sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O meu aluno Rogério e a Utopia...


Edward Hopper, Lighthouse Hill

Cascais, Castelo

- Utopias? E...
- Gosto das utopias! Desculpa, interrompi-te...

Falávamos de utopias. Dos marcos que nos deixaram, pela estrada, alguns professores, do farol a meio da tempestade, dos livros que são mestres. 
Falávamos de tudo um pouco naquela manhã de Novembro.

          -Não faz mal, respondi-lhe. Ia a dizer "faróis". Castelos no ar...
E continuei o meu raciocínio. 

- Estava a pensar se a  solidariedade é já uma utopia. Eles fecham-se...
- Quem?
-Os meus alunos fecham-se, protegem-se contra os próprios colegas...


Mar da Ericeira (MJF)

Ela encolheu os ombros, fixando os olhos no mar bravio lá adiante. E foi dizendo, pausadamente.

- Foi sempre assim, não foi?
- Não, não foi. Estou convencida de que esta “concorrência” desenfreada, a ideia de “seres obrigado” a teres melhor nota do que os outros, cria uma luta tremenda!

A minha amiga olhou-me, pensativa. Falávamos sempre que podíamos das nossas preocupações. E o ensino era uma delas porque tínhamos sidos as duas professoras. 
Colegas na adolescência, amigas - e tantos anos sem nos  vermos, longe uma da outra!- no entanto o diálogo era sempre íntimo e a compreensão total.

- Sim, perdeu-se um pouco o sentido da “camaradagem” dos nossos tempos. Lembras-te?

Como podia esquecer-me! Tínhamos catorze anos e entre querer brincar -ainda- e estudar, aprender, crescíamos. Mas o "desafio" era entre camaradas de classe, lealmente. 
Agora estávamos naquele café a conversar. Ela fumava muito, eu não, só bebia café. Sempre gostei de café e dos ambientes dos cafés.


Korovine, Café de la Paix

Café Angra, na Praia Grande (MJF)

Edward Hopper, New York Restaurant

Continuei.
- Julgas que se preocupam em ajudar um colega que “caiu” na droga? Não... Não se ralam, afastam-se.
- Compreende-se...
- Por um lado é verdade, mas a vontade de ajudar já não não existe? Não é um imperativo?
- No nosso tempo era...

Parou, a pensar, e disse, muito séria:

         - Seria?...

- Não sei. Sei que agora juntam-se em grupos “safe”,  assépticos, que não fumam, que não se drogam. Meu Deus, é claro que eu não concordo que se droguem! Mas, numa aula,  não pode existir o “pestífero”, o “intocável”!
 - Certo. Tens razão. Deve-se encontrar uma maneira de não fechar as portas. Continuar a “sentir” o outro.
Degas, Café-Concert

- Sim. É isso. E eu sinto-os é  blindados num egoísmo feroz. Tão novos, ainda...
-Blindados? Que estranha imagem. Mas por quê? Pelo medo da “morte a rondar por ali”?...
Edward Munch, Cinzas

-É tudo. Talvez até o medo da “contaminação” do outro. Estão sempre na defensiva. Uns desesperados, acho eu! Uns solitários!


- Sim, é uma forma de desespero. No fundo, a morte e o desespero andam juntos na adolescência. Até no tal filme do Clube dos Poetas Mortos de que estivemos a falar...
-Só que o medo da morte e a angústia não “te” devem pôr na defensiva. O outro pode ajudar-te também. E tu deves ajudá-lo. Ou não?...
-Não podemos criticá-los, é um risco sério. Sabes que é difícil ajudar uma pessoa que se droga.
- Verdade. Mas não pode haver “excluídos” numa escola! Não pode!

Ela pousou apagou cigarro.
- Sim. A solidão deles é terrível.


Edward Munch, O baile da vida

Acrescentou:
-Vi muitas situações dessas. Tive amigos que fumavam, ou se injectavam, alguns  conseguiram deixar a droga. Outros, não... Nada é simples.

Lembrei-me do Rogério. O que seria dele? 
Edward Hopper, Freight Car

-Tive um aluno difícil, numa turma complicada. Um aluno esperto que não conseguia concentrar-se. Só lhe interessava desenhar e era o que fazia durante a aula toda. 

Encolhi os ombros, parecia-me estar a vê-lo.
-Talvez nem me ouvisse. Via-o desenhar árvores, pássaros, geometrias coloridas.

Edward Hopper, Parque


Via a turma toda. A aula era no rés-do-chão virada para a entrada e para as árvores enormes, plátanos cujas copas mudavam com as estações, mas guardavam sempre a sua beleza.
- O Rogério! Cara  de miúdo, magro, com a franja na testa, e uns dentes grandes. Todos os dias me provocava!
-Provocava-te? Como?
-Acho que era isso: provocação...
Ela sorriu também, lembrava-se de nós de certeza. 


Edward Munch, Primavera no passeio


Tínhamos sido alunas tranquilas, mas com tanta vontade de brincar nas aulas. Quantas provocações teríamos feito nesses tempos, se os tempos fossem diferentes... Ela fazia-as sempre que podia! Uma revolucionária! Eu era mais tímida, mais reservada, mas sempre de acordo com ela.

- Uma vez trouxe um rato e largou-o no estrado, a meio da aula. Outra,  pôs umas baratas ao pé das colegas para elas gritarem. E gritaram, excitadas e com medo. Observava-me.
- Procurava-te. Era para te chamar a atenção.
- Sim. A ver até onde o deixava ir. Talvez quisesse ver se me preocupava com ele...
-E como acabou?
-Nunca o expulsei da aula, ralhava-lhe e combinávamos que não voltava a fazê-lo...Tentei entusiasmá-lo com o que estudávamos. Faltava muito. Depois voltava, sem uma palavra. Desinteressado, pouco ouvia, entregava os trabalhos sem os acabar.


Eduardo Luiz, "barcos de papel"

- Esperava um gesto teu...
- Só que eu não sabia qual era! Numa aula, pedi-lhes que ilustrassem uns contos que tínhamos lido. Ele aplicou-se. E os desenhos eram bem bonitos e expressivos! Resolvi dar-lhe uma boa nota. Foi um exagero, não merecia...

Edward Munch, a Princesa

- Que importa? E depois, ele mudou?
- Se a história acabou bem, como nos filmes? Não, não  mudou. Consegui apenas que não chumbasse, dei-lhe a nota para passar.
- E depois?
- No ano seguinte não voltou para a escola. Depois, fui sabendo que  ia bem, noutra escola.  Na Caparica! Mandava-me recados, perguntava por mim.  
De repente, senti-me triste.
- Ajudei-o? Ou era mais uma utopia? Soube que aquele tinha sido um ano difícil, tomava conta do irmão, drogado.


O farol (MJF)

Pareceu-me que ela já estava à espera do desenlace.

- Que ele ajudava ...claro.
- Suponho que sim. Sozinhos, longe da família, o irmão em tratamento, frágil, e ele não sabia o que fazer. Talvez se revoltasse e me provocasse para chamar a atenção.
- Precisava de alguém.
- Queria que eu o visse e lhe desse a mão... E eu terei dado?

Olhou-me, com a amizade de sempre. Pensei:  "Que bom ter um amigo..."

-E deste! É evidente que deste! Foste um farol...


Farol da Guia (MJF)

Ri-me. Eu, um farol? 

-Não sei se fui. Se soubesse antes... teria podido ajudar. Afinal, não aprendeu nada e  dei-lhe uma nota que não merecia...
-Deste-lhe existência, valorizaste-o! Reparou que tu te preocupavas com ele. Era um “sentimento”, uma proximidade. Arrependes-te dessa nota?


Maniaks, Luz

Sorri-lhe um grande sorriso, eludindo a pergunta - ou a resposta?

- Nunca me arrependi de dar uma boa nota!

E fiquei a pensar no Rogério...

4 comentários:

  1. Gosto do pintor Edward Hopper.
    Ajudar! Que complexo, que difícil. No fundo sempre estamos a pensar em nós, que é o que nos importa.
    Até quando somos generosos estamos a olhar para o nosso umbigo. Certamente somos bons quando nem sequer nos damos conta, ajudamos alguém quando menos esperamos...Digo eu, que nem sei bem o que digo...
    Bom finde, beijos

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    1. Ajudar desinteressadamente é com certeza uma das coisas difíceis da vida... Podemos tentar e , melhor ou pior, alguma coisa se consegue - quantas vezes (tens razão)sem sabermos que o estamos a fazer. O indesculpável - tu sabes- é a indiferença.
      beijinhos!!!
      J.

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  2. Querida Maria João,

    Vou ser breve. Vim aqui para lhe dizer que me tocou imenso a postagem sobre o aluno Rogério.

    A beleza das imagens em sintonia com o texto.
    Ana

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  3. Só hoje pude vir e adorei o que ví e lí.
    Ajudar vira hábito, vira faca afiada, vira rotina e daí já está entranhado. O duro é quando isso significa perder para doar, tirar de sí para dar, aí verdadeiramente vivemos a utopia, esse , penso que ainda levo uma vida para tentar.

    bjs meus

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