quinta-feira, 10 de setembro de 2020

“LA PESTE” de Albert Camus

Quis voltar a ler o livro de Albert Camus, A Peste, que me impressionou quando aluna na Faculdade de Letras estudei o autor na cadeira de Literatura Francesa II. 
A cadeira era regida por uma professora que muito admirei. Chamava-se Maria Manuela Saraiva e do programa
escolhido faziam parte quatro escritores que considero fundamentais: Paul Claudel, Albert Camus, Georges Bernanos e Jean-Paul Sartre. 

Girava tudo à volta do sentido da vida, ou do seu sem-sentido perante a morte - a Literatura do “absurdo" e os valores éticos e de humanidade.

Quando em Março surgiu esta pandemia do “coronavirus” li num jornal que a procura e as vendas do livro de Camus tinham aumentado de repente. 

Era a curiosidade natural de saber o que teria ele dito sobre a “peste” – pois que era de uma espécie de peste se tratava -e trata- para nós : o Covid-19. Aparecido na China espalha-se pelo mundo inteiro da Europa à Ásia, às Américas, da África à Austrália, sem deixar escapar região alguma da terra.

O livro fala dos “curiosos acontecimentos” que se produziram em 1941, na cidade de Orão, na Argélia. E tais acontecimentos saindo tão demasiado do ordinário levaram as pessoas a pensar que nada mais na vida deles parecia estar no lugar certo.

Como epígrafe, Camus escolheu uma frase de Daniel Defoe:

“Tem tanto sentido representar uma espécie de aprisionamento por outra coisa - como o tem representar seja o que for 'que exista realmente' por qualquer outra coisa que não existe.”

O narrador começa assim a falar do fenómeno:

“Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto no meio do patamar. Afastou o animal com o pé sem se preocupar e desceu as escadas. Mas, já na rua, pensou que o rato não estava no sítio certo e voltou para trás para avisar o porteiro” (pg16).

A reacção do porteiro foi de indignação: “nunca houve ratos nesta casa!”, protestou ele - e explicou que alguém os vinha pôr dentro de casa. "Algum vizinho com certeza."

Ainda nessa noite, o doutor Rieux parado ao pé da porta à procura das chaves, vê aparecer do fundo escuro do corredor uma ratazana, "a cambalear como embriagada" - pensou - "e com o pelo todo molhado".

O bicho parou, girou sobre si próprio com um gritinho e caiu no chão deitando sangue pela boca aberta.”

O doutor olhou para a ratazana e entrou em casa. No dia seguinte parou o carro mesmo em frente do edifício e ao sair do carro viu o porteiro vir do fundo da rua  e reparou que se mexia com dificuldade. E queixou-se de cansaço e de dores estranhas.

Dores fortes no pescoço, nas axilas e nas virilhas" - disse-  tinham-no obrigado a vir pedir ajuda ao doutor. (pg 26.)

A "infecção" espalha-se velozmente pela cidade como se algo de maléfico e urgente houvesse no contágio: a vontade de destruir o homem?O contágio é vertiginosos e os mortos são aos milhares todos os dias, a cidade entra em pânico.

Bernard Leroux, o protagonista, médico, ateu e possível alter ego de Albert Camus, no espírito crítico e científico de ambos, procura, pela crença na ciência e na experiência, uma orientação para debelar o mal e salvar os homens.
Em oposição, temos a figura de Paneloux, padre jesuíta, que, como  no espírito religioso que é o dele e na sua especulação religiosa e dogmática, procura até certo ponto o 'controle' da situação sobre a mente dos seus fiéis. 

 No primeiro sermão que faz interpreta a pandemia, como “merecida maldição punitiva divina”.

Biografia de Albert Camus (3)

Com a evolução da doença, na presença do sofrimento horrível e da morte, Paneloux procura ajudar o Doutor Rieux. Perante a morte de uma criança e presenciados milhares de outras mortes, o padre perde as suas certezas. O tom do segundo sermão vai ser muito diferente: um apelo à solidariedade entre os homens. Juntos sofrem, juntos têm de se salvar.

Albert Camus pode ter-se inspirado na experiência pessoal da tuberculose que teve aos 17 anos e nunca mais o largou até ao fim da vida. Doença transmitida por contágio e com uma grande mortalidade.

No entanto em “A peste” - doença infecciosa e mortal e assunto deste livro - trata-se sobretudo de uma metáfora, uma transposição de outra coisa.

Prémio Nobel, 1957

O sentido profundo da “peste”, a epidemia que arrasa a cidade de Orão na Argélia (2), que mata sem ver a quem, crianças e velhos, causa um terror enorme – a “infecção” - deve entender-se como uma metáfora de um mal sub-reptício e invencível.

Mal desconhecido que se instala no organismo dos homens - vindo das profundezas da terra, dos cantos esconsos e escuros, dos esgotos e das zonas de sujidade - para atingir a humanidade no seu cerne - indefesa e frágil.

Não podemos esquecer que Albert Camus escreve este livro em 1941 data em que Hitler adiantara bastante a conquista da Europa. Tinham começado as deportações de judeus em massa, a prisão de ciganos, de homossexuais e outros. A metáfora do mal continua.

Nos anos anteriores tinham sido criados pelos nazis os campos de concentração e de extermínio - que funcionavam plenamente.

desenho de Bruno Schultz morto em Auschwitz

Nas obras passadas do autor, nos romances do absurdo e do sem-sentido da vida do Homem; perante a morte como fim inevitável - não havia “saída” para os homens. A acção e a “revolta” eram o único meio de se libertarem mas aqui o autor procura uma outra “saída” ou solução para o problema do “absurdo”.

Barbara Coleman DuBois:
 "What do we live for if it’s not to make life less difficult?"

Para vencer a "peste" é  na fraternidade e na solidariedade quando o homem se aproxima do outro homem, na luta contra um mal comum que o homem se vai salvar.

“O mal que um homem experimentou vai-se tornar numa praga – a peste – colectiva”- o mal que todos experimentam por igual.

A fraternidade e a solidariedade são os valores que salvarão a humanidade - porque são portadores da Esperança.

Esperança, George-Frederick Watt

Assim, perante esta praga colectiva”, ao revoltarem-se, os homens pensam: "Quem sou eu, homem indefeso frente ao mal que atinge aquele outro homem como eu? Qual é a “nossa” situação agora? Estamos juntos." 

Juntos. Será a solidariedade a dar a resposta.

(1) Albert Camus nasceu em 9 de Novembro de 1913, em Monvidiana, na Argélia francesa. Morreu em França em 1960 num acidente de automóvel.  Em 1957 recebeu o Prémio Nobel de Literatura.

La Peste, Gallimard, 1947. A edição em que me baseio é  da colecção “Folio”, Gallimard, 2020.

(2) A Argélia era habitada pelos berberes desde 10.000  a.C. mas no século II a.C  os cartagineses ocupam a região até ao momento em que as Guerras Púnicas permitem aos berberes libertarem-se de Cartago.

Conquistada pelo Império Otomano, no séc. XV, a Argélia vai ser colonizada pela França, em 1883. A presença dos franceses, os “pieds-noirs”- nome dado aos colonos franceses estabelecidos em terra argelina, termina quando acontece a independência da Argélia, em 1962. 

(3)  Biografia de Albert Camus, por Olivier Todd, "Uma vida"

https://pt.wikipedia.org/wiki/Albert_Camus

 

4 comentários:

  1. Gostei muito deste texto. Li A Peste há muitos anos e um pouco a correr. Talvez os mesmos valores nos ajudem agora
    um beijinho e uma boa noite

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  2. Que sorte tiveste com os professores! Em Coimbra eram um ninho de fascistas...
    Quase tudo o que li de geito foi à minha conta, também gostei muito de O Estrangeiro e La Chute, que li em francês. Que tenhas uma semana estupenda, bjhsss

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  3. Li "A Peste" antes do surgimento do "covid", mas a leitura que fiz do livro prendeu-se com essa "peste" que invadia a Europa em 1941.
    Gostei muito do texto.
    Muito boa tarde e uma boa semana!

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  4. O escritor teve tuberculoso desde a adolescência, conhecia o estigma que provoca uma doença altamente contagiosa...
    É verdade que depois da II guerra mundial que ACamus metaforizou como A Peste, a humanidade não passou por um perigo tão sério como o de agora e que apetece rever ou conhecer a obra.
    Hoje, as notícias são péssimas: mais 1 270 novos infetados...
    Tudo pelo melhor, MJ.
    Beijinhos
    ~~~~~

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