O último livro de Edna O'Brien saiu em 2019 e intitula-se "Girl" (1) e fala do rapto, violação e destino de um grupo de jovens que uma noite são roubadas da sua escola e levadas para a floresta. Uma notícia verdadeira esta, passou-se tudo em 2014 no Nordeste da Nigéria, em Chibok : O rapto de duzentas estudantes pelo grupo terrorista Boko Haram.
Edna O'Brien é uma escritora que acredita no poder da palavra e que não desiste enquanto for necessária uma voz para denunciar o que está mal no mundo, os problemas do homem e as tragédias das mulheres. O que causa a violência sobre o elo mais frágil da humanidade. Guerras, desigualdades, prepotência exercida sobre as mulheres.
A sua primeira experiência como romancista é a história de três jovens “fugidas” da Irlanda rural que vão à procura de Dublin, a cidade ideal, onde esperavam encontrar a realização dos sonhos que naquela aldeia não poderiam ter. O livro intitula-se The Country Girls e sai em 1960 (2).
O despertar é duro para as amigas: os choques, as ofensas, os abusos que ali sofrem fá-las acordar e ver que é a “situação da mulher” que as magoa: abaixo de tudo o que pensavam.
Há vozes que se levantam nesses anos dizendo que os livros (e ela própria!) deviam ser queimados.
Hoje quero falar de Girl", história real e dramática de adolescentes, anónimas na sua infelicidade, raptadas e obrigadas a viver com os os seus raptores, terroristas de Boko Haram. Na dedicatória Edna escreve: “Às Mães e às Filhas do Nordeste da Nigéria”.
foto da internet
A personagem principal é Miryam - mas chama-lhe sempre apenas "girl" porque fala do destino comum de todas delas - que
recorda na primeira pessoa o que se
passou depois de tudo ter acontecido. Abarca a situação de todas e consegue
transformar uma história de brutalidade e horror numa obra-prima de ternura e
violência.
“Eu era uma rapariga, mas já não sou. Cheiro. Sangue seco pegado em mim. (...) Arrastada por esta floresta que vi naquela horrível primeira noite quando eu e as minhas amigas fomos raptadas da escola. O ruído ‘pah-pah’ das metralhadoras no dormitório e homens de cara tapada, olhos a brilharem, que explicavam que eram militares e que vinham para nos proteger pois tinha havido uma insurreição na cidade. Tínhamos medo, mas acreditámos neles.”
E o inferno começa. E também a terrificante história que Edna O’Brien conta de violência e rapto, prisão e violação, de fuga e fome. História que nos faz sentir dentro um mal-estar físico, acompanhado da visão do horror que essa jovem sofre e da compreensão da sua fragilidade. É uma história brutal de horror e medo no interior de uma floresta desconhecida.Mas esta mesma história revela a determinação da novelista de atravessar continentes e culturas - como se de uma missão se tratasse - para continuar a descrever a dor e o sofrimento das mulheres.
Em “Girl” as ofensas são horrores: rapto, violação, maus tratos e abandono. Obrigadas a viver no inferno, poucas são as que se salvam e conseguem voltar para trás.
Algumas trazem um filho na barriga ou nos braços. Um filho do inimigo, o símbolo da vergonha. Myriam, a "menina", queixa-se: “Estávamos no limite das forças, da dor e sabíamos”.
Na maior parte dos casos, são mal recebidas na aldeia e entre a família, poucos as entendem. Ignoram totalmente os traumas e o sofrimento moral para além do físico - "julgando" que alguma culpa tiveram..
E os leitores? Pasmados, agredidos pelo horror do relato - já conhecido através dos jornais em 2014 mas tornado mais forte pela narração da escritora e pela sua empatia com a vítima - esta leitura é uma pedrada que nos deixa sem fôlego.
E nós o que fazemos, perante estas coisas? Sentimos a impotência e a inutilidade de certos gestos, claro. Mas a inutilidade da palavra não! É preciso falar, dizer, contar.
E indignarmo-nos! Por que motivo existe tal violência contra as mulheres? Qual a razão profunda que leva um ser humano a querer destruir a personalidade e a vida de outro – e tirar disso prazer numa espécie de vingança.
Edna O’Brien quis compreender. Viajou até à Nigéria para ouvir, ver, perceber. Interroga-se. Procura as causas. Indica as culpas. Conta. Explica. A meio da floresta, num lugar assustador, uma rapariga vê-se sozinha e o futuro que tem em frente é dúbio.
No fundo é sempre este o tema e “território” favorito dos livros de Edna. A solidão. A sua casa inominável.
E a pergunta inicial alarga-se: “Como se pode continuar a amar num mundo que perdeu os valores do respeito pelos seres humanos – pelas mulheres.”
Estas jovens mulheres
vão perdoar? Conseguirão amar? Conseguirão acreditar no amor? Um livro a ler!
(1) “Girl”, Ed. Farrar, Strauss And Giroux, New York, 2019. Em Portugal saiu na editora Cavalo de Ferro, com o título “Menina”.
(2) As jovens alunas de Chibok, Nigéria, que foram raptadas pelo movimento terrorista “Boko Haram”, em 2014.
(3) The Country Girl (1960) e The Country Girls Trilogy (1988).
Em Portugal, o livro foi publicado na editora Cavalo de
Ferro, com o título “Menina”, tal como já tinham saído "Na Floresta" e "Catorze cadeiras vermelhas". A Relógio d' Água publicou "Raparigas da província".
Estes links contêm bons artigos...
https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2019/09/edna-obrien-girl/594721/
Dizem que "oxalá nunca nos mande o destino tudo o que podemos aguentar". Eu já não quero saber mais, já sei demasiado do sofrimento do mundo, estou agradecida porque não me tenha tocado, e ante la impotência de que já nada posso ou sou capaz de fazer pelos outros, procuro a paz das coisas belas que felizmente ainda continuam a estar aí à minha volta. Vou estando cansada de tanta má notícia, refugio-me no que me é possível para encontrar algum sossego. Acho que é um egoismo legítimo com a idade que vou tendo...
ResponderEliminarBom finde, querida !
Penso que a escritora tem uma obra singular na quebra de tabus relacionados com sexo e meritória pela contribuição que deu à evolução de mentalidades.
ResponderEliminarNão li o livro, pelo que fico muito grata pela divulgação. Quero apresentá-lo no meu 'blog' no Dia da Mulher.
Agradeço também o apoio e incentivo que registou pelo meu aniversário.
Bem-haja, estimada MJ.
Beijinhos
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