sábado, 2 de setembro de 2017

COMO FALAR (HOJE) DA BANALIDADE DO MAL?

Não vou usar palavras minhas, nunca seria capaz de dizer do mesmo modo lúcido e sabedor o que escreveu Simone Veil a propósito da Shoah, dos nazis e da “banalidade do mal”.

Não vou falar de grandes acontecimentos, vou referir pequenas coisas, actos impensados, que vão pôr em questão, de modo banal e irrespeituoso, coisas sobre as quais não devemos ter gestos "banais". 

E lembro apenas nos últimos tempos duas ou três coisas em que podemos falar da banalidade (inconsciente) maldosa dos gestos.
Isto a propósito de fotografias, em Auschwitz, com selfies aparentemente inocentes. Não vou pôr essas fotografias é evidente. Não sou delatora de ninguém.
Ou do vestidinho de riscas, "à Auscwitz", que a "Zara" em tempo apresentou, com a sua estrelazinha amarela no peito. Que obrigou a própria empresa "Zara" a vir pedir desculpas e a retirar as roupinhas.

E, para terminar, surgiu há pouco o livro de receitas de dieta. De modo tão infeliz intitulado "Dieta de Auschwitz", de uma autora portuguesa. Acho que em Auschwitz, de facto, as batatas cozidas eram um 'bem' quase impossível de alcançar...

Só que, com certos assuntos, não podemos ser 'inocentes' nem permitirmos brincadeiras 'banais', porque são mal apenas, penso. Erradas.
Arturo Nathan


Com o seu sentido do equilíbrio e da justiça, com a sua lucidez desiludida (como ela se considera: “Depois  de 1945 não fiquei cínica porque não era esse o meu temperamento, mas perdi as ilusões”), associado à dor vivida na pele e ao conhecimento profundo do peso de que nunca se libertará, constata simplesmente:

Os que foram vítimas nunca se salvarão disso mesmo. A muitos deles repugna falar do assunto. Outros sentem a necessidade de falar. Poucos são ouvidos. Mas todos vivem com isso dentro deles.” ("Une vie", pg. 102)
É a ela que vou buscar pois o seu "pensamento" que considero essencial e isento:

"Não partilho os julgamentos negativos sobre o silêncio culpado dos Aliados sobre os campos (*), nem o masoquismo intelectual como Hannah Arendt, sobre a responsabilidade colectiva e a banalidade do mal. Um pessimismo deste tipo desagrada-me. Tenho a noção de ver aí uma tentativa muito cómoda de escamotear o problema: ao dizermos que todo o mundo é culpado é o mesmo que afirmar que, então, ninguém o é. 

É a solução desesperada de uma alemã (H.A) que procura salvar o seu país a todo o custo e afogar a responsabilidade nazi numa responsabilidade mais difusa, tão impessoal que acaba por não significar nada. A má consciência geral permite a cada um por si de se ‘gratificar’ com uma boa consciência individual; não sou eu o culpado visto que afinal o mundo inteiro o é.” (pg. 96)

Deveriam os Aliados ter bombardeado os campos? Segundo Simone Veil, era inútil e as tentativas que se fizeram nesse sentido apenas mataram as vítimas e não atingiram os nazis.

Essas polémicas sobre os assunto não servem segundo a minha opinião senão para alimentar falsos debates – de que tanta gente se mostra ávida – sobretudo quando os acontecimentos passaram e a discussão deles não tem custos nem riscos.” (pg 95)

Voltando aos adeptos da banalidade do mal: “O que arruína esse pessimismo fundamental é o espectáculo da covardia - em confronto com a enormidade dos riscos tomados pelos Justos, esses homens e mulheres que não esperavam nada, nem sabiam o que viria depois, mas que ,apesar disso, correram todos os riscos e perigos para salvarem Judeus que, na maioria dos casos, nem conheciam. 
Os actos desta gente provam que a banalidade do mal não existe. O seu mérito é imenso, igual à dívida que temos para com eles. Salvando este ou aquele indivíduo, testemunharam da grandeza da humanidade”.(pg, 95)
É preciso coragem para ter certas opiniões. Fico contente por poder citar aqui duas mulheres fora do vulgar. E recordo Doris Lessing.
Há dias, estive a ler o seu depoimento de membro da "angry generation" a que pertenceu. 
Nascida em Kermanshah, no Irão, então Pérsia, onde o pai trabalhava, viveu grande parte da vida na África do Sul e dessa realidade e das mulheres falou.(**)
a jovem Doris Lessing

No seu depoimento, escreve: Estamos a viver uma época tão perigosa e violenta, tão explosiva e precária, que nos suscita a pergunta de se restarão pessoas vivas para escreverem livros ou para os ler. Trata-se de uma questão de vida ou de morte para todos nós e vivemos obcecados pela ameaça de que algum louco nos destrua em massa (…)”
Peter Sellers: "Dr. Strangelove" de Kubrick (1964) 
estamos em 1957. Como nos parece familiar esta conversa. Os testemunhos dos "Angry Men" referem-se sempre à realidade do deflagrar duma bomba inglesa como experiência pouco tempo antes...
Qual a responsabilidade que temos na nossa frente? Não se trata simplesmente da questão de impedir o mal mas de fortalecer a visão de um bem que pode vencer o mal.” (…) não há ninguém que hoje em dia não se encontre ameaçada, pelo medo e pela insegurança ou pelas restrições do pensamento provocadas pela miséria mundo fora.”
Para ela existem duas soluções: “Subtermo-nos a ser regidos pelos empregados inferiores do alto comércio” (ou por uma ditadura qualquer) o que conduziria à nossa própria eliminação.
Doris Lessing, 2006

Ou, então: “Que imponhamos a nós próprios o esforço de imaginação necessário para chegarmos a ser o que somos capazes de ser.”
O bem, o mal? Sobretudo, escolhermos o que podemos fazer de melhor! E não esquecer a beleza do que nos rodeia. E o respeito pela terra e pelo que nos foi deixado em herança.
Reuven Rubin, Mar da Galileia

Fico por aqui. Coisas para pensar, sim, mas com uma mensagem positiva: não nos empurram para a desistência!
Cascais, chez Jeanne (MJF)

Pelo contrário: porque há sempre alguma coisa que podemos fazer. Isso é a nossa luta, aquela em que temos de prosseguir para ser o que somos capazes de ser” e para explicarmos que há soluções alternativas à covardia de pensar que existe a banalidade do mal a desculpar-nos. Temos o nosso jardim interior para cultivarmos e, nisso, somos livres de escolher.
 o nosso jardim (MJF)
Todos somos responsáveis pelo que fizermos. Podemos ser Justos ou Carrascos. Todos podemos escolher o bem ou o mal. Todos temos as nossas sombras a colorir.
Sombras (MJF)

  (*)  Simone Veil, "Une vie", Editions Stock, 2007
 (**) Doris Lessing nasceu na Pérsia, em 22 de Outubro de 1919, viveu na Áftica do Sul e morreu em Londres em 2013. Recebeu o Prémio Nobel de Literatura em 2007 e foi o mais idoso prémio Nobel de sempre e a 11ª mulher a recebê-lo. 
Na entrega do Prémio, foi dito que premiavam: "esta epopeia da experiência feminina que com cepticismo, fogo e poder visionário sujeitou uma sociedade dividida ao seu próprio olhar.”
(***) "Depoimentos dos Angry Men", ‘perspectivas’, editorial Presença, 1963

5 comentários:

  1. Assim à primeira vista, pois não conheço o livro nem a autora, parece-me que o livro de cozinha com esse nome parece duma enorme insensibilidade, para não dizer estupidez! Há coisas incompreensíveis. Igualmente acho um bocado ridículo que se ande a pedir desculpa pelos actos dos outros. Parece-me é que temos que não esquecer e não repetir os erros que os outros fizeram, isso sim!

    Todos somos responsáveis pelos nossos actos e todos podemos escolher entre o bem e o mal.

    Gostei imenso do seu post, que nos põe a pensar!
    Beijinhos e um bom domingo:)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pensar faz bem! às vezes não dá vontade, mas é assim que se sai da monotonia e do lugar-comum que nos mata! Beijinhos

      Eliminar
  2. Assim é, se culpamos a "todo o mundo" não culpamos ninguém. Os únicos que podem solucionar os grandes problemas mundiais são os políticos, e se não querem assumir tal responsabilidade, que não se metam nessas lides. A nivel individual pouco se pode fazer pelo bem comum. Oxalá essas duas fantásticas mulheres tivessem tido poder para fazer muitas coisas mais.
    Boa semana de setembro, maravilhoso mes.Bjs

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim! Sptember Song vem logo à lembrança...Bom Setembro!

      Eliminar