sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A poesia continua... Lembrar Cristovam Pavia!

 Cristovam Pavia, ao lado de José Régio

Quero falar de um poeta que morreu jovem e desesperado. Que hoje é mais ou menos esquecido. Que tinha valor e poderia ter ido longe.
Era filho do poeta Francisco Bugalho (1), presencista. Chamava-se Francisco António (Lahmeyer) Flores Bugalho mas escolheu o pseudónimo de Cristovam Pavia. Além desse, usa vários outros pseudónimos.

Pertencia a uma família castelovidense conhecida. Quer o pai, poeta, quer o avô materno, o Dr. Flores, médico, eram pessoas consideradas. 
Francisco António Bugalho nasce, porém, em Lisboa. Em 1940, a família muda-se definitivamente para Lisboa. 
Voltará a Castelo de Vide, apenas nas férias, que passa na Quinta da Palmeira, nos arredores de Castelo Vide, perto da estação, uma bela casa amarela com uma palmeira e um portão verde, onde me recordo de passar muitas vezes, de carro, a caminho da estação.
Cedo o jovem poeta começa a sofrer de perturbações psíquicas, sobretudo a partir de 1949, ano da morte do pai. Tem ele 16 anos e a ligação com o pai era fortíssima.

Estuda na Faculdade de Direito, depois abandona o curso e muda para Letras. Tem um grupo de amigos de que fazem parte vários outros poetas ligados à revista "O Tempo e o Modo". 
Francisco Bugalho (1905-1949)
Sente-se a influência que a poesia do pai teve sobre a dele. Admirava muito também a poesia de José Régio que ia visitar muitas vezes a Portalegre. 
Na fotografia, abaixo, de 1951, em frente da casa de Régio, está Sebastião da Gama.
Em 1960, vai para Heidelberg onde recebe tratamento psicoterapêutico. Simultaneamente, trabalha como ajudante de pedreiro. Faz amigos e aos amigos portugueses escreve a falar dos colegas pedreiros e da sua profissão de "telhador".
Heidelberg
Entre 1960 e o ano da sua morte, 1968, Cristovam Pavia viaja e trabalha (sempre na construção civil), em Lisboa, Paris e Heidelberg. 









O poeta nasceu num dia de Outono, em 7 de Outubro de 1933. Morreu num dia de Outono, de 1968, suicida. Tinha 35 anos. Nesse mesmo dia, 13 de Outubro, morre Manuel Bandeira, um dos poetas que mais admirava.
Deixou uma obra publicada -“35 poemas” publicada em 1959, pela Moraes Editores- e muitos poemas esparsos por aqui e por ali. Anos mais tarde, em 1982, um grupo de amigos faz a escolha desses poemas de Cristovam Pavia que serão publicados em 1982 pela Moraes Editores, Círculo de Poesia.
Desse grupo faziam parte João Bénard da Costa, Nuno Bragança, Pedro Tamen, entre outros, todos admiradores da sua obra. São eles que assinam a explicação.  E dizem  na Introdução a "Poesia"(2):

Onde outras vozes, nascidas mais sonoras ou “modernas” depressa enrouqueceram ou murcharam, a de Cristovam Pavia permanece –intacta.
Adolescente ou adulta (mais adolescente do que adulta, mas, dolorosamente, adulta nos momentos mais agudos da adolescência) corre essa voz, em surdina, de uma fonte fresca antiquíssima. É, na verdade, feita de água.” 
Para ler essa poesia feita de "água", pureza, simplicidade,  é precisa uma atitude de recolhimento e de silêncio.
"Cristovam de Pavia conheceu muito cedo a diferença entre ele e o mundo em que lhe foi dado viver e assumiu o estatuto de marginalidade (...)" 
José Bento
São palavras de José Bento que escreve, nessa mesma edição dos poemas, uma nota muito completa (2) e muito inteligente sobre a poesia do poeta.
Marc Chagall, Poeta com pássaros

"Não podemos mentir,
Não sabemos falar


E vamos com os pássaros, 
Sem gestos, sem palavras, 
Colher a flor do medo..."
Continua, mais adiante, falando da adolescência e juventude do poeta:
"Cresceu em conflito com o mundo em que vive e procura uma fuga pela recuperação da infância morta, pela aceitação do seu conhecer-se diferente (…), pela transformação do seu próprio ser pelo sofrimento, num movimento de ascese e de auto-destruição”.

Um marginal, um desadaptado sim, mas personalidade encantadora segundo os que o conheceram. Inesquecível amigo para eles. Um solitário, interiorizando a sua dor que vai, "sem gestos, sem palavras/ colher a flor do medo."
Chagall, Figura debaixo da abóbada

"Os que o conheceram, continua José Bento, falam dele como de alguém que não pode esquecer-se pelo invulgar da sua personalidade, mesmo entre os poetas. A sua poesia é uma expressão do homem que ele foi: há um profundo paralelismo entre os poemas e os dias que ele viveu." (pg.13)
Marc Chagal, Paisagem azul

Para os que o não conheceram: "há que a imaginar como se imagina um compositor ou pintor cuja obra se conhece bem sem conhecer a sua vida, como o protagonista do 'À la recherche du temps perdu', ou do Ulysses, de Joyce."
Aliás, é Proust quem defende que -para compreender um escritor- não é necessário conhecer a sua biografia (Marcel Proust, in Contre Sainte-Beuve). De facto, o que se sabe dos grandes trágicos Gregos?
Versos de uma tristeza infinita, de solidão e de desespero sem, regresso. E da gratuidade e efemeridade das coisas vividas, logo, desaparecidas. Da dor e do acerbo espinho que ele "fabrica" e onde se enreda "por dentro" e "se pica"...
"Eu vivo tudo por dentro,
Os meus enredos fabrico
(quase sempre dolorosos!)
E não os conto a ninguém!
- O meu poço é o meu pico, 
que me pica e me contém...
.........
Sem poço não andas bem!"
....
Lembro o poema ‘Vivo’ :

"Rebenta a dor no peito,
E o canto na garganta!
Mas o poeta não canta!

Mas o poeta não canta!" 
(pg 175)

Ou 'Canção bastante romântica':

"A minha vida é uma
Torre de espuma
Toda a tremer…

Se vem o vento,
A minha vida
Enfraquecida
Sem um lamento
Vai-se perder!...

Que pena tenho
da minha vida!..." 
(pg.125)

Leia-se ‘Poema’:
“Vai, veemente,
Canto da minha solidão…
Vai, alto e puro,
Franjando a noite neutra
De inúmeras mãos ígnea
E vibráteis…

Vai, desprendido
De lógica e de mim…
Pelos espaços dos espaços
E dos tempos sem fim…” 
(pg 135)

Ou o 'Soneto tremente':

Sou o dos desesperos enfadados.
Há na minh’ alma hortências a fluir.
Se eu pudesse deixar os meus cuidados
Ia-me repousar, ia dormir!

Pressentem-se na luz uns flébeis fados
Como coisa que em breve vai cair…
Eu sinto a dor dos ser’s inanimados.
Eu sinto tudo o que quiser sentir!

Esta sede sem fim de analisar
Acaba sempre em pré-neurastenia.
- Não mais me comover! Não mais pensar!

Fechar os olhos, sem força, parar…
- Que bom viver um sono de água fria,
Com a alma meia morta, a desfocar..."
(pg 130)

E também o 'Pequeno Poema':

“Em ti amadurece a vida como um vinho
Obscuro e raro…
Que mais queres?”
(pg. 149)

Queria mais, queria que o tempo não tivesse passado: a sua vida “toda de espuma/toda a tremer” era frágil e a sede de absoluto era enorme  - nada lhe bastava. Assim, a escolha do poeta foi :

“Fechar os olhos, sem força, parar…
- Que bom viver um sono de água fria,
Com a alma meia morta, a desfocar…”

É um belo livro de poemas cheios de desejo da vida e de incapacidade de a viver!
E de tristeza porque a saudade do bem passado – a infância - o não larga. E vive o resto da vida inquieto e "com a alma meia morta, a desfocar..."
Procurem o livro e leiam-no! 

(1) Francisco Bugalho: http://falcaodejade.blogspot.pt/2014/07/um-poema-de-francisco-bugalho.html
(2) São eles: João Filipe Bugalho, António Luís Moita, António Osório, José Bento, e Pedro Tamen
(3) José Bento, Sobre a Poesia de Cristovam Pavia, in “Poesia”, Moraes Editores, Círculo de Poesia, Lisboa, 1982. 
José Bento, poeta, é muito conhecido pelas suas traduções dos poetas de língua castelhana. É tradutor de Neruda, Quevedo, Garcia Lorca, Unamuno, Octavio Paz, Calderòn de la Barca. 
Em 2013 recebeu o Prémio de Tradução Luís Miguel Nava (do nome do poeta e tradutor português que morreu, jovem, em Oxford).


4 comentários:

  1. Gostei muito do post. Feito com tanto cuidado, acompanhado de pinturas tão bonitas e fotos interessantes.

    Gosto muito dos poemas.

    Uma "aula" muito agradável :)

    Um beijinho:)

    ResponderEliminar
  2. Fizeste-me entrar nessa vida triste, tão bem expressada pela voz dum autêntico poeta. Nada pior que não poder dar remédio a uma triteza sem explicação aparente que nos empurre sem remédio ao precipício.
    Feliz semana, a poder ser...

    ResponderEliminar
  3. Minha querida professora! o texto está lindo, já o mostrei ao meu amigo José Bento.
    Partilhei com uma amiga em comum,Nazaré, que imprimiu e mandou fazer uma capa, com o titulo e a sua fotografia e hoje fomos oferecer ao José, que se lembrava de tudo. Ficou muito agradecido.
    vamos mesmo de ter e combinar o nosso chá, agora também gostaria de lhe apresentar estes meus dois amigos, seus admiradores.
    Um beijo grande...
    Continuo a aguardar mais histórias ou textos como este.

    ResponderEliminar