domingo, 29 de março de 2009

ela


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http://www.youtube.com/watch?v=79Wsp9TpIZw&feature=related


Ela



A descer a serra, de carro, ia ouvindo um Nocturno de Chopin, quase sempre o mesmo.
Lembrava-se de a ouvir tocar Chopin e Lizt, na velha casa amarela da sua infância.

Era Verão e via os campos, lá em baixo, dourados, as searas brilhantes, com uma ou outra papoila bem vermelha.

Ia ter com ela, que estava a morrer.

Sabia que ela sofria e que tudo ia acabar em breve. Irremediavelmente, iam ficar separadas, como tinham vivido tanto tempo.

Enquanto fazia e desfazia as curvas da estrada, no meio dos pinhais e dos eucaliptos, a ver as giestas amarelas, pensava que, se calhar, lhe era indiferente vê-la chegar.
Depois, quando entrava no quarto, esquecia tudo, e às vezes deitava-se a seu lado, cantava-lhe baixinho as canções que lhe ensinara, em pequenina.

“Ah! Si j’étais
le rossignol qui chante...
Dans la fôret,
je viendrais près de toi.
Et chanterais
d'une voix si touchante...”

Uma dessas manhãs, ela começou a chorar, de olhos fechados, soluçando como uma criança.
-“O que foi, Mamã?”
Respondeu:
-“Dói-me...”

O que lhe doía? Sabia que não lhe doía o que lhe doía a ela, o afastamento de sempre, mas tinha ainda a esperança que tivesse sentido alguma saudade desses tempos e estivesse agora mais perto nessa recordação.
Daí, a vontade de chorar?...

O mais provável, no entanto, era que lhe doesse a sua dor real, física.
Queixara-se sempre pouco, e aguentava a dor como aguentara a solidão na casa da Serra.
Mas desta vez gemera, protestara.
Deu-lhe a mão e começou a chorar, baixinho, para ela não ouvir.

(Chopin, Nocturno op.9, n.2, tocado por Arthur Rubinstein)
para ouvir clickar em baixo:
http://www.youtube.com/watch?v=YGRO05WcNDk

mais histórias da noite



Acho que era Aldous Huxley quem disse: "A experiência é o que se faz com o que se viveu..." Estou de acordo, pois tudo aquilo que vivi me ensinou o que sei e só sei, profundamente, o que vivi, observei, senti.O que sou, afinal.


Não esqueço a minha experiência do ensino nocturno, que me enriqueceu muito e me deixou a saudade de pessoas inesquecíveis e a recordação das suas vidas, das suas histórias.
A história da Karen, por exemplo...


Bom Ano Novo, professora!

O telemóvel tocou várias vezes. Atendi, ensonada.
- Bom Ano Novo, Professora! Sou eu...
Conheci-lhe a voz. Olhei para o relógio luminoso: três horas.
- Oh! Karen! São três da manhã!
- Professora, desculpe, estamos aqui todos numa festa e, de repente, pensei em si... Apeteceu-me tanto falar-lhe! Desejar-lhe um Bom Ano...
- Bom Ano para ti também!
De repente, a meio da confusão do sono, lembrei-me. Ela tinha-se ido embora!
- Voltaste?!
- Voltei para o Natal...
Senti-me mais acompanhada.
- Que bom que tivesses telefonado!
Ao longe, por detrás da voz de Karen, uma música forte, gritos, gargalhadas. Outras vozes soavam, com risos pelo meio.
- Espera, dôtôra... Ouve...
- “Bom Ano! Bom Ano!”
- Ouviu, dôtôra? Eram os meus amigos...
- Ouvi, Karen, ouvi.
- Professora, desculpe! Estou cá, sim, uns dias... Se puder, apareço...
- Eu gostava... Diz, estás contente?
- Estou... Enfim, mais ou menos... Adeus, dôtôra, depois volto a falar! Era só para desejar Bom Ano!
- Obrigada. Diverte-te! E aparece... Se puderes...
Sentei-me na cama. Não ia conseguir pegar no sono. Arranjei as almofadas, peguei num livro. Mas não lia. Aquele telefonema viera trazer-me um sopro de vida.
- “A Karen... Aquela despistada! E tão sincera, tão espontânea...”
Sim, só ela podia telefonar de madrugada... Não tinha horas, nem regras, tudo nela era afectividade, momentos de euforia, necessidade de comunicar, logo, ali...
Lembrei-me da chegada dela.

Foi a última a apresentar-se. Olhou desconfiada para mim, depois para o resto da turma, e disse muito alto:
- Bôoa nôoite...
Tinha uma maneira de dizer boa noite arrastada e doce.
Interrompi a aula para lhe falar e a pôr à vontade.
- Boa noite. Como te chamas?
- Karen... Karen Caribe...
- De onde vens?
- Da Guiné...
Começara a preencher uma folha da caderneta, devagar, perguntando coisas e ouvindo o que me dizia.
- Depois trazes uma fotografia, está bem?
- Trago amanhã já...
Sentou-se ao pé da janela, na carteira da frente, que não tinha ninguém.

Nunca percebera por que razão escolhiam os lugares nas filas de trás, mas não me opunha, deixava-as escolher. Um dia uma aluna disse-me. “Quando era miúda, punham-me na primeira fila porque era das mais pequeninas... Hoje, quando posso, sento-me lá atrás. É uma sensação diferente ver toda a sala, observar as pessoas, ver como reagem, como se relacionam... Aprende-se muito...”

Mas Karen sentou-se bem junto da secretária, de olhos fixos, a ver o que eu fazia, com o livro aberto mas sem seguir a lição. E foi sempre aquele o seu lugar, a partir desse dia.
Habituara-me a esperá-la e a vê-la chegar. Alta, magra, os cabelos entrançados com fios azuis, pulseira de contas, azuis também, num braço, lenço azul ao pescoço, jeans, ou saias curtas, e botas com solas altas. Sentava-se e, logo:
- Professora, hoje o que vamos dar?

Abria o livro e ficava a olhar para mim, esquecida do que perguntara. Ou então olhava pelos vidros, de rosto apoiado na mão, mas lá fora estava escuro e não se via nada. Fui percebendo que tinha de ter um “tempo” especial para ela. O seu espanto era genuíno quando entendia o que lhe explicava. O francês era uma novidade que a divertia.
- Ah! Quer dizer isso!... É simples...

Repetia a frase que eu lera e ria, com gargalhadas estridentes.
Outras vezes, vinha com trancinhas cor de cobre, espetadas e brilhantes, a condizer com a gola de pele fulva de um casaco preto muito comprido.

- Fui modelo, na Guiné, a Professora sabia?
E mostrava fotografias em que uma figurinha elegante se destacava encostada a uma parede ou uma árvore, algures numa paisagem africana.

Quando ficávamos sozinhas, falava da terra de onde partira, ainda menina.
- Tenho parentes em S. Tomé”..., dizia-me. Falava de terras que eu não conhecia, das comidas, dos frutos, da avó que por lá ficara pela Guiné. Contava como viera ter com a mãe, com meios-irmãos, de outro “pai”, e como tivera que trabalhar num restaurante porque queria estudar.

A escola da noite ensinara-me muito, ao longo dos anos. As alunas – eram sobretudo mulheres- chegavam carregadas de problemas, inseguras, retraídas, caladas. Demorava a estabelecer-se, uma relação, mas, de repente, criava-se uma corrente feita de curiosidade, de carências e de expectativas.

- “Vêm cansadas”, pensava tantas vezes, “é preciso deixá-las recuperar do peso do dia, da passagem em casa, a correr... Dar o jantar aos filhos e ao marido, buscar os livros, comer uma sopa quente, quando podem...”

Agitavam-se e, depois, sorriam timidamente, olhavam-me, como se esperassem que eu lhes pudesse dar alguma coisa.

- “A Professora acha que vou ser capaz?”
- “Ai, hoje sinto-me tão cansada...”
- “A esta hora da noite já nem consigo pensar”...

E as frases soltas giravam no ar, sob as luzes de néon do tecto.
Um dia uma delas entrou, abruptamente, e sentou-se sem dizer nada. Era uma jovem mulher gorda, muito branca, com o cabelo ondeado a cair para um lado. Ainda era bela apesar dos traços cansados. Tinha a cara negra de um lado, um olho roxo e inchado.

- “Caíu-me uma prateleira na cabeça...”, disse.
Espreitou de lado, a ver se acreditava. Pensei que o mais provável era ter sido o marido que lhe dera um murro, e sorri, tentando comunicar-lhe um pouco de ternura.

- “Caíu-te uma prateleira na cabeça?, perguntou logo a Karen, curiosa.
E levantou-se para ir ver. Ela, pura, tinha acreditado na desculpa.
- Mostra lá... Puseste pomada? Está muito negro! Quer dizer, roxo...

As outras mudaram de assunto, querendo disfarçar, talvez, a mágoa e a humilhação que sentiam na outra:
- “A minha tia que viveu em Genève...”
- “Os meus pais foram emigrantes, por isso é que falo um pouco de francês...”
As conversas cruzavam-se, interrompiam-se, recomeçavam.

- “Meu Deus, como é que as vou interessar no estudo?!”, pensava.
- Vá lá, já chega de conversa!, interrompia-as, firmemente. Agora, só em francês! Podem falar, mas em francês...
Esmorecia um pouco o entusiasmo, mas conseguia ir ensinando a pronúncia, algumas regras de gramática, um pouco de conversação simples.
Pensava que o meu papel era dar-lhes confiança. Todos os dias um pouco mais. Acreditarem, ainda, uma vez, outra vez... Era a última oportunidade, não voltariam a ter outra! O que aprendessem era menos importante do que acreditarem nisso mesmo. Voltarem a confiar em si, nas capacidades que, afinal, não tinham perdido.

-“Sim, e reconquistarem uma certa forma de dignidade também...”, repetia-lhes.

Falava, falava e, nesses momentos, entusiasmava-me, acreditava no que dizia. E elas teimavam, repetiam e iam aprendendo.
Karen olhava-me, franzia as sobrancelhas e depois virava-se para trás a observar as outras e não dizia nada. Folheava o livro, ficava à espera que a aula acabasse. Preferia as conversas, só as duas, quando as outras saíam.

- “A professora disse uma coisa certa... Isso de conquistar uma dignidade...”
E ficava pensativa.

Agora, ali deitada, recordava. As férias do Natal estavam a acabar. Depressa recomeçariam as aulas e sabia-me bem esta pausa com os livros, com os pensamentos e a música. Às vezes, ouvia um mocho piar, para lá das árvores. Habituara-me a ouvi-lo. Era uma companhia.
Fui abrir uma fresta da janela e fiquei à espera, no nevoeiro gélido da noite. E lá chegou ele: “Uhh, uhh...”
Ao longe, ouvia o mar, adivinhava as sombras dos salgueiros altos que limitavam a rua, e que vira crescer. Era o mesmo quadro de sempre. Mudava a copa ou a casca do tronco das árvores. Agitando-se, ramagens frágeis de verde vivo, na brisa quente, ou, ramos despidos, esbranquiçados, no Inverno. E mudava a cor do céu: do azul com nuvens passava ao cor de rosa, ao lilás, e quantas vezes, no Verão, ao vermelho vivo e quente do pôr do sol.
Diziam-me em pequena, na minha terra, que essa cor anunciava calor ou vento. Mas isso era lá longe, na minha terra.
Sentei-me à mesa do computador, com o olhar vazio no écran, abri uma página e comecei a tocar com um dedo no teclado.
- “Tenho as minhas histórias para escrever”, pensei.
Juntava as ideias, voltava atrás no tempo, revendo imagens que julgara esquecidas e que surgiam como flashs. Os dedos agitavam-se agora mais depressa, queria escrever, de repente, tudo o que me viesse à cabeça. Depois, ia cortar, cortar, mas agora as palavras sucediam-se, vibravam.

De repente, parei. Voltara-me a voz de Karen. Ouvi-la ao telefone trouxera-me uma emoção esquecida. Sorri, a pensar nela.
Quando o novo ano lectivo começara, não ficou nas minhas turmas e a sala parecera-me, de repente, vazia. Mas, na semana seguinte, Karen entrara pela sala, a protestar:
- Professora, eu tenho que vir para aqui!
Apontava com o dedo para a sua carteira vazia, ao pé da janela.
- Eu e aquela professora da sala ao lado somos o gato e o rato! Fui só a uma aula, mas somos in-com-pa-tí-veis!
Tive de me rir:
- Incompatíveis? Em quê?
- Eu quero aprender francês, a língua, e ela está sempre a falar das modas de Paris e dos perfumes! Enerva-me e sei que não gosta de mim. Vi-a olhar para mim duma maneira, como se estivesse a gozar...
- Não te posso deixar ficar nesta turma, sem autorização do Conselho Execut...
Nem me deixou acabar.
- Já tenho a autorização!
- Tu?!... Como?
- Lá disseram-me que, se a dôtôra não se opusesse, eu podia voltar... Posso ?
- Preciso de um papel da Secretaria..., insisti.
- Eu já trouxe o papel! Consegui... Sabia que a professora ia dizer que sim...
- Oh! Karen...
Ria-se às gargalhadas, a olhar para mim com o papel na mão esticada, contente da sua vitória e da surpresa que me causara. Acabei por me rir também.
E voltaram os olhos a brilhar, fixos e irónicos, as entradas lentas pela sala, a espreitar para todos os lados, arrastando levemente o tacão das botas no chão.
- “Boa nôoite...”
E voltaram as conversas. Agora falava mais à vontade.
- A Professora sabe, eu só faço filho com homem que seja bom!
A que propósito teria vindo esta conversa? Já não me lembrava. Lembrava-me, sim, que as outras se riram, ironizando.
- Também nós queríamos um homem que fosse bom!...
- Vocês são parvas! Bom para os filhos... Vocês não sabem o que as crianças sofrem? Esqueceram-se?
Elas encolhiam os ombros, não insistiam e sorriam com um ar divertido.
- “A Karen é única, pode dizer tudo...”, protestavam às vezes
Aceitavam tudo o que ela dizia. Um dia, uma disse, a brincar:
- “Cada uma de nós tem a sua cruz, quer dizer,... a sua Karen!”
Nos intervalos, ficava a contar-me mais da sua vida. Ela e a mãe, abandonadas pelo pai, tinha ela quatro anos.
-“Um pai que nunca mais voltou!”
Nunca mais o vira, nem se lembrava dele.
- Nem quero! Se o visse, virava-lhe a cara!
E a mãe partira também, a seguir, e deixara-a nos braços da avó. Contava desta avó coisas fabulosas. Venerava-a como uma pessoa especial, forte e meiga, sempre a seu lado.
- O que ela me deu, doutôra!... Educação, juízo... Explicou-me a vida, os perigos, os riscos todos... Melhor que mãe!
- E a tua mãe?... Não vives com ela?
- Sim, mas ela não me ajudou... Quando cheguei a Lisboa, tinha dezoito anos, já sabia tudo... Deu-me casa, é verdade, deu comida e um lugar para dormir... Sim. Uma mais, no meio dos outros filhos, do homem dela, dos primos e de toda a gente que ali vive.
- Isso é muito, não é?
- Não sou ingrata, professora, eu sei que é muito. Mas a minha avó é pessoa diferente!...
- E o restaurante é um trabalho bom?
- É bom. Janto, trago dinheiro para a casa...e para as minhas roupas. Aparece lá muita gente divertida, gostam de mim, riem-se das minhas graças...
- E já sabes cozinhar?
- Claro. Ontem aprendi uma nova salada! Sabe como se chama?
- Não...
- “Salada Romeu e Julieta”!
Não resisti e desatei a rir e ela acompanhava-me, com as suas gargalhadas vivas, a olhar para mim, contente por me ter feito rir.
- É uma salada romântica, dôtora! Cheia de cores! Hei-de trazer a receita para fazer lá em casa!

Um dia, veio preocupada. O primeiro período estava a chegar o fim. Quase não falou durante a aula toda, alheada, a passar as folhas do livro, e, quando ficámos sozinhas, desabafou:
- Eu disse à professora que havia muita gente lá em casa, não disse?
- Disseste...
- A minha mãe tem muitos filhos, há muita gente que entra e sai, come e dorme... Uns têm trabalho, os outros não. Não é simples estarmos ali todos, o dinheiro não dá...
- Calculo...
- E... agora... agora apareceu o meu tio e a mulher que nunca tiveram filhos e gostavam de me levar para casa, a mim mais à Silvana... Aquela minha irmã que já cá trouxe a mostrar à dôtôra, lembra-se?
Lembrava-me mal, recordava uma miúda risonha e gorda, com um sorriso parado nos dentes muito brancos e na boca aberta.
- Ela não é lá muito esperta, ajuda pouco em casa, mas é muito alegre... Acho que a minha mãe nos vai dar aos meus tios...
- “Dar”?!
- Sim... Eles têm dinheiro e nós não temos...
- E onde vivem os teus tios?
- Em Espanha... A Professora acha que é bom para mim? Eles são ricos, têm uma vida normal... Vou estudar! Não acha que é bom?...
Senti o coração bater com força porque sabia que ela ia partir.
- Tu queres ir, Karen?...

Não tinha coragem para a encarar. E ela pedia-me que a ajudasse, que a empurrasse. Custava-me tanto fazê-lo...
- A mim tanto me faz... É uma coisa nova! Passei dois anos com a minha mãe que eu nem conhecia... Posso ir “conhecer” outro pai e outra mãe, não é? Estão sozinhos, precisam de filhos...
- Tens razão... Vai ser bom, Karen! Precisam da tua ternura, vão-te tratar bem! E quando vais?
- Depressa, dôtôra, muito depressa...
Nesse dia pouco mais dissemos. Karen olhava para fora, pensativa, batendo com o lápis na mesa até lhe partir o bico. Eu também não tinha vontade de falar e fingia arrumar uns papéis.
Nas aulas seguintes Karen não aparecera nem viera despedir-se.
- “Não teve coragem”, pensei. “Foi melhor assim...”

O tempo fora passando, os dias tinham sido pesados, cheios de testes, de trabalhos e de reuniões e distraíra-me com muitas coisas.
Chegara o Natal. O fim do ano. E, agora, este telefonema, trouxera-me tudo de novo à memória.
Parecia-me ouvia ao longe as gargalhadas roucas e os tacões das botas a arrastar e via, no meio da noite, os olhos dela a brilhar, mais os cabelos enfeitados com fios azuis...
- Bom Ano Novo, Professora...
- Bom Ano, Karen...



Ou a história da Rosa...

Rosa


Ia falando e olhava-me direito nos olhos, a ver como eu reagia. Aparentava mais idade do que os quarenta e oito que me dissera ter. Era uma mulher marcada. Os olhos de um tom azulado, por debaixo das sobrancelhas claras que formavam um desenho suave, sorriam às vezes, como para se libertarem do corpo e do que ele arrastava e, logo, a seguir, pareciam pisados, como flores murchas. Os cabelos de um louro deslavado tinham um corte simples. Tinha o hábito de os passar por detrás das orelhas, enquanto falava. Rugas vincavam os cantos da boca que, essa, não sorria nunca. As palavras saíam arrancadas, batidas, e o que dizia era brutal.
Continuava:
- Sabe, Professora, eu quis estudar por tudo isto que lhe disse. Para ser livre. Ser eu, finalmente, saber quem sou. Se é que ainda sou alguma coisa, se não sou apenas um lixo...
- É preciso ter muita coragem, eu sei...
Mas não sabia.
- Tenho pago um preço alto, muito alto. Talvez não adivinhasse quanto seria alto. Se soubesse...
- Terias feito o mesmo?
Hesitou.
- Sim, acho que sim... Não tinha escolha... A nossa vida nunca foi simples. Sempre violência, agressões, palavras feias... E agora a nossa relação piorou ainda mais.
- Porquê?
Achei a pergunta estúpida, mas queria dar-lhe um pouco de companhia, nem que fossem sós aquelas palavras que eu sentia inúteis...
- Quem sabe o que se passa na cabeça de um homem?- Tens razão, de qualquer pessoa... De qualquer um de nós... Ciúmes?
- Nem sempre eram ciúmes. Até porque eu não lhe dava razões para isso.
Como se recordasse, foi dizendo, com tristeza:
- Vivi sempre em casa, quase não saía, trabalhei, criei os filhos! Mas sei que não é preciso dar razões...
- O que era, então?
- A vontade de me dominar, de possuir tudo, cada bocadinho de mim.
- Para quê?
Ali estava eu, que não percebia nada da vida dela, a querer ter uma opinião, mas, ao mesmo tempo, a pensar nos meus problemas, no que ia escrever mais tarde, quando acabasse as aulas e voltasse a casa, deserta de sossego. Imaginei umas frases:
Acordei e fiquei a olhar para fora: o mesmo tufo de árvores a agitarem-se, velhos eucaliptos com as folhas vermelhas no alto, a ver um pouco mais longe os salgueiros com o seu sussurrar, a adivinhar o mar. As árvores e as cores que mudam ao correr das estações: os tons verdes, amarelos, o tom queimado que o sol lhes dá. Secas, sem folhas, com os troncos cinzentos pintalgados...”-“E eu a olhar para a paisagem sem fazer nada ...”, pensava, cansada.
No entanto, respondi-lhe logo, quis mostrar-me interessada. Repeti:
- Mas para quê, Rosa?
- Para ter o poder, acho eu... Mandar, mandar sempre, mandar, ficar por cima...
Espantava-me a lucidez daquela mulher aparentemente vulgar e apagada. Ao falar, iluminavam-se-lhe os olhos inteligentes, tornavam-se expressivas as feições.
Tínhamos conseguido uma certa intimidade, depois de alguns meses. E ela ia-se confessando, e eu ouvindo.

Tudo começara no dia em que me levou um dossiê com os seus poemas. Foi a primeira vez que ficámos sozinhas a conversar no intervalo. Tirou-o da pasta, sempre carregada de livros e papéis, e deu-mo sem me olhar. Tinha umas capas azuis e era volumoso.
- Terá paciência para o ler, Professora? Pode corrigir os erros, se quiser...
- Tenho, com certeza! O que é?
- Coisas que fui escrevendo... Poesias, contos...
Pareceu-me constrangida, julguei que era a sua timidez, conhecíamo-nos há pouco. O ano escolar tinha apenas começado. Quando cheguei a casa e comecei a ler, já deitada, não larguei o tal dossiê até acabar os poemas. Custou-me a adormecer. Era como se tivesse recebido um soco no estômago. Eram versos duros, com uma sensibilidade quase doentia, repetitivos, insistentes e que revelavam sofrimento.

“Sim, dei-te tudo
Porque tudo me pediste
Em troca, deste violência,
Deste dor e medo.
Ergueste o gládio de cristal,
Feriste,
Guardo-o em segredo.
No espelho, a imagem destruída
Do que foi meu rosto.
Eu, batida, os cabelos de oiro,
A ver correr o sangue.”
Fiquei pasmada com o que lia, parecia uma figura tão simples e afinal era uma mulher dentro da tragédia, que se queria mostrar segura de si, mas com tanta fragilidade. Descobria uma mulher forte, sim, mas aterrorizada também. Quase todos os poemas falavam de um quotidiano de horror, perseguição, sofrimento, alternando a ironia fina e a funda amargura.

Foi-se estabelecendo entre nós uma relação de confiança e até de amizade. Contava-me tudo, e eu sentia que ela precisava de dar vazão àquele fluxo de palavras e de sentimentos que a sufocavam.
- Diz ele que o provoco...
- E é verdade? Provocas?
- Talvez inconscientemente... Revolto-me porque quero ser eu e quero que me respeite... Nesses momentos, bate-me.
- Bate-te, como? Por que é que te bate? Como é possível?!, indignava-me.
Olhou-me, agressiva. Por que lhe perguntava estas coisas? Já lhe custava tanto falar-me na sua vida.
- O que é que a professora quer saber?... Pormenores? Como é que bate? Com as mãos, com o que calha...
Devia pensar: "então não leu o que eu escrevi?..."
- Desculpa, Rosa -atalhei. Não quero saber nada. Não tenho nada com a tua vida, não és obrigada a falar !...
- Desculpe, professora!... Descontrolei-me, ando nervosa. Sei que me ouve porque me quer ajudar. Mas é tão difícil, sofro, não me habituo.
Entregava-se, com amargura e resignação.
- Não quero fazer-te sofrer... Não contes mais.
- Prefiro contar, quero libertar-me disto que tenho cá dentro. Nunca posso falar com ninguém. Sim, professora, bate-me. Não sabia que isso acontecia?
- Sabia...
Respirei fundo antes de continuar:
- Toda a gente sabe que isso acontece...

Voltámos aos escritos dela, falei-lhe da grande emoção que me causara aquele poema, e como tantos outros textos me tinham chocado. Ela interrompeu:
- Sim, lembro-me desse poema e do resto... Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Nesse dia, tinha-me atirado com um copo à cara, o copo estilhaçou-se e os vidros espetaram-se na cabeça, e cortaram-me.
Falava com simplicidade como se narrasse um acontecimento qualquer.
- E tu, Rosa? O que fizeste?
- Olhe, professora, fugi. Fechei-me na casa de banho! Quando me vi ao espelho pensei que ia morrer esvaída em sangue...
- E depois? Quem te ajudou?
- Ninguém, não pedi ajuda. Meti-me debaixo do chuveiro e estive horas até o sangue parar. E a chorar sempre.
- Meu Deus! E ele?!
- Tinha-se ido embora. Quando ouvi a porta bater, senti um grande alívio. Foi dessa vez que saiu de casa. Pela primeira vez...
- Voltou a casa depois?
- Sim, voltou passado um mês, estava farto de não ter um sítio certo onde comer e dormir...
- E como foi a vossa vida a partir de aí? Não te foste queixar? Há lugares onde as mulheres podem ficar...Ser protegidas...
- Eu sei que há. E depois? Fica-se lá toda a vida? Deixamos de viver uma vida normal? Não preciso que tomem conta de mim.
- Eu percebo... Mas como foi então?
- Foi sempre de mal a pior... Passou o Verão, ignorámo-nos como pudemos em férias, lá na aldeia, para a família não dar por nada... E eu comecei a pensar no sonho que sempre tivera: ir estudar, chegar à Universidade... O meu sogro dizia muitas vezes: “a única que tem cabeça para os estudos é a Rosa!”
Calou-se a olhar para mim, suspirou e continuou:
- Quando lhe disse que tinha decidido fazer o 12º à noite, chamou-me os nomes mais horríveis, desde rameira a ... outras coisas, empurrou-me, deitou-me ao chão, deu-me pontapés...
Eu repetia, inconscientemente:
- Como é possível?...
- No dia seguinte a vizinha de baixo encontrou-me nas escadas e disse-me: “Ó D. Rosa, esta noite foi uma grande sova! Era cá um barulho... Ouvia-se tudo! Coitadinha! Está magoada?” Eu nem lhe respondi, desci as escadas a correr sem me virar.
- Que tristeza! É um horror.
- Horror é pouco. E ela, coitada, nem o disse por mal, se calhar até tinha pena. Imagine a vergonha... A humilhação de ser batida como um animal e de sentir a comiseração, a simpatia, ou a hipocrisia, dos outros que nos lamentam. Percebe isto, Professora?
- Percebo... É muito triste, Rosa.
- Nesse mesmo dia, ele saiu de casa outra vez... Disse às filhas que só voltava quando eu tivesse tirado essas maluqueiras da cabeça e desistisse de ir estudar.
- E tu?
- Eu já estava matriculada e comecei a vir às aulas... Não tinha nada a perder...
- E os teus filhos?
- Filhas... Vivem fora de casa, há muito tempo, felizmente para elas. A mais velha casou, a mais nova saiu de casa aos dezoito anos, porque viu como eu era tratada pelo pai, viu o que sofria... E não me perdoava não abandonar o pai... Estudou, trabalha. É uma independente, pouco me fala... Mas sinto-a perto, sei que quer ser diferente do que eu fui mas que está presa a mim... E depois...
Sorriu.
- Tenho um neto. Da filha mais velha... É um bébé lindo.
Parecia outra, brilhavam-lhe os olhos azuis com ternura.
- Ajuda...
- E a tua vida? Depois da cena que contaste...
- Ele voltou para casa passado uns tempos. Tinha a chave... E queria bater-me!... Peguei numa faca da cozinha, gritei-lhe e ele afastou-se, surpreendido. Viu nos meus olhos que eu era capaza de o matar...Foi para a sala ver a televisão! E nunca mais tentou bater-me.
- Há quanto tempo foi?
- Há quase dois anos... Passei a viver fechada, na minha própria casa, no quarto, só de lá saía quando ele não estav, mas não desisti das aulas.
- É preciso ter muita coragem...
Ela tinha-a.
- Nem abandonei o lar... Se o fizesse, ele metia lá dentro uma qualquer, e eu nunca mais via nada! Perdia tudo! Casa, móveis, pratas...
- E não tens medo de lá estar? E se ele é violento?
- Já não tenho medo. Entra, sai, bebe e dorme e insulta-me do lado de lá. Às vezes dá pontapés na porta... Mas não se atreve a mais. Ameacei-o com a polícia e ele tem medo. Sabe que sou capaz de o fazer. Tenho sempre o telemóvel ao lado... E a faca...
- Meu Deus, que vida a tua! E ele o que faz para viver?
- Deixou de trabalhar há uns tempos. Tem a empresa que era do pai, é o irmão que a tem mantido, ele vai lá quando quer, buscar dinheiro.
- E tu como sobrevives?
- Eu?
Olhou-me, com um meio sorriso, orgulhoso.
- Arranjei um canto na garagem de uns conhecidos, trabalho em contabilidade, ajudo os que me pedem. Os amigos arranjam-me trabalhos para fazer. Agora com os IRS tenho tido muitos...Dá para ir vivendo...
- Mal, não é?
- Sim, é duro, mas aguento. Não quero nada das minhas filhas, nem de ninguém. A garagem é fria, não tem janela. Tenho um computador emprestado, numa mesa, uma luz, um aquecedor a gás para não gelar...
- Mas custa, não é?
- Evito estar em casa. Durante o dia, quando não trabalho, ando de café em café, como uma sandes aqui, um galão ali, vou à biblioteca e ao Museu, onde está quente. Às sete e um quarto já estou na escola à espera do toque...
De facto, lembrava-me que era sempre a primeira a chegar à aula.
- Ganho para viver... E orgulho-me disso. Um pouco de dignidade no meio disto tudo, para me sentir outra...
- E o que dizem as tuas filhas? São adultas...
- Não sabem que vivo com dificuldades... Às vezes, trazem mensagens do pai. No fundo, preferem que eu viva lá em casa... E, talvez por egoísmo, preferem que o pai também lá esteja... Tem um aspecto de normalidade. E como ele já não me bate...

Queria falar e não sabia o que dizer. Falar por falar para quê? Podia realmente perceber o que ela me dizia? Podia imaginar o que esta mulher sofria? O que fora a luta dela? Sentia-me impotente, inútil. Mas fui dizendo:
- Não sejas pessimista, Rosa. Talvez elas não o façam por egoísmo...
- Não as culpo! Longe de mim tal ideia! São o melhor que tenho na vida... Mas, se assim fosse, até podia compreendê-las. Têm a própria vida para viver que não é fácil para ninguém... Por que não hão-de esquecer um pouco a mãe... ?

E os meses foram passando, íamos conversando nos intervalos, mas deixou de me falar no marido. Falava dos livros que líamos, do entusiasmo em aprender coisas novas, adorava os poetas que estudávamos. O ano chegava ao fim. Entregara-se ao estudo, completamente, duramente, queria uma boa nota para realizar o seu sonho: matricular-se em Direito.
Às vezes ainda voltava a contar coisas antigas:
- O meu sogro amparava-me muito. Dizia que eu era a única com miolos, Que podia tirar um curso, tomar conta da empresa um dia mais tarde...
- E o teu marido o que dizia?
- Acho que tinha ciúmes, sentia-se inferiorizado com esta ideia do pai... Mas eu não tinha culpa. Depois de ele morrer, tudo mudou. Nunca mais tive apoio de ninguém e não voltei a pensar em estudar...

Eu animava-a porque a sabia capaz de ir longe, tinha uma grande força de vontade, sabia concentrar-se, era persistente e não perdia tempo com coisas fúteis, ia direita ao essencial. Andava nervosíssima.
- E se não tenho nota para entrar, professora?
- Tens de certeza!
Chegou o final do ano, acabaram as aulas, chegaram os exames escritos. A Rosa telefonou-me logo que soube os resultados. Tinha tido a nota que precisava, uma boa nota a Português. Agitada, esfusiante, chorava e ria, ao telefone.
- Ó professora! Estou tão feliz! A professora ajudou-me tanto, quero-lhe dedicar esta nota...
Eu ri-me, feliz também.
- Obrigada, Rosa! A partir de agora vai correr tudo bem!

Passou um ano já. A Rosa continua no seu curso e os resultados foram bons. Fala-me do marido, diz que tudo parece correr melhor, ele aceitara finalmente a ideia do curso, mas preferia ignorar tudo o que se relacionasse com ele. Era uma coisa àparte.
- Nem me pergunta que notas tive... Mas não me importo, ele anda tranquilo e, sabe, Professora?...Estou a realizar o sonho da minha vida!, disse-me ela há dias.



quarta-feira, 25 de março de 2009

escrever para quê?




Escrevo para lembrar coisas que me impressionaram. Que ouvi. Que aprendi. Que quero contar. Que li...

Porque ler é e foi sempre para mim a melhor companhia, a coisa mais criativa, sim, criativa, deste mundo.
Li toda a vida, recordo-me a ler...
Leio, leio, leio...
Leio muito, leio sempre.
É um pouco como entrar numa convalescença de onde sei que, depois de a iniciar, vou sair melhor.
Escrevo para falar do que gostei de ler e dos livros que quero aconselhar aos que por acaso me lerem.

Nas minhas leituras incluo os livros policiais que considero –quando escritos por mestres- ao nível da “outra” literatura.

Os criadores das figuras inesquecíveis de Maigret, Poirot, Miss Marple, Sam Spade, ou Sherlock Holmes e o Dr. Watson, enfim um nunca acabar, não esquecendo o Marlow... os criadores de ambientes soturnos ou luminosos, reveladores de solidão, contando de amizades irrepetíveis, com as várias intrigas pelo meio, os suspeitos, as pistas trocadas, esses são escritores tout court.






Histórias










A noite


Ia voltar ao liceu onde, anos antes, ensinara. Tinha tantas esperanças à frente, tantas ilusões, e, ao mesmo tempo, tinha medo. Sim, sentia-se insegura.
Vivera muitos anos fora. Como saber até que ponto a prejudicara o afastamento do país? Evoluíra noutras realidades, conhecera países distantes com usos diferentes, aprender com essas gentes muita coisa. O ensino parecia-lhe agora longe.
Decidira escolher a escola da noite, com um ritmo mais suave, menor número de alunos, crescidos, o horário tinha menos horas, talvez melhor para começar. Ainda assim, cheia de incertezas, com dúvidas angustiantes no momento de começar as aulas, o tal medo. A noite teria sido a escolha certa? Não teria sido melhor continuar com o ensino do dia, que já conhecia?

A verdade é que foi um “mergulho” no país, no país real, no país de que estivera afastada, anos e anos.
Lidar com pessoas cheias de dificuldades, grandes insuficiências culturais, desconfiadas, quase agressivas, não era simples. Mas essa experiência, simultaneamente dura e aliciante, fê-la sentir-se bem ao começar as aulas.
Casos tão diferentes, alunos tão variados, de idades, de origens, de preparação, eram situações demasiado difíceis de controlar: pela heterogeneidade das turmas, pela instabilidade que isso lhe causava, e, também, porque tudo o que experimentava era novo para ela.
A chegada a essa realidade desconhecida deu-se com um impacto muito forte. Percebeu, mais tarde, que a decisão de escolher a noite, fora acertada e lhe tornara, no fim e ao cabo, mais rápida a readaptação, porque acontecera com uma grande intensidade emotiva. E tudo, nessa novidade e dificuldade, constituíra um desafio para ela.

O primeiro contacto com as classes dos alunos-trabalhadores, com os problemas e carências que revelavam, foi duro.
Muitos vinham directamente do trabalho, em transportes públicos cheios de gente, ensonados, sem comer; outros iam voltar para o trabalho, a seguir às aulas, porque tinham turnos da noite.
A incapacidade, ou lentidão, em fixar o que lhes ensinava, a falta de atenção causada pelo cansaço, e, por outro lado, o desinteresse, a pouca assiduidade por parte dos alunos que dos cursos diurnos, onde não tinham tido sucesso, e, por isso, ainda menos motivados, tudo lhe criava impaciência.
Surgiram as dificuldades entre as quais, desde a primeira hora, foi o como “arrumar” os alunos, os níveis diferentes dentro das turmas, porque havia “unidades” de vários níveis dentro da mesma aula: alunos que faziam a iniciação na língua francesa, alunos que já tinham a tingido um nível médio e outros que finalizavam a disciplina. Nada tinha sentido para ela.
Havia ainda outras diferenças que tornavam complicado organizar grupos heterodoxos, não só pelo nível etário –a idade dos alunos ia dos dezoito aos cinquenta anos -, como também social e até cultural, pois muitos alunos pertenciam a culturas diversas, geograficamente distantes, pouco adaptados ao nosso tipo de ensino.

Pareceu-lhe, durante muitas semanas, missão quase impossível de realizar. Saía das aulas a pensar que era ela a incapaz por não encontrar a solução rapidamente. Imaginava que lhe “pesava”, no fundo, o desconhecimento das pessoas, a paragem no ensino, de tantos anos; pensava que o mais certo era já não ter idade para se adaptar a esses novos desafios.
“Estiveste parada no tempo, fora disto, vai-te custar a adaptar, diziam-lhe as colegas, olhando-a com pena. Caíste de pára-quedas... Olha, minha querida, improvisa! Cria...”
A intenção delas era boa, mas não a ajudava em nada. Sabia que ia ser precisa muita improvisação e paciência e entusiasmo, para animar as aulas e animar-se. E ser criativa, inovar como? Não sentia a mínima criatividade nas aulas, e a improvisação, sempre aparente, não era fácil. Sentia-se repetitiva, e, quanto a inovar, não inovava nada.

As classes eram uma amálgama de pessoas que pouco ou nada tinham aprendido ou que tinham esquecido “como” se estudava. Via-se na dificuldade que tinham em expressar-se, na incompreensão dos textos que liam, dos questionários, até nos erros de ortografia.
Notara uma certa desconfiança em relação ao professor - quem era? O que ia exigir deles? Não sabia que estavam cansados mas que precisavam daquele diploma? O facto de, também ela, se sentir pouco à vontade, quase atemorizada, faziam-nos sentir inquietos a todos.
Pouco a pouco, porém, foi-se estabelecendo maior confiança, criou-se uma relação complexa, quase de ajuda mútua.
Como explicar melhor? Ela sentia-se, às vezes, a praticar uma acção que não era mero ensino, mas sim uma coisa múltipla, uma acção de inserção social, de estabelecer o relacionamento deles com um outro mundo. E, paralelamente, a preocupação de transmitir conhecimentos, de lhes abrir os espíritos, de os ouvir e tentar aprender também a realidade que eles eram, e ela desconhecia. Era um intercâmbio “cultural”, de verdade, feito das trocas entre ela e os alunos.
O medo de rejeição, dos primeiros tempos, o recuo mútuo, transformou-se, numa vontade de descoberta constante, com bons e maus momentos, numa aventura comum, com pequenas conquistas, graduais, retrocessos enormes, desconsolo -“de parte a parte? ou só seus?”, pensava -, mas também breves alegrias:
Quando via um rosto abrir-se porque entendia o que ela explicara, e via que, para essa pessoa, tinha sido dado um passo em frente, era para ela estimulante. Ver alguém que se sentia avançar, e pensava que, afinal, isso de aprender era possível, mesmo que, no momento seguinte, voltasse o desânimo, numa luta dura e nem sempre gloriosa, ajudava-a.
De repente, abriam-se “clareiras”. Pequenas vitórias, um olhar mais vivo, a aluna, a Luísa, que dissera:
- “Eu, de gramática, stôra, nunca soube, nem vou aprender porque não percebo nada...”
Mais tarde a mesma Luísa reconhecia que, afinal, afinal...um bocadinho conseguira aprender, que as orações já se podiam entender e que o verbo era o verbo...
- “Acho que já vou indo melhor...”
Também notava, em si própria, um enriquecimento, pela comunicação que ia estabelecendo e da necessidade que tinha de mostrar, em cada momento, o seu entusiasmo mesmo forçado. Escolhera uma forma de optimismo exagerado, para esquecer o sombrio da noite, o frio das salas, as caras cerradas e desconfiadas dos primeiros dias.
Houve um dia fantástico! Foi quando a mesma Luísa descobriu uma “paixão” súbita por uma gravura do texto de Português. Luísa trabalhava como mulher a dias e contava-lhe que o seu trabalho era, a maior parte das vezes, lavar as casas de banho dos cinemas, ou dos centros comerciais. Era uma mulher gorda, loira, de óculos, sem qualquer atractivo a não ser a simpatia e a frontalidade e a sua vontade de sonhar. Não gostava do que fazia, queixava-se, esperava vir a ter outro trabalho mais humano, em que encontrasse pessoas, visse coisas bonitas.
Havia nela um desejo de beleza e, talvez por isso, as cores suaves, o romantismo, a poesia dos “Enervés de Jumière”, de Luminais, a tal gravura no livro, a tivessem deslumbrado. Pintura em que talvez ela nunca se tivesse debruçado tão intensamente, sem Luísa. O interesse, a curiosidade dela chamaram-lhe de tal modo a atenção para o quadro, que se entusiasmou também. E, com ela, toda a turma seguiu. Essa paixão que a “obrigou” a ir à internet descobrir tudo sobre o pintor romântico, e a contar o que vira a toda a turma. E a procurarem na mediateca da escola todas as informações sobre o quadro. Passou a ser uma propriedade deles. Luísa animava-se, as perguntas que agora fazia sobre o quadro, vendo o interesse de todos, faziam-na sentir-se diferente, igual aos outros, aos lá de fora, os que não lavavam casas de banho.
As trocas nos dois sentidos, o dar e o receber, o não receber e ficar magoada, revelava um certo relacionamento, lento mas que ia progredindo, e que ela pensava ser o único que valia a pena tentar, porque positivo.
As sensibilidades que ofendia sem querer, a agressividade latente, a frieza com que lhe deram a entender, no começo: “professora, eu tenho que andar para a frente! Tu tens que me dar isto!” Isto era o exame de passagem de unidade, quase exigida, mais o subentendido: “não me dês cabo da vida!”, iam desaparecendo, nunca completamente, mas começava a haver uma qualquer forma de “comunicação” em ritmo de afectividade.
Barreiras que se quebravam? Sentia que sim, mas logo se dizia: “Nada de utopias nem optimismo excessivo, isto é apenas transitório, tudo vai recomeçar nos próximos dias”...
A dificuldade foi permanecendo, para eles e para ela. O que aprendeu, ou confirmou depois, foi que só a abertura ao que era “diferente” dela, ao “outro”, é que lhe permitiria dividir com eles o que conhecia, a cultura, o sonho, um pouco da beleza da vida a que por vezes não tinham acesso, ou em que já não acreditavam. E a “abertura” deveria ser recíproca, tinha de os aceitar dentro dela, compreender o que eles sabiam e queriam ensinar-lhe, e tinha de aceitá-lo, porque só se abririam na medida em que ela se abrisse e os recebesse, que só assim podiam ficar “aptos” a saber também.
E pensava que, no fundo, lhe fora útil a experiência dos últimos anos, vivida como estrangeira, em perpétua mudança, a dizer “olá” e, logo, “adeus”, e a adaptar-se aos muitos “outros” que fora encontrando. “Estrangeirada”, agora, na própria terra.
Por momentos, parecia-lhe que lhes dera um impulso novo, um entusiasmo, a curiosidade. Duvidava sempre. Essa impressão era, talvez, enganadora. Com o passar dos dias, o entusiasmo ir-se-ia fanando como uma flor. Depressa a curiosidade deles esmoreceria e voltava o cansaço, as queixas, a falta de motivação.
-“Para quê, professora?... Não vai servir para nada. ”
Nesses dias, quando se sentia desanimar, pensava: “Felizmente há a música...” Punha um CD e não falava, deixava-os tranquilos a ouvir, se fosse necessário durante a hora inteira. Usava-a para os atrair, para os interessar pela língua francesa. Era bom ver a reacção à música que lhes trazia com todo o seu amor por ela : Jacques Brel e “Ne me quitte pas”, Barbara e “Nantes”, Piaf e "Je ne regrette rien", Reggiani: "Votre fille a vingt ans/ que le temps passe vite,/hier encore elle était si petite/ et ses premiers amours sont vos premières larmes"...
Os rostos distendiam-se, suavizavam-se as expressões carregadas, cantarolavam acompanhando a música e ela sorria nesses momentos. E quando descobriu que, com o Joe Dassin, podia ensinar o condicional, em francês, sorriu, contente com a ingenuidade da descoberta: "Et si tu n'existais pas/alors pourquoi j'existerais?" Com a letra da canção em frente, todas cantavam...
Teria ficado tão triste se lhe dissessem que a sua música não prestava.

E, nas férias, nos fins de semana, pouco a pouco, começou a sentir saudades dos seus “sombrios” da noite, das alunas queixosas, das angústias, da fragilidade, da ingenuidade tantas vezes, das histórias trágicas do quotidiano igual, dos filhos, das creches dos filhos, das aulas dos filhos, do pouco tempo que têm para a família.
E lembrava-se da alegria quando a viam, depois das férias, voltar, carregada com o gravador e os CDs, algum livro de pintura, imagens. Como se agarravam à secretária dela, a contar tudo o que se passara durante aquela ausência, a queixarem-se. A pedir, sim, a pedir, no fundo, que não as abandonasse, que não deixasse de as ouvir.
E essa ideia ajudava-a, porque percebia que precisavam dela. Talvez afinal não tivesse sido inútil a escolha que fizera da noite...


terça-feira, 17 de março de 2009

Me, myself and I...





Me, myself and I

(homenagem a Billie Holiday)

“Quando eu nasci, a parteira envolveu-me numa toalha e mostrou-me ao meu pai. Ele pegou-me com as suas mãos grandes, aparentemente desastradas, e olhou-me. Penso que me senti segura ao pé dele, e que essa sensação a levei pela vida fora. Eu tinha uns cabelos negros e lisos, no ar, uns olhos de chinesa, ainda meio fechados.
O meu pai olhou para a D. Eduarda, numa interrogação muda. Julgara que eu era um rapaz. Ela disse-lhe, abanando docemente a cabeça:
- Não, Sr. Doutor, é mais uma menina...
Suponho que o meu pai teve pena, mas depois encolheu os ombros, com ar de resignação, no seu modo desajeitado, e foi pôr-me ao lado da minha mãe. Fez-lhe uma festa nos cabelos suados e ela sorriu, penso eu.”

("Histórias da casa amarela", livro em preparação)

Esta história é para Billie Holiday, Elinor de seu nome, que não sentiu essa segurança, ao nascer, em 7 de Abril de 1915, ela, filha de pais quase adolescentes, abandonada pelo pai ainda antes de nascer e com uma mãe, infantil toda a vida, que pouco ou nada cuidou dela e a deixou ao Deus dará.
Leio a biografia, bem feita, séria, de Donald Clarke, que se intitula “Billie Holiday, Wishing on the Moon”.
Aos doze anos, bonita, corpo elegante, aparentando mais idade do que a real, com a pele muito clara -herdada de um bisavô paterno irlandês que a tivera de uma escrava negra-, já cantava nos bares de Baltimore e começava a drogar-se.
Infância difícil? Como muitas outras crianças negras do West Baltimore. A escola da rua, tentando sobreviver...



Mais tarde viveu, e cantou, em Harlem, depois nos night-clubs brancos, da moda, de New York, negra sempre e isolada.
Eram os tempos do swing, do jazz -aparentados, mas em lados opostos, com os tempos dos Contos do Jazz Age, de Scott Fitzgerald. E dos magníficos músicos, saxofonistas, trompetistas, e pianistas que a acompanhavam, de Count Basie a Gillespie, de Charlie Parker –que morre destruído, gasto, aos 32 anos- a Teddy Wilson, de Louis Amstrong (cuja colocação e timbre de voz lhe serviu de exemplo) ao maravilhoso Lester Young, o Pres, seu companheiro e amigo, que morre poucos meses antes dela, ela Lady Day, ou Lady apenas, como lhe chamavam, que vai morrer em 1959 (vai fazer 50 anos dentro em pouco), aos 44 anos, gasta pela vida, pelos homens que amou e lhe batiam e se serviam dela, destruída pelo álcool e pela droga em que se iniciara ainda miúda.


Quero apenas contar uma história dela.
Uma noite, já para o fim da vida, completamente bêbeda, recusa-se a entrar na sala cheia do night onde a esperam os fans há quase duas horas. Encostada ao balcão do café que fica no andar de baixo, com um copo de vinho na mão, teima em não subir. O marido –o daquele tempo- bate-lhe, dá-lhe um murro e vai-lhe dando encontrões, empurrando-a pela escada acima. Ela sobe, entra na sala, indiferente aos aplausos, e vai sentar-se numa cadeirinha ao pé dos músicos.

Talvez vestisse o seu vestido branco de lantejoulas, e tivesse duas gardénias brancas, na orelha esquerda como sempre, entaladas nos cabelos lisos puxados para trás, as mãos finas e a tremer.


Faz sinal para começarem a primeira canção.
Canta com a sua voz fantástica, um pouco arrastada, plangente, um pouco mais mortiça, talvez o Strange Fruit, talvez Gloomy Sunday ou, ironicamente, My man...
Acabada a canção, depois dos aplausos do público que ensurdecem tudo e todos, vira-se e faz sinal para tocarem a última canção da lista. Alguém vem sussurrar-lhe ao ouvido que não pode ser, que a plateia espera mais, não pode cantar apenas duas canções para quem pagou e esperou por ela...
Sem o olhar, começa a cantar e, quando acaba, levanta-se, agradece e vai-se embora sem olhar para trás.
Lá de dentro chamam-na, gritam por ela, mas a Lady não volta.




(Podem encontrar o livro de D.Clarke na Amazone)










quinta-feira, 12 de março de 2009

porque escolhi "la Chaise vide", do Rabbi Nahman de Breslav




Por quê abrir o meu blog com este livro, com esta frase? Porque o Rabbi Nahman foi um homem extraordinário, que pensou e escreveu coisas com as quais estou de acordo. Porque é um pensador positivo, como hoje se gosta de dizer, alguém que tenta ver, à sua volta, o que há de bom numa pessoa, numa atitude, num momento difícil e o comunica aos outros, em pensamentos de uma pureza generosidade imensos. Como ele dizia, "é proibido proibir a esperança!"

O Rabbi foi também um contador de histórias maravilhosas, simples, cheias de poesia e de inteligência, como pequeninas janelas abertas para a vida. Um homem religioso, sem dúvida. Um homem bom. Que me toca profundamente a mim, criada por um pai que se dizia ateu e em quem vi atitudes próximas dos evangelhos e de São Francisco de Assis, que ele respeitava e lia.

O que é o sentimento religioso? Eu creio que é respeitar o mundo nas suas pequenas coisas, no mais pequeno ser vivo, e abrir-nos a essa sensibilidade. É também querer compreender e dar o que se tem dentro de nós.

Nesse caso, o meu pai era um homem religioso. Serei, talvez, uma pessoa religiosa...




"Perdre espoir,

c'est un peu perdre sa liberté,

c'est un peu perdre ce que l'on est."

Perder a esperança é um pouco perder a liberdade
é um pouco perder o que se é...













http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/biography/Nachman.html