segunda-feira, 18 de agosto de 2014

E a vida passa como um sopro...


Millais, Ofélia

A menina da papelaria suicidou-se. É o que dizem. A verdade ninguém a sabe ao certo. É irremediável, no entanto.

Desapareceu há poucas semanas e foram encontrá-la, três ou quatro dias depois, afogada, na Boca do Inferno

céu de trovoada, no Guincho (MJF)

De vez em quando penso nela e lembro-me do seu rosto muito branco, os cabelos frisados e um pouco aloirados, dos olhos azulados. Como num sonho, já não recordo bem as feições. Era educada e tinha um bonito sorriso. Para mim, pelo menos. E parecia-me feliz.
o céu e mar, no Guincho (MJF)

No dia do enterro, sem o saber, fui comprar envelopes à papelaria. Soubera que uma delas tinha morrido e não sabia qual e, com uma certa forma de morbidez, quis saber qual “faltava”. 
Quando perguntei por ela, disse-me uma das colegas: “Foi-se embora…” E a outra acrescentou, de olhos baixos: “Faleceu. O enterro foi esta manhã”. 

Calaram-se, com o pudor natural com que se fala da morte, em certas idades da juventude. Só os velhos têm algum prazer em falar disso, da morte dos outros, porque, aliviados, pensam que eles “ainda cá estão” e (felizmente) não era a sua vez…

Abel Salazar, Vendedora, nas Galleries

As meninas da papelaria evitavam olhar para mim. Tinham os olhos fixos nos envelopes e na caixa registadora e havia uma sombra neles.
Não me quiseram contar o que não tinham de me contar. E que outras pessoas me contaram: a infelicidade no casamento, os problemas da vida, a falta de dinheiro que leva as pessoas a desentenderem-se. 
Seria, não seria? Quem sabe?

Millais, Outono e folhas mortas

Jovens como ela, nos seus vinte e tal ou trinta anos, era fácil perceber aquele mutismo. Com o espírito ausente, a pensarem na morta, nos ramos de flores no cemitério, e a ouvirem o ruído  da terra a cair sobre o caixão. Um vento fresco soprara, talvez, nessa manhã, e o céu lá muito alto, azul, estava longe, longe e frio.

céu com nuvens, em Portalegre (MAF)

Senti uma revolta grande dentro de mim. Claro que a "vida passa como um sopro". Lá diz o Salmo 144… 

Mas a vida das pessoas deve encher-se de coisas boas enquanto dura: de esperança, de confiança, deve haver um tempo para tudo, deve existir uma justiça neste mundo. A juventude deve viver!

George-Frederic Watts, Retrato de Terry


Por que foi que isto aconteceu? E vem-me à cabeça uma bela canção de Serge Reggiani, dolorosa e triste, de um outro suicídio. Outra afogada, porque mal-amada...


"Quand ils t'ont trouvée
Si blanche et dorée
Blonde blonde blonde
Maumariée, oh maumariée
Quand ils t'ont trouvée noyée

Dans le courant
Entre tes draps de mousse
Dans le courant
Les yeux fermés si douce
Comme un jardin de fleurs
Comme un jardin
Saccagé par l'orage
Comme un jardin
Comme une fleur sauvage
Tu fuyais ton malheur
Entre deux eaux
Entre deux eaux..."

Meu Deus, pensei, ela não se devia matar! E senti uma pena enorme da menina da papelaria. Era uma jovem senhora atenciosa, que me recebia sempre com um sorriso quando ia comprar as minhas canetas, os postais de boas-festas e os tais envelopes.

Inconsolável, fiquei a pensar nela.



Serge Reggiani canta "Maumariée", com música e letra de Anne Sylvestre.

3 comentários:

  1. É muito triste uma pessoa tão jovem escolher esse caminho. Teria que haver outra escolha, outro caminho...

    A vida passa num sopro...

    Um beijinho grande :)

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  2. Um belo trabalho a tratar assunto tão delicado. A manifestação do seu estado de alma com essa desgraça revela uma virtude que vai rareando: a compaixão.
    Que força implacável empurra uma jovem para a sua própria destruição?
    Na minha juventude tive um colega que escolheu "libertar-se" e fiquei na altura muito impressionado; ainda hoje quando me recordo dele pergunto-me: porquê?
    Evocou o Reggiani muito bem para aqui.

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  3. O assunto mais difícil da vida, a morte.
    Gostei do texto. Triste a partida assim precipitada. Muita gente a precipitar-se assim. Cada vez mais.

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