando sempre bem com muita alface fresca.
Eu continuava a rir-me, interiormente. Pobre observador de caracóis, pobre Mr. Knoppert, que os observava, inconsciente, na sua cave!
- Não imaginas! De repente, eram muitos. Acreditas que devo ter tido lá uns trezentos caracóis?
Achei exagerado mas quem era eu para ter uma opinião? Nunca tive caracóis na varanda, só pombos, e isso é muito diferente. O que conheço de caracóis é do livro da Highsmith. Ela não parava:
- O pior é que quando voltei para Paris, a minha senhoria matou-os todos. E telefonou-me a dizer: ‘tinhas uma praga de caracóis mas eu dei cabo deles todos! As persianas nem se abriam dum lado’…
Agora era ela que se ria.
- Haha, ela é tão parva! Não podes imaginar…
Fiquei à espera do resto, mas ela mudou para outra conversa dentro do mesmo assunto.
- Um dia no supermercado vi um saco de caracóis do mar à venda... Para cozinhar, claro.

Adivinhei que vinha dali mais uma história parecida com a anterior.
- Sabes o que fiz?
- Não.
Mas calculava que os tivesse comprado.
- Comprei-os! E sabes o que fiz depois?
- Não.
Mas também calculava.
- Fui à Praia da Poça ao pé das rochas e deixei-os lá todos.
Ficou pensativa.

- O que achas que lhes sucedeu? Uma amiga disse-me que tinha dado cabo da vida, naquele bocado de mar, porque eles se reproduzem muito…
Eu não sabia de caracóis do mar, mas não conseguia deixar de sorrir. E levantei a cabeça, a rir às gargalhadas.
- Ah, Marion, Marion!
- Está quieta com a cabeça senão corto-me!
De facto usa uma navalha pequenina japonesa que corta imenso. E cortou-se mesmo. Umas gotinhas de sangue pingaram do dedo mindinho.
- Desculpa…
- Não faz mal. Estou habituada. Não te mexas!
Entretanto, o telemóvel dela toca, toca.
- Mais clientes! Posso atender? Não gosto nada de interromper os cortes!
 - Responde, claro!
Quando desligou, protestou:
- Custa-me a perceber ainda as portuguesas. Eu digo: "amanhã não posso atender, está tudo cheio. Só no dia tal à hora tal". E sabes o que me dizem? ‘Ai, mas tem a certeza? Não pode ser amanhã?’ Se eu não tivesse a certeza, por que é que dizia?  É de loucos!
Concordei. Já notei esse hábito de “tentar” convencer os outros mesmo depois de saberem que é impossível.
- Sim. É de loucos!
- Outra coisa que eu não entendo e vou-te contar. Na quarta-feira, que é a minha folga, saí de casa por causa do gato e a porta fechou-se com o vento. As chaves ficaram lá dentro, em cima da mesa.
- Ah! E o que fizeste?
- Sei lá! Tinha a cabeça perdida. Tive sorte porque a janela estava aberta e a mesa é mesmo ao pé da janela. Fui buscar uma cana ao jardim da vizinha e pus-me à pesca das chaves.
- Que sorte!
- O pior é que, enquanto fazia aquela ginástica toda, passou uma vizinha que me perguntou se podia cortar-lhe o cabelo. Eu disse: ‘não vê que estou à procura das chaves?’ E ela não se calava e desconcentrava-me! Isto tem sentido?
Não tinha sentido, claro. E Marion continuava:
- Queres ouvir outra história?
- Quero! Adoro as tuas histórias!
-A minha mãe é um bocado pírulas mas tem bom coração como eu. Um dia, entrou um passarinho pela janela da nossa sala. Le pauvre, tinha uma perna partida.
- E depois?
- Tratei-o eu. Com um palito de dentes, a fazer de tala. Era pequenino! Chamou-lhe Gaston.
Ria-se, a pensar na própria história. Eu olhei para ela no espelho e vi os seus olhinhos divertidos detrás dos óculos de aros vermelhos, muito modernos, e a figura um pouco “trangalhadanças” da minha amiga. E ri-me também.
Kandinsky, Jardim em Murnau

- Já te mexeste!
- Desculpa, Marion.
- Está bem, mas tem cuidado! O passarinho curou-se. E um dia a minha mãe decidiu que tínhamos de o soltar no parque. E lá fomos as duas. Estava um dia lindo e havia muitas flores. A minha mãe largou-o e disse: “Voa, Gaston!”
Van Gogh, Jardim florido
- E ele voou?
- Claro! O pior foi que a minha mãe se arrependeu logo. E ia todos os dias ao parque chamar: ‘Gaston! Gaston!’

Como podíamos não rir?  Rimo-nos as duas, mas a verdade é que, de repente, pensei: “E os meus pombos? Será que quando voarem eu vou para a janela chamar: César! Alexandre Magno! Voltem!

Bem, não sei se sabiam mas estes são os nomes que dei aos meus pombos. O Diogo chamou César ao mais crescido e eu achei que o outro só poderia chamar-se Alexandre o Grande, para não se sentir diminuído! 
Mania das grandezas, eu sei!

7 comentários:

  1. Essa sua amiga Marion deve ser cá um ponto!! Imagino-as às duas na galhofa por causa das histórias divertidas que ela conta!

    Então já deu nomes aos pombos...ainda não tinha contado, não...e realmente não fez isso de ânimo leve: nomes sonantes, pois então!

    Eu não digo? Ainda vai ter saudades deles quando se forem embora!

    Gostei das pinturas, gostei das histórias, gostei do post!!

    Um beijinho grande:)

    ResponderEliminar
  2. ~ A falta que me faz uma Marion como essa!
    ~ Embora não use cabelos curtos...

    ~~~~~ Beijinhos. ~~~~~~~~~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

    ResponderEliminar
  3. Boa noite!
    Ando mesmo lendo as suas posdtagens e me encantando!
    Por hoje, eu daria um tudo para cortar meu cabelo com a Marion ... rindo aqui. A leitura prendeu-me do começo ao fim.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  4. Deliciosas estas histórias (verídicas) da amiga Marion...
    Não me importava de ficar horas a ouvi-la!
    Amiga, não sei se vai para a varanda chamar pelos pombinhos quando voarem para outras paragens, mas que tão cedo não se vai esquecer deles, acredito!

    Adorei tudo!
    Um beijinho.:))

    ResponderEliminar
  5. Também queria ter uma amiga como a Marion! Até talvez deixasse que ela me cortasse o cabelo curtinho... Gostei muito, sorri, ri ... e que bonita é aquela fotografia do jardim, humm... faz-me lembrar qualquer lugar especial... Bj !
    Mamé

    ResponderEliminar
  6. A vida da Marion é interessante de certeza, e a vossa relação também. É bom estar com pessoas com as que se estabelece essa " corrente de simpatia" e cumplicidade. Larga vida ao vosso encontro, que te corte muito cabelo e te conte muitas histórias! Fiquei a gostar mais de caracóis, que não são bichos da minha devoção...

    ResponderEliminar