Um
dos primeiros livros portugueses que li foi A Morgadinha dos Canaviais. Depois, outros vieram. Camilo,
Eça, Alexandre Herculano fizeram-me companhia. No entanto, sempre associei Júlio Dinis à minha adolescência. E à Florinda!
Mais tarde, lendo os "Serões da província" quantas vezes pensei nos nossos "serões"! Quantos livros dele li nessas noites de serão.
Mais tarde, lendo os "Serões da província" quantas vezes pensei nos nossos "serões"! Quantos livros dele li nessas noites de serão.
Júlio Dinis, grande
criador de personagens femininas, associo-o à minha infância e à Florinda, que
era empregada na nossa casa, mais a Rosalina, que viera com 16 anos para
casa dos meus pais.
Zinaida Serebryakova, Camponesa
A Florinda gostou sempre de ler e adorava este escritor. Não a esqueço. Era uma pessoa cheia de sensibilidade e de inteligência! E que não pôde ir tão longe como deveria ter ido.
Zinaida Serebryakova, Mulher
Gostava de aprender, imitava, com coragem, tudo o que nós
fazíamos, desde andar de patins, às cópias, às leituras e, mais tarde, quando
chegámos ao Liceu, aprender inglês. O nosso serão começava logo depois do jantar, quando se acabava de arrumar a cozinha. E nessa arrumação participávamos todas.
Sentávamo-nos à roda da mesa da cozinha que tinha por baixo da camila uma braseira. Junto da chaminé, quentinhas, pois o fogão de lenha mantinha o calor, durante muitas horas.
As brasas e as cinzas quentes tornavam confortável a cozinha. E, sobretudo, aqueciam as costas da Florinda que se sentava sempre de costas viradas para o fogão.
Sentávamo-nos à roda da mesa da cozinha que tinha por baixo da camila uma braseira. Junto da chaminé, quentinhas, pois o fogão de lenha mantinha o calor, durante muitas horas.
As brasas e as cinzas quentes tornavam confortável a cozinha. E, sobretudo, aqueciam as costas da Florinda que se sentava sempre de costas viradas para o fogão.
E
começava a noite e os trabalhos: cópias, ditados, contas, leituras em voz alta ou, apenas, leitura.
Tínhamos decidido ensinar a ler a Rosalina e, pouco a
pouco, ela ia escrevendo e lendo. Era um orgulho para nós três, porque todas éramos professoras da Rosalina. A minha irmã mais velha tinha começado e, a seguir,
cada uma contribuía com mais ideias.
A Florinda essa aplicava-se na escrita, porque
tinha uma letra muito feia, dizia ela, e queria corrigi-la.
A
minha irmã pequenina gostava de fazer os ditados e de corrigir os erros dela,
sublinhando-os com grossos traços de lápis vermelho.
-
Flor! -chamava-lhe sempre Flor- Tens cinco erros e dez faltas!, comunicava, contente.
-
Não são erros, menina, é a minha letra, eu faço os “o” assim...
E
mostrava, escrevendo no caderno um “o” no caderno.
-
Não é nada disso, falta-lhe mas é o “o”!
-
Aqui está certo e a menina marcou erro...
- É uma falta de acento! Agora tens de levar umas reguadas…
E
falava, peremptória, cheia de si.
A
meio do serão, era a hora da leitura. Cada uma ia buscar o seu livro e ficávamos a
ler, com os braços apoiados na toalha de quadradinhos. Eu gostava de segurar a cabeça com a mão enquanto enrolava os cabelos nos dedos.
A
Rosalina tinha o caderno e o lápis na mão, escrevia duas linhas, cheia de sono e, passados
poucos minutos, estava a dormir. A Florinda embrenhava-se na história d’Os
Fidalgos da Casa Mourisca, cujo folhetim tínhamos ouvido na rádio. Ela já lera As Pupilas do Senhor Reitor, mas preferia os 'Fidalgos', creio. Lembro bem as capas da Livraria Civilização, capas simples, com ilustração a preto e branco.
De tempos a tempos, a Florinda parava, a “pedir um significado”.
Nessa altura, usávamos uns cadernos pequeninos, para os significados, que nos ajudavam a fixar as palavras novas, mas a Florinda não gostava deles, "não tinha paciência", dizia ela.
De tempos a tempos, a Florinda parava, a “pedir um significado”.
Nessa altura, usávamos uns cadernos pequeninos, para os significados, que nos ajudavam a fixar as palavras novas, mas a Florinda não gostava deles, "não tinha paciência", dizia ela.
-
O que é?, perguntava eu.
O
dicionário estava ao lado, mas queríamos saber o que ela procurava.
Às
vezes, sabíamos já o tal significado e, contentes, “ensinávamo-lo” à Florinda.
Ela
lia, atenta, seguindo o texto com um dedo que avançava, primeiro devagar,
depois a uma certa velocidade, à medida que ia ficando presa pelo enredo. Então,
esquecia-se de pedir os significados.
Zinaida Serebryakova, Mulher do campo
Via-lhe as mãos vermelhas, brilhantes, gastas das lavagens, do uso de produtos que as estragavam. Não havia cremes nem produtos para proteger a pele, nem luvas de borracha, nem esfregões suaves: era o espago, a soda cáustica, a areia para arear os tachos e panelas até brilharem e a cré para polir os metais.
Pensava: "Se calhar, vai sujar os livros com as mãos", mas não lhe dizia nada, não a queria magoar!
Zinaida Serebryakova, Menina a ler
Nunca nenhum livro ficou com nódoas porque a Florinda lavava muito bem as mãos, e limpava-as
no avental antes de ir para o serão.
O
livro -que lhe tínhamos oferecido no Natal- estava amachucado nos
cantos, e as páginas dobradas para “marcar” o sítio onde ficara no dia anterior. Tinha as folhas por vezes enrodilhadas porque pousava a cabeça em cima dele, ao adormecer. Por fim, ficava só eu a ler. Era a última a largar o livro.
George Elgar Hicks, Menina com boneca chinesa
A mais pequena fugira
para as brincadeiras dela, ou ia cantarolar para a sala até a nossa mãe a ir deitar. A mais
velha aborrecera-se e fora sentar-se ao pé do meu pai. E depois ia-se deitar, onde ficava acordada à espera que eu chegasse.
Eu
continuava a ler A Morgadinha dos Canaviais, engolindo páginas atrás de
páginas, como toda a vida fiz.
A minha mãe chamava, e ninguém a ouvia: a Florinda e a Rosalina dormiam a sono solto e eu estava perdida na leitura.
A minha mãe chamava, e ninguém a ouvia: a Florinda e a Rosalina dormiam a sono solto e eu estava perdida na leitura.
Zinaida Serebryakova, Menina a ler
E a minha mãe vinha à cozinha pôr um pouco de ordem. A Rosalina, de olhos estremunhados, as
farripas loiras da franja, despenteadas, espreguiçava-se. A Florinda, com a
cara em cima do livro, bem agarrada a ele com os dedos, resmungava que não estava a
dormir.
E levantavam-se da mesa. A Florinda apagava a braseira e a Rosalina ia arranjar o copo de leite para o meu pai.
E levantavam-se da mesa. A Florinda apagava a braseira e a Rosalina ia arranjar o copo de leite para o meu pai.
Eu
aproveitava aquela distracção de todas para ler mais um bocadinho, enrolando os
cabelos no lápis vermelho que ali ficara. A
minha mãe fingia zangar-se e mandava-me deitar.
Erguia-me,
devagar, com o livro debaixo do braço, e ia pô-lo na estante do quarto. Depois,
‘fazia’ a pasta, a correr. Dava um beijo ao meu pai e ia-me deitar.
Arsénio da Ressurreição, Vista de Portalegre
Candeeiros de Portalegre (foto de A.Mão de Ferro)
O
quarto estava às escuras, mas a janela, de portadas meio abertas, filtrava um pouco da luz dos candeeiros da rua. Despia-me.
Sabia que a minha irmã mais velha estava acordada. Ela começava a chamar
baixinho.
- Olha, não durmas já! Vamos conversar só um bocadinho.
Costumava
ter insónias e gostava de falar comigo até adormecermos. Eu adormecia logo, mas ela ficava acordada, segundo me contou depois.
Passara mais um serão.
Passara mais um serão.
(*)
Joaquim Guilherme Gomes Coelho nasceu no Porto em 14 de Novembro de 1839 e morreu
igualmente na sua cidade, Porto, em 12 de Setembro de 1871. Médico, escritor,
ensaísta. O pai era cirurgião, natural de Ovar, mas a mãe tinha ascendência
anglo-irlandesa. O seu pseudónimo foi Júlio Dinis.
Obras:
'Uma
Família Inglesa', 1866
'As Pupilas
do Senhor Reitor', 1867
'A Morgadinha
dos Canaviais', 1868
'Serões
da Província', 1870
'Os Fidalgos
da Casa Mourisca', 1871
Que bonitas recordações. Eram tempos diferentes e há coisas que foi uma pena perderem-se. Hoje já não há tempo para ter "serões" em família, porque a televisão e as novas tecnologias ocupam o lugar dos livros. Já não se lê em voz alta.
ResponderEliminarGostei muito das imagens. O desenhinho "a ler" é da Maria João?...
Um beijinho e um bom domingo:)
Comecei por Uma Família Inglesa" o que mais gostei foi As Pupilas do Senhor Reitor".
ResponderEliminarGostei muito deste texto.
um beijinho
Gábi
Que recordações tão bonitas! O que foi da Florinda, teve uma vida satisfatória? Como desfrutávamos com todos essess livros que citas e tantos outros!Fez-se-me a boca água, gostei muito deste bocadinho...
ResponderEliminarEram tempos com mais tempo... A Florinda era uma mulher fora do vulgar, Maria!Ainda veio trabalhar para minha casa em São João e "criou" os meus filhos -até irmos para Roma. Quantos jantares e almoços "cozinhou"para alunas e amigos,sempre bem disposta. E conheceu escritores e ficava embevecida: Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Alexandre O'Neill, Fernanda Botelho.
EliminarNão quis ir para Itália e voltou para Alegrete, sua terra. A Florinda sabia de música, adorava Chopin e Beethoven, via sempre connosco e com os miúdos as séries da BBC: "Guerra e Paz", "A Família Forsyte" e adorava um filme sobre Leonard Da Vinci! E "O segredo dos Flamengos", outra série -agora italiana- maravilhosa. Morreu nova, com um cancro do estômago. Quando voltávamos de Itália e íamos a Portalegre, íamos sempre vê-la a Alegrete. Estava cá quando morreu e fui à Igreja onde ela estava. Tive um grande desgosto como imaginas: estava ligada à minha vida desde os meus 3 ou 4 anos!
A Gui e o Diogo nunca a esqueceram!
~~~
ResponderEliminarLivros que muito alegraram e divertiram os primeiros anos da minha vida adolescente!
Pensar
que se não fosse a lamentável morte prematura do escritor,
poderíamos ter tido um manancial de obras deliciosas...
Os seus serões de menina
também foram singulares e deveras interessantes...
«Arruma a pasta» - ao tempo que não 'ouvia' esta expressão!
~~~ Beijinhos gratos pela agradável leitura, MJ. ~~~
A Florinda era uma mulher extraordinária. Nenhum de nós a esqueceu. Superiormente sensível e inteligente, sôfrega de saber. Adorava receber as tuas alunas e alunos e se eles pediam organizava almoços... Tanta saudade!
ResponderEliminarA leitura me encantou e gostei da pessoa da Florinda. Li pedindo para o fim da história não chegar.
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