E tinha razão. A casa parecia revolvida por um furacão.
Loiças no chão, em cima das mesas, um pandemónio quando chega a hora de comer. Há muitos dias que o Ratinho protesta.
O ouricinho segue-o sem palavras,
olha-o, aprova mas não diz nada.
- Viste a cozinha em que estado está, insiste o Ratinho. Como
é possível?
- Ratinho, não posso fazer nada. Estão a pintar os armários,
o tecto.
- É horrível!
- O que queres? Tinha e ser. Estavam feios e velhos...
- Desde quando é que os velhos têm de ser pintados?, retorquiu,
com um meio sorriso.
O Ratinho é muito irónico e não resiste à “blague”, como
diria o Ega.
- O trabalho tinha de
ser feito!
- Sim, sim.. Mas tanto tempo...
- Pois é, muito tempo nisso tens razão.
Pensava no incómodo que tinha sido tudo aquilo. Passara uma
semana. Havia pó branco por todo o lado, pegadas de fantasma que percorriam
para trás a para diante o corredor, panos a tapar o que era impossível tapar...
- Já viste a tua sala? Eu cá nem lá ponho os pés. Poeirada,
fico cheio de alergias!
O ouricinho acenava com a cabeça, que sim, que ele também.
- Dói-me a cabeça das tintas à noite, disse, suavemente. É do pó.
O ratinho continuava,
a espreitar agora à porta da sala, onde se recusava a entrar.
duas imagens da loja de antiguidades de Farnham (MJF)
- Olha para isto! Parece aquela loja de antiguidades que
viste em Guildford!
Sacudiu as patinhas de um imaginário pó.
Ri-me a pensar nos argumentos que ele ia buscar. Lembrava-me
dessa casa em Farnham e naquela confusão: uma vivenda cheia de coisas variadas,
de cima a baixo, nas escadas, nos corredores, nas paredes...
- Percebo a tua impaciência. Não posso fazer mais nada. Temos
de esperar mais um dia.
- Um dia?! Acreditas em tudo... Vais ver!
Foram-se embora para o meu quarto. Era ali que se tinham
refugiado nos últimos dias, encostados ao vidro da janela, a olhar para fora,
como se fosse uma barricada contra os bárbaros. Ele, o ouricinho e a gatinha japonesa,
agora muito amiga deles.
Ouço um grande suspiro. É o ouricinho. Ele sabe que eu estou
em grande tensão, que tudo aquilo me incomoda tanto como a eles.
- Ó Ratinho, acaba com isso! Ela não tem culpa!
Ficou para trás a olhar com os seus olhinhos preocupados. Foi buscar uma roda de plástico para brincar.
Olhei em volta, desconsolada.
Loiças por toda a parte, desarrumação total. E quem ia
arrumar aquilo?
Até o pacote dos corn
flakes do pequenos almoço estava ali misturado! E o chá de cidreira!
Há anos que adiava aquela obra.
Só me faltavam as queixas do ratinho!
Perdoo-lhe, claro, conheço o seu feitio impetuoso,
protestatário. Está no feitio dele. E
exagera sempre. Sabia que naquele momento preciso já estava um pouco arrependido.
De facto, disse pouco depois:
-Eu não disse que tu tens culpa!
- É só que nos sentimos muito desconfortáveis... Gosto tanto
da tua casa! De estarmos sossegadinhos contigo a ouvir as nossas músicas. A ver
o céu lá fora, ir à varanda ver as flores da primavera...
- E o tomateiro!, disse o ouricinho entusiasmado. E as
cebolinhas...
Também a mim me faltava esse sossego!
A nossa música, tem razão. Ele adora ouvir Chet Baker, Lester
Young e a voz de Ella Fitzgerald e Dinah Washington. Mas a sua preferida é
sem dúvida Billie Holiday.
Quantas vezes, dou por ele, sentado no cantinho do sofá amarelo
a ouvi-la.
Quando os pintores acabaram o trabalho, vieram os três ter
comigo.
- Desculpa, mas sentíamo-nos tão desconfortáveis!
- Eu sei, Ratinho, todos nos sentimos mal nesta confusão.
Temos que pensar, porém, que há coisas na vida que têm mesmo que ser feitas. Mesmo
que nos contrariem a tranquilidade e não sejam agradáveis...
O ratinho e o ouricinho estavam de cabeça baixa. A gatinha já
estava empoleirada na janela.
Voltei a olhar em volta e agora o suspiro foi meu:
- Meu Deus! E como vou eu arrumar tudo isto?
Havia pó, livros, tudo estava fora do sítio...
O ratinho apresou-se a dizer:
- Ora! Tens o teu anjo loiro, a Masha, Ela limpa tudo!
Pintura da pintora francesa Marie Laurencin
Era verdade: abençoada Masha, a minha amazona ucraniana!
De repente, o Ratinho ergueu a cabeça, deu a sua gargalhada e
pediu:
- Vamos fazer as pazes? Pões-nos uma música da Billie Holiday?
http://youtu.be/ubG3jZ-h0AU