sexta-feira, 4 de setembro de 2020

John Steinbeck e "A Pérola"

 
John Steinbeck

John Steinbeck é um escritor cuja descoberta foi na adolescência uma maravilha. Um autor que encheu a minha vida de sentimentos de justiça, de aventuras e também de dúvidas às quais não conseguia responder.


Por que razão uns têm tudo e os outros não têm nada? É uma velha pergunta que nunca terá resposta. Ler "A Pérola" fez-me sofrer como poucos outros livros o conseguirão mais tarde!
 

O casal de pobre índios de La Paz, o filho Coyotito doente, a pérola milagrosa que o pode salvar - mas a ganância dos outros impedem-no de a vender e tudo se transforma em tragédia.

 Por quê todo aquele sofrimento infligido a gente pobre e frágil? A pobreza era uma culpa? Não deveriam ter o direito de comer, de terem defesas, de serem tratados como pessoas? Como se pode viver uma vida tão difícil?

Ainda hoje não encontrei a resposta, mas tenho as minhas ideias bem definidas - o mundo é e será injusto enquanto a sociedade dos homens conservar as diferenças abissais que existem e existiram. 

Enquanto ao bem do Homem em geral se preferir a exploração desse mesmo homem e a sua quase-escravização, na ganância de alguns em terem todo o poder e as riquezas do mundo. 

Quando afinal seria a solidariedade e a fraternidade que poderiam ajudar a uma mudança radical. Utopia? Ainda acredito na Utopia!

Qual a vida de um pescador de pérolas? Qual o risco para tão pouco ganho? Mergulhar em profundidade, em apneia, sem defesa, arriscando não conseguir voltar acima -para encontrar uma pérola valiosa?

O livro “A Pérola” causou-me uma impressão forte, creio que foi nesse momento da minha ainda curta vida o livro que mais me indignou pela injustiça. Foi a minha primeira leitura “a sério” e ao meu deslumbramento juntava-se uma dor enorme. Ainda hoje, ao lembrar, sinto uma angústia que nunca tinha sentido na vida.

Teria uns nove ou dez anos e vivia em Portalegre. Lembro-me muito bem de estar em casa dos meus avós a ler o pequeno livro, à noite, bem tapada e com uma luzinha ao lado esquerdo.

Acabei-o nessa noite. E fiquei a chorar. Era o medo do que iria acontecer àquela gente. Era a incompreensão total e a não aceitação do motivo por que acontecera aquela triste história que o escritor contava.

O quarto onde dormi ficava no primeiro andar e era uma espécie de sala ou escritório com uma cama pequena e com livros à volta. 

O meu avô tinha muitos livros porque os editores ofereciam ao  jornal tudo o que ia saindo. E eram bons livros. Havia algumas editoras nesse tempo que traduziram uma quantidade enorme de bons escritores nas colecções “biblioteca universal”.

Era a “Inquérito” onde li alguns russos como o Puschkin da “Dama de Espadas” ou o conto “Está morta”, de Dostoievsky (1940, traduzida por João Gaspar Simões que aliás um dos escritores que mais apoio deu à colecção). 

Ou ainda “A Joaninha dos olhos verdes” novelinha que sai na colecção sozinha - isolada do resto do livro de Garrett "Viagens na minha terra".

Eram, além da Inquérito, os Livros do Brasil, a Colecção dois Mundos, a Miniatura, a colecção Vampiro dos livros policiais que comecei a ler cedo. 

Na casa do avós da Rua da Sé,  o quarto onde eu dormia ficava no primeiro andar. Quantas vezes, ao subir as escadas sozinha, ficava parada a ouvir o ruído reconfortante dos passos da minha avó, para trás e para diante da sala para a cozinha.

Não queria confessar, mas creio que tinha algum medo de estar sozinha sobretudo quando lia livros tristes ou livros policiais.

Eram os passos da minha avó lá em baixo que me sossegavam. E sabia que o meu avô estava acordado, sentado à mesa da casa de jantar a corrigir as provas d’ “A Rabeca” - pois o meu avô era um grande jornalista republicano e director desse semanário muito considerado.

Lembro-me do cobertor que estava aos pés do divã, um cobertor felpudo que tinha um leão amarelo em fundo vermelho. Ao começar confortável, na minha cama nunca julguei que aquele livrinho me ia fazer sofrer tanto.

“A Pérola” de Steinbeck, sim lembro-me bem das histórias de Juana e Kino e do pequeno Coyotito. A miséria e a tristeza das suas vidas difíceis, isso nunca esqueci. 

Arrepiava-me quando Kino ia mergulhar fundo no mar à procura das pérolas. Um dia, traz uma pérola enorme que parece amaldiçoada. O contentamento de Kino e Juana transforma-se em medo, neles.

Ficou-me nos olhos o escorpião que “vejo” descer pela parede chegando-se cada vez mais para a criança indefesa.

Voltei a ler o livro mais tarde. De vez em quando, sinto que é altura de o reler. E sofro sempre, do mesmo modo agudo e desesperado, a injustiça da vida dos seus personagens.

E continuo a perguntar: por quê? Por que razão Coyotito e a sua família sofreram o que sofreram?

 

3 comentários:

  1. Precioso post. É muito curioso o que cada pessoa recorda das mesmas coisas, que quase nunca coincide com o que recordam os outros. Eu só li A Pérola uma vez, também era pequena, e ficou-me gravada para sempre apenas uma frase, que fui procurar agora e encontrei logo: " A Juana cantava uma velha canção que só tinha tres notas [...] Isso também formava parte da Canção Familiar, como tudo. Às vezes chegava a ser um acorde que punha um nó na garganta: Isto é certeza, isto é calor, isto é tudo."
    Era o mesmo nó na garganta que eu sentia às vezes, quando no verão, depois de jantar, nos sentávamos os cinco no jardim diante de casa, o pai, a mãe e nós as tres. Aquilo também era certeza, calor e tudo...Nunca esqueci essa passagem, já ves...Eu de criança nunca tive medo.
    Bom finde, um beijo enorme (menos mal que os virtuais não estão proibidos)

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  2. Li outros livros do John Steinbeck, mas não li A Pérola (tenho-o).
    Eu já não acredito na Utopia. As pessoas que têm o poder querem lá saber dos pobres; querem é encher os seus bolsos e os dos amigos. Tanta corrupção e os corruptos continuam a sua vida, sem nenhum constrangimento.

    Revolta-me que uns tenham tanto e outros sejam explorados. Penso, que à partida todos deveriam ter as condições mínimas de dignidade: casa, dinheiro e condições de saúde. Depois cada um com o seu trabalho poderia acumular riqueza, mas de forma honesta. E os trabalhos deveriam todos ser pagos condignamente e não salários de miséria. A partir daí cada um era responsável pela orientação da sua vida.

    E também sou completamente a favor de penalizações rigorosas para quem comete crimes e põe em risco a vida dos outros. Enfim, pano para mangas!

    Beijinhos e saudade:))

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  3. Li John Steinbeck ainda no liceu. Li no 7º ano livros fortes requisitados na biblioteca do liceu, sem preparação para os ler, desadequados ao meu nível cultural e etário. Foi o caso de O Inverno do Nosso Descontentamento e A Leste do Paraíso, também vários de Sartre, do pseudónimo Manfred Gregor... Lembro estes por mais me impressionarem...
    Porém abriram-me uma janela imensa de conhecimento que os clássicos não tinham feito...
    Fiquei curiosa em relação a A Pérola de que falou...
    Porém, na minha opinião, devemos evitar as leituras tristes, por enquanto...
    Penso que não ajudam a manter a ''pseudo-normalidade'' indispensável. Srrsss...
    Tudo pelo melhor, estimada MJ.
    Beijinhos
    ~~~~~

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