“Vento
de Inverno
Que
empurras para o mar
O
sol poente”
(Sôseki)
Acabei
de ler o livro Nos Mares do Fim do Mundo,
de Bernardo Santareno. Conheci Bernardo Santareno, aliás Martinho do Rosário,
que foi grande amigo do Manuel a quem ele chamou sempre Manolo. Ainda solteira,
fomos juntos ver a estreia d' O Lugre no Teatro D. Maria
II. Era o meu primeiro espectáculo a sério, num grande teatro da capital, eu
que vinha de Portalegre onde não havia um D. Maria, é certo, mas onde vi algumas boas peças, por companhias ambulantes, como a de Rafael de Oliveira.
Anos depois,
acabados de casar, íamos encontrar-nos com ele, de vez em quando, na pastelaria ‘Paraíso’. Era
médico e trazia-nos amostras de remédios, vitaminas, para não gastarmos dinheiro.
Escreve
Santareno, na nota de apresentação da 1ª edição: “o livro foi em grande parte escrito a bordo do arrastão ‘David
Melgueiro’, na campanha de 1957, a primeira em que servi na frota bacalhoeira,
como médico”.
o arrastão David Melgueiro
Um
ano depois, fará outra campanha, a bordo do ‘Senhora dos Mares’, e do ‘Navio Hospital
Gil Eannes’ (o segundo Navio Hospital Gil Eanes, construído em 1955), em 1958.
o Gil Eannes
“Assim, pude, de facto, conhecer (…) aspectos
da vida dos pescadores bacalhoeiros portugueses, em mares da Terra Nova e da
Gronelândia (...)”
E pergunta : "Serei capaz? São mil e tantos homens entregues aos meus cuidados, confiantes na minha proficiência médica. Estarei eu preparado para tal?"
E começa a aventura e o desafio. É do mar e do frio e da solidão dos homens que falam estas histórias. Do medo, da alegria e das invejas. Da pureza e do desencanto.
E começa a aventura e o desafio. É do mar e do frio e da solidão dos homens que falam estas histórias. Do medo, da alegria e das invejas. Da pureza e do desencanto.
E
do mar. O mar é senhor e rei e decide tudo. Sim porque o mar é a personagem
principal do livro: na sua indiferença assassina, está sempre presente. O
mar é o amigo que serve de ganha-pão, “mar bom” ou “marzinho” como lhe chamam
nos momentos em que o barco se enche de peixes.
"mar bom”, aguarela de Luís Tinoco de Faria
“(…) o convés está cheio de
peixes, branco-acinzentados, por vezes enormes, ainda vivos…
“Vestidos com roupas oleadas – chapéus,
casacos e saiotes de cor amarela, castanha ou negra, botas altas de borracha e
luvas grossas de lã (…) Abrem o peixe, separando para um lado o precioso fígado
(…) outros cortam as cabeças dos bacalhaus utilizadas para farinha, os outros,
os escaladores, cortam o peixe na vertical, espalmando-o em seguida, depois de
lhe tirarem a coluna vertebral. (…) Assim, dias seguidos, semanas, meses!”
E
o autor espanta-se da resistência destes homens:
“E aqueles homens que, lá em
baixo, trabalham o peixe? Aquelas míseras caras barbadas, exaustas, aqueles
gestos mecanizados sem um alento fresco de prazer ou de graça? Estão vivos
aqueles homens?!”
Naquele universo concentracionário, fechados entre céu e mar, entre convés e
beliches, existe a promiscuidade, necessária e insuportável, em que se criam
ódios, impaciências, situações trágicas, onde, por uma insignificância se podia
morrer ou matar.
“Os homens são como uma penumbra entre a vida
e a morte.”
“Fitei com atenção o doente: cerca de 20
anos, pálido de anemia e de angústia. (…) Um medo patológico, de entranhado
terror contra o mar e principalmente contra o navio.”
Um
único desejo: voltar para terra. E o médico consegue mandá-lo embora, no navio “Pádua”
que ia abastecer-se em 'St. John'.
St. John's, na Terra Nova
Os perigos podem acorrer a cada momento. Basta o mar eriçar-se, em ondas encapeladas, abrindo sulcos profundos onde os grandes arrastões carregados de bacalhau podem afundar-se.
O naufrágio do “Maria da Glória”, bombardeado por um submarino durante a segunda guerra, era outra das histórias que o autor ouviu da boca do Ti’ Zé Caçoilo, numa dessas noites de calma.
“Névoa, “snow. Nenhum outro navio no mar, a perder de vista. Atingido, o velho veleiro afunda-se e os tripulantes conseguem refugiar-se nos botes e afastar-se. Quatro botes com oito homens. Dos trinta e dois, ao fim de 11 dias, 7 são salvos – descobertos por um avião americano.”
E seguem-se outros contos de naufrágios, de afogamentos, de revoltas. Assim, recordando, o tempo parece passar mais depressa.
Mar e céu, Luís Tinoco de Faria
Caspar David Friederich, Naufrágio
“Névoa, “snow. Nenhum outro navio no mar, a perder de vista. Atingido, o velho veleiro afunda-se e os tripulantes conseguem refugiar-se nos botes e afastar-se. Quatro botes com oito homens. Dos trinta e dois, ao fim de 11 dias, 7 são salvos – descobertos por um avião americano.”
Eliseo Roig, Naufrágio
E seguem-se outros contos de naufrágios, de afogamentos, de revoltas. Assim, recordando, o tempo parece passar mais depressa.
Como a rebelião, a bordo do "Rio Lima", a caminho da Gronelândia, a história contada,
agora, pelo Ti’ Rufino.
“Nenhum navio português s’ astreveu a pescar no tal mar.
Porque carga de água há-de ser a gente os primêros? (...)Parece
que o gelo é tanto que mais duma vez lá têm ficado barcos prisonêros”, continua
o velho pescador.
Caspar D. Friederich, Naufrágio
Eram os medos ancestrais, os fantasmas das almas mortas. “Almas do outro mundo”.
E o capitão, o Cajeiro, reage brutalmente. "O homenzarrão, a tremer de cólera, batia com as botifarras nas tábuas do sobrado: "Eh, cambada de madraços! eh, punhado de cobardes! Conspirais?"
O Ti' Rufino explica ao capitão que não é nada contra ele, é outra coisa: "Os homens arreceiam esses mares estranhos". O capitão rebate, com segurança: "E quem lhes disse que o mar da Gronelândia é pior que este aqui da Terra Nova? Tenham vergonha nessas caras!" e
obriga-os a continuar viagem. E o barco volta a Portugal, a abarrotar de peixe da
Gronelândia!
Pequenos
intermezzi fazem-nos rir, com
ternura. Como o da “Gigi”, a coelhinha que,
destinada à panela, consegue fugir. Vendo-a, abre-lhe a porta do quarto e
esconde-a debaixo da cama. Ali fica até ao fim da campanha. Só Tody, um dos cães do
navio, sabe. A verdade é que não gostou, porque passou a
olhá-lo de lado.
Também terno é o salvamento da focazinha recém-nascida,
perdida da mãe, à deriva no mar.
Alimentada com leite e acarinhada por aqueles homens duros, que se habituam a ela, Clara é amada! Tem o seu banho dentro de uma ampla celha quando lhe apetece, se não saltita pelo convés e vai deitar-se a descansar.
Alimentada com leite e acarinhada por aqueles homens duros, que se habituam a ela, Clara é amada! Tem o seu banho dentro de uma ampla celha quando lhe apetece, se não saltita pelo convés e vai deitar-se a descansar.
“E a viagem passou-se neste
ano mais depressa, mais rica de calor, mais macia de ternura.” (pg 134)
De
que fala este livro, afinal? De gentes pobres, lançadas para os mares do fim do mundo, para os gelos e a neve que cai todo o Inverno, na
pesca do bacalhau. Afrontando perigos e tarefas sobre-humanas. "Em perigos e guerras esforçados/ mais do que permitia a força humana", lá dizia Camões.
De
coragem e de medos, de orgulho e responsabilidade, de sorte e de azar. De
histórias dos jovens principiantes e dos “velhos” experientes. Quantos viram morrer o pai,
no mar. E têm medo de ver morrer os filhos. A pior “sina” de um pescador é
que os filhos decidam ser pescadores!
O livro fala
das esperanças de comprar uma casinha, ou de deixar o mar para sempre. E lá anda a morte que espreita a cada saída, na “pesca à linha” do bacalhau (que só os
portugueses fizeram).
Gronelândia
E lá vão nos frágeis botes, os dóris,
todos em redor, mas cada um sozinho. Vão de manhã e voltam ao sol-posto:
“É quase sol-posto. O oceano está agora calmo, azul profundo, sob um céu negro-violeta: há no mar uma expressão de generosa bonomia.” (pg.17)
“É quase sol-posto. O oceano está agora calmo, azul profundo, sob um céu negro-violeta: há no mar uma expressão de generosa bonomia.” (pg.17)
O
mar é a figura dominante, o deus que tudo pode e ao qual se devem submeter. Outros
personagens são os homens. Figuras simples e heróicas. Manhosas ou ingénuas.
Homens que matam porque os nervos não aguentam. Homens que se suicidam. Que
naufragam. E os que se salvam no último momento com a força do desespero e dos
remos, animados pelos gritos dos outros, já no barco-mãe: “Rema, rema! Falta
pouco!"
Turner, Tempestade
Noutras ocasiões, perdem-se uns dos outros, na névoa traiçoeira, e nunca mais se vêem. São
encontrados, por outros barcos, dias mais tarde, no limite das forças, alguns
mortos já.
Há ainda os que se afogam mesmo ao pé do navio. Desistem, perto da salvação, e deixam-se ir ao fundo. Inútil
tudo. Deus poderia salvá-los, mas Deus não estava ali.
Pietà con angeli, de Giovanni Bellini
“Montes, milhares de cabeças de
bacalhau. Cortadas e apinhadas enchem o convés: os olhos redondos e vítreos, as
bocas abertas e torcidas… São como a visão alucinada,
multiplicada por espelhos demoníacos de certa humaníssima expressão: surpresa,
terror e morte… (pg.66)
Os
“verdes”, os jovens pescadores inexperientes, com as suas crenças e ilusões, os seus modos de falar
diferentes, os sonhos da juventude. O que os levou ali? A aventura desejada?, foi um desgosto que os empurrou?, uma fuga nem eles sabem a quê?
Os “maduros”, vindos de outras campanhas do bacalhau de há 30, ou 20 anos. A quem já morreram pais e filhos, no mar. Para quem o mar é uma entidade que os atemoriza e que respeitam.
Caspar David Friederich, Naufrágio da Esperança
Os “maduros”, vindos de outras campanhas do bacalhau de há 30, ou 20 anos. A quem já morreram pais e filhos, no mar. Para quem o mar é uma entidade que os atemoriza e que respeitam.
um dóri
Que conhecem a morte que ronda por ali. E que te “marca”,
enquanto dormes, e te vem buscar pela manhã - quando estás no teu dóri minúsculo, só, frente à grandeza do mar e das ondas.
Mar e céu de trovoada, aguarela de Luís Tinoco de Faria
“No fundo do mar, o peixe, as pérolas, as sereias e a Morte; à superfície, só espuma
branca e água azul. No fundo do poço, a noite escura, a sombra ondeada das
plantas, o verde corpo dos suicidas, o eco longínquo do Mistério, os olhos sem
face do Terror; no cimo, apenas a prata redonda da lua e o reflexo adolescente
de Narciso”.(pg. 38)
Um sonho
ou um pesadelo que tiveste e, logo, na manhã em que desapareces,
todos recordam o que lhes contaste: que estavas preso, no fundo do mar, onde
foras buscar conchinhas para os teus filhos, e de repente fitas escorregadias prendem-te os
pés e impedem-te de subir. Todos sabiam já: fora a morte que te marcara na noite em que sonhaste.
Mas
há dias de esperança em que o mar tem outra cor e o sol brilha de outro modo.
aguarela de Luís Tinoco de Faria
“Mar bom, marzinho: um cinzento bonito e
brilhante, ternamente ondulado. (...) lá longe, a costa, píncaros de
neve claríssimos, luminosos e amáveis como um riso.
E sol: um solzito semi-acordado que, friorento, tenta, neste começo de Primavera, espreguiçar-se por aqui, sobre os bancos da Terra Nova. Cem, milhares de blocos de gelo oscilam graciosamente ao sabor das ondas.” (pg 26)
E sol: um solzito semi-acordado que, friorento, tenta, neste começo de Primavera, espreguiçar-se por aqui, sobre os bancos da Terra Nova. Cem, milhares de blocos de gelo oscilam graciosamente ao sabor das ondas.” (pg 26)
“As asas e os gritos das gaivotas
riscam com quentes sons vermelhos e vivos, a brancura gelada do silêncio de que
é feito o mar.” (pg.54)
“Manhã de sol (…) o castelo da proa e as
baleeiras cobertas de neve, o ar mordido por pequenos dentes dum branco
imaculado. Cada um dos nossos nervos, tenso em arco, enfrenta o frio. Pela
primeira vez neste ano, vai ser lançada a rede ao mar.” (pg.15)
o sol da meia-noite
Luís Tinoco de Faria
“Mais uma vez o sol-poente na Terra Nova. No
céu muito puro por cima de nós, estende-se, lá para o ocaso, uma rede de nuvens
brandas formando delicadas malhas por onde se escoa o azul doce e levemente
róseo… Um mar liso, cheio de pequenos blocos de gelo, agora irisados de violeta
e oiro.”
“Sinto-me transido, cingido em volta do
tronco até a dispneia angustiosa, inquieto, nebuloso mas profundamente
penetrado de um terror instintivo. O mar é cinzento, o céu é cinzento, de
cinzas ainda esta névoa densíssima que nos rodeia.” (pg.66)
A névoa e a ligeira neblina, a neve e os gelos, os icebergs da Terra Nova, a insegurança de cada momento. Surpresa, terror e morte...
Como os peixes mortos, no convés, igual é a expressão dos homens: "visão alucinada, multiplicada
por espelhos demoníacos de certa humaníssima expressão: surpresa, terror e
morte…"
E o navio-hospital Gil Eannes chega, enfim, ao porto. O cabo Farewel. A viagem acabara para o autor. Tinha passado 6 meses no mar.
“Gronelândia,
perto do cabo Farewel. Uma névoa fina, infinitamente dividida, sobre um mar
cinzento oleoso, onde a luz translúcida se oculta, velada e frígida.”
E o navio-hospital Gil Eannes chega, enfim, ao porto. O cabo Farewel. A viagem acabara para o autor. Tinha passado 6 meses no mar.
o cabo Farewel
“Faço exame de
consciência: cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro?, o amigo sereno e
infatigável (ia a escrever “o pai”) de que estes mil e tantos homens
precisavam? Nem sempre. No entanto há uma verdade que me sossega: eu amo estas gentes.
E eles sentem que é assim." (pg,236)
No
fim e ao cabo, é de uma epopeia que fala Santareno. Melhor do que ninguém será
ele a explicá-lo, quando na 'dedicatória' diz:
“A todos os pescadores
bacalhoeiros portugueses,
que têm o riso claro e feroz,
que sempre ocultam nos olhos um
acento de morte,
que todos os dias, naturalmente,
fazem milagres de força,
que, se a pesca adrega de ser
boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos…
Que são tipos perfeitos da raça.”
Nota biográfica: Bernardo
Santareno (de seu nome António Martinho do Rosário) nasceu em Santarém, em 19 de
Novembro de 1920. Tira o curso de Medicina em Coimbra, em 1950. Especializa-se
em Psiquiatria. Em funções de médico, embarca nos navios pesqueiros, os bacalhoeiros, que pescam nos mares da Gronelândia.
É considerado um dos grandes
dramaturgos portugueses. Morre em Lisboa, em 1980.
Nota
histórica: A Terra Nova e a Gronelândia (Canadá) foi John Cabot (o veneziano
Giovanni Caboto, nascido em Génova) que descobriu, ao serviço da Coroa de
Inglaterra, em 1497.
Que, no entanto, há muito era conhecida dos pescadores
portugueses e que o Mapa-Planisfério de Cantini reconhece como portuguesa, em 1502.
João Gaspar Corte-Real, Museu dos Açores
De
facto, João Gaspar Corte-Real teria passado ao largo da Terra Nova, ao serviço de armadores dinamarqueses, em 1472.
Região
conhecida como Terra Nova do Bacalhau! Sim. Em português!
Links:
Bonita homenagem a um grande escritor e humanista
ResponderEliminarFantástico Bernardo Santareno, poeta e sobretudo um dos dramaturgos indispensáveis do sec XX português, que permanecerá, sem dúvida, na História da Literatura.
ResponderEliminarFantásticos também esses homens atormentados com vidas tão duras, que felizmente já não são assim para os pescadores de hoje.
Que sorte tens, Janinha, de ter conhecido gente interessante que de certeza te marcou. Inveja me dás!
Gostei muito de ler o post, beijinho grande
Que post tão interessante, como são sempre.
ResponderEliminarA Maria João conheceu pessoas muito interessantes, como diz a Maria, mas porque tanto a Maria João como o Manuel também o são e pertencem ao mundo dos criadores. Também me sinto orgulhosa de a ter um bocadinho minha amiga:)
Um beijinho grande:)
Sim, tive a sorte de poder encontrar gente um pouco especial... Vocês as duas por exemplo fazem parte dessas pessoas!
ResponderEliminarGostei muito de ler o seu registo.
ResponderEliminarNunca li o livro que indica mas logo que possa irei procurá-lo.
Este ano é um pouco duro mas irei tentar ler...
Beijinhos.:))
Deliciosa leitura, imagens e emoções.
ResponderEliminarAinda degustando ... muito agradecia e um beijinho.
~~~
ResponderEliminar~ Não se trata apenas da sinopse do livro do seu amigo,
é, acima de tudo, uma homenagem ao escritor e aos antigos
pescadores da Terra Nova.
Portugal não honrou o heroísmo destes homens, foi incapaz
de modernizar a pesca em alto mar, pelo que, hoje compramos
à Noruega e somos um país de navegantes sem barcos...
~ Gratíssima pela interessante sugestão de leitura, MJ.
~~~ Beijinhos. ~~~