sexta-feira, 30 de março de 2012

Com um livro na mão, falando com Agatha...

Agatha Christie, aos 16 anos, retratada pelo pintor N.H.J. Baird (foto tirada do livro)

Acabei a "Autobiografia" (ASA, 2011) de Agatha Christie e ficou-me uma saudade enorme dela e da nossa conversa. Razão tinha a Ana Luísa...

Fez-me rir, sorrir e protestar com ela. Ouvir o que ela dizia e indignar-me com a invasão dos eléctricos, admirar o que ela via em Torquay, em Ashfield.  Segui-la no seu curso de enfermeira durante a Iª Guerra, "vê-la" a tratar, com a maior simplicidade e altruísmo, os soldados que vêm da frente... Sem estados de alma exagerados.

Como dizia Pennac, os livros devem ser lidos “como nos apetece” : o que equivale a dizer: de trás para diante, saltar páginas, ir ver o fim e voltar ao princípio, enfim, a liberdade total!

Normalmente não leio os livros deste modo. Desta vez, porém, a ideia de já “conhecer” bem Agatha deu-me vontade de ir à procura dela de todos os modos!

De facto, lera há tempos a óptima biografia da autoria de Laura Thompson (de que já falei aqui) e  "folheei" (para trás e para diante) “Os cadernos secretos”, de Agatha.


Ao ler a sua autobiografia, recordo a biografia e vejo que as coisas coincidem, no essencial.
 Porque o essencial é ela, Agatha. E ela está ali.

fotografia do livro, Paris, 1906

O que ela “quis” escrever e “deixar” dela, como imagem, é aquilo – para além dos seus livros, claro. As que oculta, por exemplo, como o seu desaparecimento durante dias (ainda hoje pouco explicado) quando o primeiro marido lhe confessa estar apaixonado por outra e querer o divórcio.


O choque e a desilusão sofridos são tão fortes que perde a memória. Ignora (diz ela) onde esteve, o que fez. Laura Thompson tem a sua ideia (1).

Está no seu direito. Penso que escritor, o poeta, enfim, o artista fica na sua obra.

O livro foi publicado postumamente. Tem o direito de dar a sua imagem de si, boa ou má.

E é na obra que encontramos o escritor na sua verdade. Mais “verdadeiro” do que em todas as biografias que descobrimos tantas vezes “falseadas” pondo em relevo o que está na “moda”, conforme os tempos que correm, tantas vezes trazendo só “lixo”.

Com o primeiro marido, Archie Christie, em 1919 (foto tirada da Autobiografia)

Tem o direito de contar como quiser a sua história de amor com Archie Christie, a sua história que acaba mal. 

Ou a outra história (de amor?) do seu segundo casamento, com Max. Talvez, antes, a história de uma grande amizade, de gostos em comum sobre arqueologia, viagens, países do Médio Oriente, escavações. Que os une até outro sentimento mais forte aparecer no ar e se tornar amor.

fotografia com o segundo marido, Sir Max Mallowan (in "Agatha Christie, An English Mystery")

E vêm por ali fora as viagens aventurosas, as histórias vividas com intensidade, os sentimentos que experimenta
O que se passava enquanto escrevia. Como escrevia. O que via. Ouvindo atentamente os que lhe contavam histórias - e cujas ideias, depois, ela “absorvia” e se tornavam na inspiração e na “trama” dos romances.

“Como acontece a todos os escritores, essas coisas transformaram-se, no meu espírito, e acabam por não ficar muito parecidas (...). No entanto, foi essa a inspiração que criou o acontecimento” (pág. ).


E vai crescendo e observando os mundos que vai descobrindo, aprendendo que as culturas não são iguais e se devem respeitar.

A abertura de espírito desta mulher nascida noutro século é maravilhosa.

“No Médio Oriente nada é o que parece. As nossas regras de vida e de conduta, de observaçãoe e de comportamento, devem ser todas invertidas e reaprendidas” (pág.487).

Quão actual tudo isto se revela, tão verdadeiro, ainda nos nossos dias! Porque Agatha Christie tem esta qualidade: é sempre actual. Não passa, não passou, nem passará de moda...

É, no fim e ao cabo, mais uma “obra” dela que descubro, com enorme prazer, é ela que aparece em cada momento.

Agatha, criança, retratada por Baird
fotografia do livro, com a legenda de Agatha:"eu quando era pequena"

A infância, adolescência, os pais, a irmã mais velha,  Madge, o irmão mais novo, Monty e Scotty, o cão dele.
"Scotty", pintado por Baird


O pai, doce e distraído, a  mãe de uma sensibilidade extrema– a importância daquela mãe um tanto fora do vulgar, muito inteligente e atenta, sem nunca pesar sobre os filhos.

O Natal, os natais... O apetite de Agatha que desde pequenina adora comer!

E descubro, divertida, que nesses natais uma das sobremesas servidas eram “ameixas de Elvas” (pág. 179)!

Agatha cresce, e continua a contar, a contar.

A juventude, os passeios, os amigos, as amigas, os encontros. A descoberta da vida, o optimismo escolhido e a sua lucidez, sempre: “(...) estamos ali, estamos vivos, abrimos os olhos e aqui está outro dia; outro passo, por assim dizer, na nossa viagem para um destino desconhecido. Essa viagem excitante que é a vida. (pág. 174).
pintada por Baird e à direita por Olive Snell

Vive, aos 11 anos, o momento dramático da chegada dos primeiros eléctricos a Ealing onde vivia a avó. Revolucionam aquele bairro tranquilo fora de Londres. 

Indigna-se.


Os eléctricos eram vulgares; eram ruidosos; iam prejudicar a saúde píublica. Existia um óptimo serviço de autocarros vermelhos e brilhantes, com a palavra Ealing pintada em letras grandes.
E os bons e velhos caminhos de ferro(...). Os eléctricos não eram pura e simplesmente necessários. Mas chegaram. Inexoravelmente chegaram.” ( pág.166)


Como ela escreve num poema, que então lhe publica um amigo dos pais: 


Correu bem
mas antes do dia acabar
a história era outra”.

Tirando esses acontecimentos, fora do comum, a vida era calma e divertida.

“Éramos como flores silvestres –e muitas vezes eravs daninhas – mas crescíamos de forma exuberante, a rebentar peloas fendas dos pesseios e das ruas, abrindo ao sol, até alguém nos pisar...”

A irmã Madge conta-lhe histórias que vão despertar a vontade de escrever: Sherlock Holmes e “O Carbúnculo Azul”, “As cinco sementes de laranja” refere ela.  (pág.164)

Também gostara de Sir Walter Scott - o “Talismã”, sobretudo-  que a mãe lhe lia ao deitar, protestando por vezes "Tanta descrição!" - e saltando páginas. E a “Feira das Vaidades” de Teckaray. Mas preferia Dickens e o seu Mr. Nickeleby

"Mas o meu livro preferido dele era, e ainda é, "A Casa Abandonada" (Bleak House).

A imaginação de Agatha não tem limites desde a invenção das “personagens” inexistentes de cãezinhos e gatos que povoavam as histórias inventadas. 

Na escola a professora censura essa imaginação: “Foge ao tema!”

De facto, uma vez ao falar do tema do Outono, começa pelas folhas douradas na floresta e que vai acabar a contar a história de um “porquinho de rabo em saca-rolhas” que ela “vê” aparecer por ali à procura de bolotas.
Tudo a interessa, tudo a diverte! Aceita a vida com simplicidade.

As idas às praias de banhos mais a “máquina” de banhos onde as senhoras “embarcavam”, escondidas num tubo de metal tapado dos lados, até serem “depositadas” já dentro do mar.



São "quadros" que se desenrolam em frente dos nossos olhos como no écran de um cinema de praia...

Perto, mas separada, a “enseada dos cavalheiros”. E o clube onde se reuniam para ver de binóculos de ópera a semi-nudez dos corpos femininos. 
Quer dizer:  corpos “embrulhados em roupas” até aos joelhos e de meias, que eram o drama de Agatha quem assim que começava a nadar...perdia as meias!

“(...)o fato de banho de alpaca azul-escura ou preta, com inúmeras saias e folhos a terminarem bem abaixo do joelho e que cobria também os cotovelos (...). 


Que estranha ideia de “sensualidade”, espantava-se ela(pág.186).

E, acima de tudo, o que é maravilhoso nestas recordações, é a ironia de Agatha, o seu sentido do humor (por vezes negro...), imparável, que eu adoro!

Que nos surpreende a cada instante, fale ela da cozinheira, do cão, do Internato em França, ou das meninas casadoiras do seu tempo.

Auguste Renoir, Le Bal

Ou indo com ela ao Cairo da sua juventude, onde passa um Inverno a “aprender” a não ser tímida e poder “debutar” calmamente na sociedade inglesa.

quarto de Agatha (hoje Museu) no Pera Palace Hotel
Istambul, Hotel Pera Palace

Ou viajando com ela até Istambul, ficar no Pera Palace Hotel, ir ver o quarto onde se instalava.


Acompanhá-la às escavações no Iraque, a Nimrud, viajar pelo Nilo, seguir pelo Médio Oriente!


De barco, de comboio, de jeep, de camelo... Representando, ao lado dela,  "o nosso papel na vida", como costumava dizer.

Aconselho vivamente esta leitura a quem precisar de se animar: quero dizer: é bom contra qualquer depressão!

6 comentários:

  1. Tens toda a razão. Agatha é uma inspiração. (até rimou!)

    Ja li a autobiografia e maravilhei-me.

    A minha opiniao está lá no meu blog.

    Bom fim de semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Miguel! Vou espreitar. Agatha é uma das minhas paixões!
      Bom domingo!

      Eliminar
  2. MJ, não estou deprimida, felizmente, mas penitencio-me por ainda não ter começado a ler Agatha Christie... E, quando começar, certamente que vou penitenciar-me duplamente por ainda não o ter feito. Mas nunca é tarde...
    Mais uma vez, "abriu-me o apetite" (o que não é difícil!!) para ler a autobiografia.
    Tenho que falar com o patrão para me reduzir o horário de trabalho... assim não pode ser. Tenho livros para ler à espera...
    Beijinhos e um excelente fim-de-semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ler Agatha Christie faz bem a tudo!
      E meta esse patrão na ordem! Já chega de abusos: ler é uma necessidade - feche a porta e não deixe o "patrão" entrar e leia tudo o que aí tem da Agatha. Eu até sei onde está a sua estantezinha com os Vampiro!!!
      beijinho

      Eliminar
  3. Deixei um comentário, mas pelos vistos não saiu. É a porcaria das letritas, que de vez em quando nos falham...acho eu...
    Também comprei a biografia, depois de a ouvir falar com tanto entusiasmo (noutro post), mas ainda não li. Se já tinha vontade, com mais fiquei.
    Eu não tenho que falar com o "patrão", mas tenho que tentar ser mais organizada. Não sou lá muito.Mas pronto, também não gosto de andar a correr.
    Um beijinho

    ResponderEliminar
  4. Nessas viagens, muito extraordinárias, ao Cairo e a Istambul, ela andou sempre connosco...

    ResponderEliminar