terça-feira, 3 de julho de 2012

“O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO”, de John Steinbeck




Passou um Inverno difícil para todos nós... 

O nosso descontentamento foi enorme. E este Inverno difícil  continuou pela Primavera e pelo Verão - insípido e anormal.

O descontentamento sente-se quando se vê o homem ser substituído pelo que é material, o “ter” e o "ter muito"...

Quando o "bem" dos Bancos (ou a dívida deles)  é colocado acima da vida, do sofrimento e da dignidade homem, esse pobre “bicho da terra tão pequenos”, que nós todos somos, algo vai mal no reino da Dinamarca.

O descontentamento cresce, a impaciência também. A indignação já não é o que era?

Com Steinbeck, indigno-me de novo - a ler “O Inverno do nosso descontentamento” (Edição Livros do Brasil, “Colecção dois mundos”, Lisboa, 1962 - muito bem traduzido por João Belchior Viegas).

O que é o destino de um homem? O que transforma seu destino? O que falha nesse destino sonhado de outro modo?
John Steinbeck, 1962

Ambições, desejos, esperanças e desilusões –tudo amalgamado. Tudo perdido?

Ethan, a adolescência, o amigo, Danny.

Danny Taylor, o amigo que vai ficar pelo caminho.
Danny, o frustrado, porque não conseguiu alcançar o seu “destino”, o “sonho”.
Danny que se embebeda um dia, até morrer. Que lembra certas figuras de "Tortilla Flat" (Milagre de São Francisco). E morre com a ajuda de Ethan Hawley, o narrador.
Ethan – mas que herói?
Herói na procura do porquê das coisas.
Porquê assim - e não de outra maneira? Porquê exigir?

A liberdade da escolha, a procura da dignidade. E a pena de ter perdido uma parte do sonho.

Resta-lhe o talismã, a pedra raiada de vermelho que guarda na sala, no armário envidraçado, que agarra na mão sempre que se sente perdido ou duvidoso.

E o regresso, necessário e  constante, ao Porto Velho, ao seu “porto do destino”, no fim, o seu porto de abrigo, nos momentos em que tem de pensar na vida. E vêm visitá-lo os antepassados: o avô, velho capitão do barco afundado ali perto, ou a doce tia Deborah que lhe lia a Bíblia, em menino...

Isabel Rawsthorne,  "janela", na Tate Gallery
Ben Nicholson, "porto", Tate Gallery

E volta o passado. Imagens e pessoas, rostos, pensamentos.Por que pensa tanto no Cristo da Paixão?
O romance começa na Páscoa, numa sexta-feira de Paixão. E é a solidão do Cristo que o entristece.

A Sexta-Feira Santa sempre me perturbou. Ainda criança, já me sentia profundamente  entristecido, não pelo suplício da crucifixão, mas pela ilimitada solidão do Crucificado. Nunca me abandoou essa tristeza implantada por Mateus e lida pela minha tia Deborah na sua maneira hesitante.” (pg. 48)
a solidão do Cristo Crucificado, José Régio


Porquê assim e não assim?, interroga-se Ethan.
O instante que se vive escolhemo-lo nós? No romance,  o instante que se vive, vive-se mal, com insatisfação, com dificuldade.

O instante é o momento que não vai passar uma segunda vez, à nossa mão?
Será a honestidade um bem?

Sim. O homem honesto tem quem o aprecie. Mas a sua existência é inquietante. Desestabiliza os outros.

Quando se está habituado aos crápulas, aos mentirosos e aos scrocs, um homem honesto pode perturbar-nos” – desabafa o polícia que procura Ethan para falar de Marullo. (pg.245).
Leonardo da Vinci, cabeça de Judas

Foi "isto" que desconcertou Marullo, o italiano, o emigrante que ninguém ajudara quando chegou da sua terra.
Que acaba sendo traído...
Marullo era patrão de Ethan e, quando percebeu que Ethan cuidava do seu negócio sem o enganar, ficou agradecido e nunca mais esqueceu. Tinha descoberto que a força de Ethan era a honestidade.

Marullo quer fazer de Ethan “uma espécie de monumento a uma coisa na qual outrora acreditou.”
Assim a chama não se extinguirá”, acredita ele.

Um dia, Marullo...
Bem, um dia - logo verão os que se decidirem a ler o livro.

Olhar para trás? 

imagem do filme de René Clément, "Jeux Interdits"

Sim e não. A adolescência feliz é inesquecível, claro. 

Danny está ligado a essa adolescência feliz. Mas Danny perdeu-se. Vive afastado na casa arruinada dos antepassados e ora bebe, ora sofre e quer beber. E ao lado, tem uma caixa de garrafas de whisky vazias.

Como diz Joey, o empregado do banco e filósofo nas horas vagas:

Agarra tudo o que está ao teu alcance, porque a ocasião não se apresentará uma segunda vez”.
Ethan ouve-o, e, num momento de desespero, segue o conselho. “Você é um financeiro filósofo”, murmura Ethan.

E vai à gruta, no porto, pensar.

Era ali o meu porto de destino. Lá passei a noite inteira na  véspera de ser mobilizado. (...) Algo me ordenava que viesse aqui instalar-me no interior, escutar as vagas batendo nas peras, contemplar os recifes denteados."  (pg. 56)

E o lado moral da questão?”, perguntará um dia Ethan a Allen, o filho adolescente.

Não olhes para trás, porque te atrasas...” E não conseguirás nunca mais andar em frente...

Nada é fácil quando a vida é difícil e a sensação de frustração ronda por perto.
Há descontentamento. Impaciência.

Ethan tem uma mulher boa, Mary, uma mulher forte e doce, a quem os da família se agarram.
Mary, a “mulher-rocha”, no dizer de Margie Young-Hunt, a bela quiromante, que um pouco, um pouco, a inveja...

É como a gaivota que se eleva no vento sem bater as asas”. (pg.290)
Tem dois filhos adolescentes, Ellen que adora o pai e Allen que se choca com ele, todos os dia.

Por que se sente só, então? Pensa em Danny. Lembrará neste momento a “ilimitada solidão do Crucificado”?

Danny era um solitário?”
 Danny, o desadaptado, o falhado, não era um solitário, escolhera ele a sua desgraça e a sua solidão e não sofria com isso.

E ele, Ethan? Era ele um solitário?O que foi feito daqueles dois ? 
Estamos longe uns dos outros. O que fazer? 
Não nos compreendemos. Como agir?

E o nosso descontentamento permanece.

Lançamos mísseis no espaço, mas não podemos curar o descontentamento e a cólera.” (pg.173)

Não podemos curar nem a solidão.

Lembro inevitavelmente os versos de Couto Viana: “Os homens chegam à lua/ mas  a minha mão não chega à tua...”

Ethan vai ter que decidir coisas difíceis.
Vai ter surpresas que não sonhara viver.
Vai desesperar.

Tu vais e não voltas mais”, dissera-lhe Ellen, a filha.
Vai recear por alguém, que o ama e que se pode “perder” para sempre.

 E é no porto do destino que, com o talismã bem agarrado na mão,  tudo se vai decidir.

Se não, uma outra luz poderia apagar-se”...

Termina assim o livro. Um livro maravilhoso e duro.

Eis o Inverno do nosso descontentamento/Tornado Verão glorioso por este Sol de York” (1)

(1) Shakespeare, Ricardo III, “Now is the winter of our discontent/Made glorious summer by this sun of York
Trocadilho (*) entre “sun” (Sol) de York (o Sol era o símbolo heráldico da cada de York) e “son” (filho), referindo-se a Ricardo III, filho de Eduardo IV.

(*) Também Steinbeck vai usar o mesmo trocadilho.

4 comentários:

  1. Vinha à procura da Julie London e encontrei o Ratinho Poeta e o Ouricinho.
    Ganhei com a troca!
    E de tudo o que li e gostei, escolho e retiro esses lindos versos que dizem tanto :"Os homens chegam à lua/ mas a minha mão não chega à tua."

    Um beijinho grande e cá fico à espera que nos traga a Julie London, que acho que não conheço.

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    1. É um belo livro, Isabel! O ratinho e o amigo estão sempre à espreita...
      beijinhos

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  2. ..."e todas as nuvens que se encapotam sobre a nossa casa estão sepultadas no fundo seio do oceano."

    Ethan comprovará como a felicidade não está nos bens materiais. O livro analisa verdades profundas com o estilo inconfundível do autor.
    Muito boa escolha.
    Beijinhos

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  3. É verdade, Maria. Sabia que tinhas de ter gostado... Andam próximos os nossos gostos. Foi um livro dos que mais me impressionaram ultimamente e demorei que tempos a lê-lo, a voltar para trás, a perceber o que nem era difícil, pois ele escreve muito bem. Mas é demasiado dura aquela realidade...
    Que "todas as nuvens que se encapotam sobre a nossa casa estejam para sempre sepultadas no fundo seio do oceano!" Assim seja!
    beijinhos

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