quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Edna O’Brien e “Girl” (2019)

O último livro de Edna O'Brien saiu em 2019 e intitula-se "Girl" (1) e fala do rapto, violação e destino de um grupo de jovens que uma noite são roubadas da sua escola e levadas para a floresta. Uma notícia verdadeira esta, passou-se tudo em 2014 no Nordeste da Nigéria, em Chibok : O rapto de duzentas estudantes pelo grupo terrorista Boko Haram.

Edna O'Brien é uma escritora que acredita no poder da palavra e que não desiste enquanto for necessária uma voz para denunciar o que está mal no mundo, os problemas do homem e as tragédias das mulheres. O que causa a violência sobre o elo mais frágil da humanidade. Guerras, desigualdades, prepotência exercida sobre as mulheres.

A sua primeira experiência como romancista é a história de três jovens “fugidas” da Irlanda rural que vão à procura de Dublin, a cidade ideal, onde esperavam encontrar a realização dos sonhos que naquela aldeia não poderiam ter.  O livro intitula-se The Country Girls e sai em 1960 (2).

O despertar é duro para as amigas: os choques, as ofensas, os abusos que ali sofrem fá-las acordar  e ver que é a “situação da mulher” que as magoa: abaixo de tudo o que pensavam.

Seguem-se-lhe outros dois volumes que são a continuação da vida destas três personagens. E os livros vão ser considerados imorais, anti-católicos na pia Irlanda.  Mais tarde publicará a The Country Girls Trilogy (1988).
Edna O’Brien deixará Dublin e vai viver em Londres. As obras dela são banidas na Irlanda, tal como tinham sido as de James Joyce.

Há vozes que se levantam ness
es anos dizendo que os livros (e ela própria!) deviam ser queimados.

Hoje quero falar de Girl", história real e dramática de adolescentes, anónimas na sua infelicidade, raptadas e obrigadas a viver com os os seus raptores, terroristas de Boko Haram. Na dedicatória Edna escreve: “Às Mães e às Filhas do Nordeste da Nigéria”.

foto da internet

A personagem principal é Miryam - mas chama-lhe sempre apenas "girl" porque fala do destino comum de todas delas - que recorda na primeira pessoa o que se passou depois de tudo ter acontecido. Abarca a situação de todas e consegue transformar uma história de brutalidade e horror numa obra-prima de ternura e violência.

Eu era uma rapariga, mas já não sou. Cheiro. Sangue seco pegado em mim. (...) Arrastada por esta floresta que vi naquela horrível primeira noite quando eu e as minhas amigas fomos raptadas da escola. O ruído ‘pah-pah’ das metralhadoras no dormitório e homens de cara tapada, olhos a brilharem, que explicavam que eram militares e que vinham para nos proteger pois tinha havido uma insurreição na cidade. Tínhamos medo, mas acreditámos neles.”

E o inferno começa. E  também a terrificante história que Edna O’Brien conta de violência e rapto, prisão e violação, de fuga e fome. História que nos faz sentir dentro um mal-estar físico, acompanhado da visão do horror que essa jovem sofre e da compreensão da sua fragilidade. É uma história brutal de horror e medo no interior de uma floresta desconhecida.

Mas esta mesma história revela a determinação da novelista de atravessar continentes e culturas - como se de uma missão se tratasse - para continuar a descrever a dor e o sofrimento das mulheres.

fotografia retirada da internet

Em “Girl” as ofensas são horrores: rapto, violação, maus tratos e abandono. Obrigadas a viver no inferno, poucas são as que se salvam e conseguem voltar para trás. 

Algumas trazem um filho na barriga ou nos braços. Um filho do inimigo, o símbolo da vergonha. Myriam, a "menina", queixa-se: “Estávamos no limite das forças, da dor e sabíamos”.

uma sobrevivente, foto da internet

Na maior parte dos casos, são mal recebidas na aldeia e entre a família, poucos as entendem. Ignoram totalmente os traumas e o sofrimento moral para além do físico - "julgando" que alguma culpa tiveram..

E os leitores? Pasmados, agredidos pelo horror do relato  - já conhecido através dos jornais em 2014 mas tornado mais forte pela narração da escritora e pela sua empatia com a vítima - esta leitura é uma pedrada que nos deixa sem fôlego.

E nós o que fazemos, perante estas coisas? Sentimos a impotência e a inutilidade de certos gestos, claro. Mas a inutilidade da palavra não! É preciso falar, dizer, contar. 

migrantes (mulheres e crianças) foto da internet

E indignarmo-nos! Por que motivo existe tal violência contra as mulheres? Qual a razão profunda que leva um ser humano a querer destruir a personalidade e a vida de outro – e tirar disso prazer numa espécie de vingança.

Edna O’Brien quis compreender. Viajou até à Nigéria para ouvir, ver, perceber. Interroga-se. Procura as causas. Indica as culpas. Conta. Explica. A meio da floresta, num lugar assustador, uma rapariga vê-se sozinha e o futuro que tem em frente é dúbio. 

No fundo é sempre este o tema e “território” favorito dos livros de Edna. A solidão. A sua casa inominável.

E a pergunta inicial alarga-se: “Como se pode continuar a amar num mundo que perdeu os valores do respeito pelos seres humanos – pelas mulheres.”

Estas jovens mulheres vão perdoar? Conseguirão amar? Conseguirão acreditar no amor? Um livro a ler!

(1) “Girl”, Ed. Farrar, Strauss And Giroux, New York, 2019. Em Portugal saiu na editora Cavalo de Ferro, com o título “Menina”.

(2) As jovens alunas de Chibok, Nigéria, que foram raptadas pelo movimento terrorista “Boko Haram”, em 2014.

(3)  The Country Girl (1960) e The Country Girls Trilogy (1988).

Em Portugal, o livro foi publicado na editora Cavalo de Ferro, com o título “Menina”, tal como já tinham saído "Na Floresta" e "Catorze cadeiras vermelhas". A Relógio d' Água publicou "Raparigas da província".

  Estes links contêm bons artigos...

https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2019/09/edna-obrien-girl/594721/

https://www.irishtimes.com/culture/books/eimear-mcbride-on-edna-o-brien-s-rigorous-beautiful-the-country-girls-1.3218341

 

2 comentários:

  1. Dizem que "oxalá nunca nos mande o destino tudo o que podemos aguentar". Eu já não quero saber mais, já sei demasiado do sofrimento do mundo, estou agradecida porque não me tenha tocado, e ante la impotência de que já nada posso ou sou capaz de fazer pelos outros, procuro a paz das coisas belas que felizmente ainda continuam a estar aí à minha volta. Vou estando cansada de tanta má notícia, refugio-me no que me é possível para encontrar algum sossego. Acho que é um egoismo legítimo com a idade que vou tendo...
    Bom finde, querida !

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  2. Penso que a escritora tem uma obra singular na quebra de tabus relacionados com sexo e meritória pela contribuição que deu à evolução de mentalidades.
    Não li o livro, pelo que fico muito grata pela divulgação. Quero apresentá-lo no meu 'blog' no Dia da Mulher.
    Agradeço também o apoio e incentivo que registou pelo meu aniversário.
    Bem-haja, estimada MJ.
    Beijinhos
    ~~~~

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