sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Estas histórias que nos vêm do mar




“Vento de Inverno
Que empurras para o mar
O sol poente”
(Sôseki)

Acabei de ler o livro Nos Mares do Fim do Mundo, de Bernardo Santareno. Conheci Bernardo Santareno, aliás Martinho do Rosário, que foi grande amigo do Manuel a quem ele chamou sempre Manolo. Ainda solteira, fomos juntos ver a estreia d' O Lugre no Teatro D. Maria II. Era o meu primeiro espectáculo a sério, num grande teatro da capital, eu que vinha de Portalegre onde não havia um D. Maria, é certo, mas onde vi algumas boas peças, por companhias ambulantes, como a de Rafael de Oliveira.

Anos depois, acabados de casar, íamos  encontrar-nos com ele, de vez em quando, na pastelaria ‘Paraíso’. Era médico e trazia-nos amostras de remédios, vitaminas, para não gastarmos dinheiro.
Escreve Santareno, na nota de apresentação da 1ª edição: “o livro foi em grande parte escrito a bordo do arrastão ‘David Melgueiro’, na campanha de 1957, a primeira em que servi na frota bacalhoeira, como médico”.
o arrastão David Melgueiro

Um ano depois, fará outra campanha, a bordo do ‘Senhora dos Mares’, e do ‘Navio Hospital Gil Eannes’ (o segundo Navio Hospital Gil Eanes, construído em 1955), em 1958.
o Gil Eannes

Assim, pude, de facto, conhecer (…) aspectos da vida dos pescadores bacalhoeiros portugueses, em mares da Terra Nova e da Gronelândia (...)”
E pergunta : "Serei capaz? São mil e tantos homens entregues aos meus cuidados, confiantes na minha proficiência médica. Estarei eu preparado para tal?"
E começa a aventura e o desafio. É do mar e do frio e da solidão dos homens que falam estas histórias. Do medo, da alegria e das invejas. Da pureza e do desencanto.
E do mar. O mar é senhor e rei e decide tudo. Sim porque o mar é a personagem principal do livro: na sua indiferença assassina, está sempre presente. O mar é o amigo que serve de ganha-pão, “mar bom” ou “marzinho” como lhe chamam nos momentos em que o barco se enche de peixes.
"mar bom”, aguarela de Luís Tinoco de Faria

“(…) o convés está cheio de peixes, branco-acinzentados, por vezes enormes, ainda vivos…

Chegados à Terra Nova, começam o tratamento do bacalhau. A dura faina de cortar, espalmar e secar o bacalhau. 
Vestidos com roupas oleadas – chapéus, casacos e saiotes de cor amarela, castanha ou negra, botas altas de borracha e luvas grossas de lã (…) Abrem o peixe, separando para um lado o precioso fígado (…) outros cortam as cabeças dos bacalhaus utilizadas para farinha, os outros, os escaladores, cortam o peixe na vertical, espalmando-o em seguida, depois de lhe tirarem a coluna vertebral. (…) Assim, dias seguidos, semanas, meses!”

E o autor espanta-se da resistência destes homens:
“E aqueles homens que, lá em baixo, trabalham o peixe? Aquelas míseras caras barbadas, exaustas, aqueles gestos mecanizados sem um alento fresco de prazer ou de graça? Estão vivos aqueles homens?!”

Naquele universo concentracionário, fechados entre céu e mar, entre convés e beliches, existe a promiscuidade, necessária e insuportável, em que se criam ódios, impaciências, situações trágicas, onde, por uma insignificância se podia morrer ou matar.

Os homens são como uma penumbra entre a vida e a morte.”

O autor observa, ampara, participa, ouve. E vai contando histórias. Que falam de superstição e religiosidade, de amizade infantil, de cansaço e desespero. De suicídio. Ou de tentativas, como a do moço João que espeta uma faca no peito, logo abaixo do coração, ferida profunda que atinge as costelas.
Fitei com atenção o doente: cerca de 20 anos, pálido de anemia e de angústia. (…) Um medo patológico, de entranhado terror contra o mar e principalmente contra o navio.”
Um único desejo: voltar para terra. E o médico consegue mandá-lo embora, no navio “Pádua” que ia abastecer-se em 'St. John'.
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St. John's, na Terra Nova


“Queres ir no “Pádua”? Os olhos do rapaz enchem-se de aleluias. Vi-o partir! Com uma delicadeza esquisita, os companheiros levam-no em braços até ao bote. (…) Adeus, João! Voltarei a encontrar-te? Que será de ti? Adeus! Boa sorte, rapazinho! Não voltes! Não voltes! Não voltes!!” (pg.148)

 Os perigos podem acorrer a cada momento. Basta o mar eriçar-se, em ondas encapeladas, abrindo sulcos profundos onde os grandes arrastões carregados de bacalhau podem afundar-se. 
Mar e céu, Luís Tinoco de Faria

O naufrágio do “Maria da Glória”, bombardeado por um submarino durante a segunda guerra, era outra das histórias que o autor ouviu da boca do Ti’ Zé Caçoilo, numa dessas noites de calma. 
Caspar David Friederich, Naufrágio

Névoa, “snow. Nenhum outro navio no mar, a perder de vista. Atingido, o velho veleiro afunda-se e os tripulantes conseguem refugiar-se nos botes e afastar-se. Quatro botes com oito homens. Dos trinta e dois, ao fim de 11 dias, 7 são salvos – descobertos por um avião americano.”
Eliseo Roig, Naufrágio

E seguem-se outros contos de naufrágios, de afogamentos, de revoltas. Assim, recordando, o tempo parece passar mais depressa.  

Como a rebelião, a bordo do "Rio Lima", a caminho da Gronelândia, a história contada, agora, pelo Ti’ Rufino. 
Caspar D. Friederich, Naufrágio

Nenhum navio português s’ astreveu a pescar no tal mar. Porque carga de água há-de ser a gente os primêros? (...)Parece que o gelo é tanto que mais duma vez lá têm ficado barcos prisonêros”, continua o velho pescador. 
Eram os medos ancestrais, os fantasmas das almas mortas. “Almas do outro mundo”.
E o capitão, o Cajeiro, reage brutalmente. "O homenzarrão, a tremer de cólera, batia com as botifarras nas tábuas do sobrado: "Eh, cambada de madraços! eh, punhado de cobardes! Conspirais?" 
O Ti' Rufino explica ao capitão que não é nada contra ele, é outra coisa: "Os homens arreceiam esses mares estranhos". O capitão rebate,  com segurança: "E quem lhes disse que o mar da Gronelândia é pior que este aqui da Terra Nova? Tenham vergonha nessas caras!" e obriga-os a continuar viagem. E o barco volta a Portugal, a abarrotar de peixe da Gronelândia!
Pequenos intermezzi fazem-nos rir, com ternura. Como  o da “Gigi”, a coelhinha que, destinada à panela, consegue fugir. Vendo-a, abre-lhe a porta do quarto e esconde-a debaixo da cama. Ali fica até ao fim da campanha. Só Tody, um dos cães do navio, sabe. A verdade é que não gostou, porque passou a olhá-lo de lado. 
Também terno é o salvamento da focazinha recém-nascida, perdida da mãe, à deriva no mar. 
Alimentada com leite e acarinhada por aqueles homens duros, que se habituam a ela, Clara é amada! Tem o seu banho dentro de uma ampla celha quando lhe apetece, se não saltita pelo convés e vai deitar-se a descansar.
E a viagem passou-se neste ano mais depressa, mais rica de calor, mais macia de ternura.” (pg 134)

De que fala este livro, afinal? De gentes pobres, lançadas para os mares do fim do mundo, para os gelos e a neve que cai todo o Inverno, na pesca do bacalhau. Afrontando perigos e tarefas sobre-humanas. "Em perigos e guerras esforçados/ mais do que permitia a força humana", lá dizia Camões.
De coragem e de medos, de orgulho e responsabilidade, de sorte e de azar. De histórias dos jovens principiantes e dos “velhos” experientes. Quantos viram morrer o pai, no mar. E têm medo de ver morrer os filhos. A pior “sina” de um pescador é que os filhos decidam ser pescadores!
O livro fala das esperanças de comprar uma casinha, ou de deixar o mar para sempre. E lá anda a morte que espreita a cada saída, na “pesca à linha” do bacalhau (que só os portugueses fizeram).
Gronelândia

E lá vão nos frágeis botes, os dóris, todos em redor, mas cada um sozinho. Vão de manhã e voltam ao sol-posto:
“É quase sol-posto. O oceano está agora calmo, azul profundo, sob um céu negro-violeta: há no mar uma expressão de generosa bonomia.” (pg.17)

O mar é a figura dominante, o deus que tudo pode e ao qual se devem submeter. Outros personagens são os homens. Figuras simples e heróicas. Manhosas ou ingénuas. Homens que matam porque os nervos não aguentam. Homens que se suicidam. Que naufragam. E os que se salvam no último momento com a força do desespero e dos remos, animados pelos gritos dos outros, já no barco-mãe: “Rema, rema! Falta pouco!"
Turner, Tempestade

Noutras ocasiões, perdem-se uns dos outros, na névoa traiçoeira, e nunca mais se vêem. São encontrados, por outros barcos, dias mais tarde, no limite das forças, alguns mortos já.
Há ainda os que se afogam mesmo ao pé do navio. Desistem, perto da salvação, e deixam-se ir ao fundo. Inútil tudo. Deus poderia salvá-los, mas Deus não estava ali.
                         Pietà con angeli, de Giovanni Bellini

“Montes, milhares de cabeças de bacalhau. Cortadas e apinhadas enchem o convés: os olhos redondos e vítreos, as bocas abertas e torcidas… São como a visão alucinada, multiplicada por espelhos demoníacos de certa humaníssima expressão: surpresa, terror e morte… (pg.66)

Os “verdes”, os jovens pescadores inexperientes, com as suas crenças e ilusões, os seus modos de falar diferentes, os sonhos da juventude. O que os levou ali? A aventura desejada?, foi um desgosto que os empurrou?, uma fuga nem eles sabem a quê?
Caspar David Friederich, Naufrágio da Esperança


Os “maduros”, vindos de outras campanhas do bacalhau de há 30, ou 20 anos. A quem já morreram pais e filhos, no mar. Para quem o mar é uma entidade que os atemoriza e que respeitam. 
um dóri
Que conhecem a morte que ronda por ali. E que te “marca”, enquanto dormes, e te vem buscar pela manhã - quando estás no teu dóri minúsculo, só, frente à grandeza do mar e das ondas.
Mar e céu de trovoada, aguarela de Luís Tinoco de Faria

 “No fundo do mar, o peixe, as pérolas, as  sereias e a Morte; à superfície, só espuma branca e água azul. No fundo do poço, a noite escura, a sombra ondeada das plantas, o verde corpo dos suicidas, o eco longínquo do Mistério, os olhos sem face do Terror; no cimo, apenas a prata redonda da lua e o reflexo adolescente de  Narciso”.(pg. 38)
 Luís Tinoco de Faria

Um sonho ou um pesadelo que tiveste e, logo, na manhã em que desapareces, todos recordam o que lhes contaste: que estavas preso, no fundo do mar, onde foras buscar conchinhas para os teus filhos, e de repente fitas escorregadias  prendem-te os pés e impedem-te de subir. Todos sabiam já: fora a morte que te marcara na noite em que sonhaste.

Mas há dias de esperança em que o mar tem outra cor e o sol brilha de outro modo.
aguarela de  Luís Tinoco de Faria

Mar bom, marzinho: um cinzento bonito e brilhante, ternamente ondulado. (...) lá longe, a costa, píncaros de neve claríssimos, luminosos e amáveis como um riso. 
E sol: um solzito semi-acordado que, friorento, tenta, neste começo de Primavera, espreguiçar-se por aqui, sobre os bancos  da Terra Nova. Cem, milhares de blocos de gelo  oscilam graciosamente ao sabor das ondas.” (pg 26)
“As asas e os gritos das gaivotas riscam com quentes sons vermelhos e vivos, a brancura gelada do silêncio de que é feito o mar.” (pg.54)

Manhã de sol (…) o castelo da proa e as baleeiras cobertas de neve, o ar mordido por pequenos dentes dum branco imaculado. Cada um dos nossos nervos, tenso em arco, enfrenta o frio. Pela primeira vez neste ano, vai ser lançada a rede ao mar.” (pg.15)
 o sol da meia-noite

Descrições de grande poesia e colorido que nos desenham o mar, o céu, as gaivotas, o sol da meia-noite, os esquimós e a água do mar de todas tonalidades e cores, a todas as horas do dia e da noite.
 Luís Tinoco de Faria

Mais uma vez o sol-poente na Terra Nova. No céu muito puro por cima de nós, estende-se, lá para o ocaso, uma rede de nuvens brandas formando delicadas malhas por onde se escoa o azul doce e levemente róseo… Um mar liso, cheio de pequenos blocos de gelo, agora irisados de violeta e oiro.”

Sinto-me transido, cingido em volta do tronco até a dispneia angustiosa, inquieto, nebuloso mas profundamente penetrado de um terror instintivo. O mar é cinzento, o céu é cinzento, de cinzas ainda esta névoa densíssima que nos rodeia.” (pg.66)

A névoa e a ligeira neblina, a neve e os gelos, os icebergs da Terra Nova, a insegurança de cada momento. Surpresa, terror e morte...
Como os peixes mortos, no convés, igual é a expressão dos homens: "visão alucinada, multiplicada por espelhos demoníacos de certa humaníssima expressão: surpresa, terror e morte…"
E o navio-hospital Gil Eannes chega, enfim, ao porto. O cabo Farewel. A viagem acabara para o autor. Tinha passado 6 meses no mar.
o cabo Farewel

Gronelândia, perto do cabo Farewel. Uma névoa fina, infinitamente dividida, sobre um mar cinzento oleoso, onde a luz translúcida se oculta, velada e frígida.”

Faço exame de consciência: cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro?, o amigo sereno e infatigável (ia a escrever “o pai”) de que estes mil e tantos homens precisavam? Nem sempre. No entanto há uma verdade que me sossega: eu amo estas gentes. E eles sentem que é assim." (pg,236)

No fim e ao cabo, é de uma epopeia que fala Santareno. Melhor do que ninguém será ele a explicá-lo, quando na 'dedicatória' diz: 

“A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses,
que têm o riso claro e feroz,
que sempre ocultam nos olhos um acento de morte,
que todos os dias, naturalmente, fazem milagres de força,
que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos…
Que são tipos perfeitos da raça.”


Nota biográfica: Bernardo Santareno (de seu nome António Martinho do Rosário) nasceu em Santarém, em 19 de Novembro de 1920. Tira o curso de Medicina em Coimbra, em 1950. Especializa-se em Psiquiatria. Em funções de médico, embarca nos navios pesqueiros, os bacalhoeiros, que pescam nos mares da Gronelândia. 
É considerado um dos grandes dramaturgos portugueses. Morre em Lisboa, em 1980.

Nota histórica: A Terra Nova e a Gronelândia (Canadá) foi John Cabot (o veneziano Giovanni Caboto, nascido em Génova) que descobriu, ao serviço da Coroa de Inglaterra, em 1497. 
Que, no entanto, há muito era conhecida dos pescadores portugueses e que o Mapa-Planisfério de Cantini reconhece como portuguesa, em 1502. 


João Gaspar Corte-Real, Museu dos Açores


De facto, João Gaspar Corte-Real teria passado ao largo da Terra Nova, ao serviço de armadores dinamarqueses, em 1472.
Região conhecida como Terra Nova do Bacalhau! Sim. Em português!

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7 comentários:

  1. Bonita homenagem a um grande escritor e humanista

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  2. Fantástico Bernardo Santareno, poeta e sobretudo um dos dramaturgos indispensáveis do sec XX português, que permanecerá, sem dúvida, na História da Literatura.
    Fantásticos também esses homens atormentados com vidas tão duras, que felizmente já não são assim para os pescadores de hoje.
    Que sorte tens, Janinha, de ter conhecido gente interessante que de certeza te marcou. Inveja me dás!
    Gostei muito de ler o post, beijinho grande

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  3. Que post tão interessante, como são sempre.
    A Maria João conheceu pessoas muito interessantes, como diz a Maria, mas porque tanto a Maria João como o Manuel também o são e pertencem ao mundo dos criadores. Também me sinto orgulhosa de a ter um bocadinho minha amiga:)

    Um beijinho grande:)

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  4. Sim, tive a sorte de poder encontrar gente um pouco especial... Vocês as duas por exemplo fazem parte dessas pessoas!

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  5. Gostei muito de ler o seu registo.
    Nunca li o livro que indica mas logo que possa irei procurá-lo.
    Este ano é um pouco duro mas irei tentar ler...
    Beijinhos.:))

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  6. Deliciosa leitura, imagens e emoções.
    Ainda degustando ... muito agradecia e um beijinho.

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  7. ~~~
    ~ Não se trata apenas da sinopse do livro do seu amigo,
    é, acima de tudo, uma homenagem ao escritor e aos antigos
    pescadores da Terra Nova.

    Portugal não honrou o heroísmo destes homens, foi incapaz
    de modernizar a pesca em alto mar, pelo que, hoje compramos
    à Noruega e somos um país de navegantes sem barcos...

    ~ Gratíssima pela interessante sugestão de leitura, MJ.

    ~~~ Beijinhos. ~~~

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