sábado, 20 de fevereiro de 2021

Um escritor que vem do Japão: Ryunosuke Akutagawa

Akutagawa Ryûnosuke (o apelido em japonês vem normalmente depois do nome) nasceu 1892 e morreu em 1927, suicidando-se. Segundo alguns, terá sido com cianeto. Outros referem  que foi uma dose fatal de Veronal -  medicamento que tomava frequentemente.  
Tinha 35 anos. Deixa a mulher e três filhos ainda pequenos. (1) 

Nascido em 1892, num velho bairro de Nihombashi em Tóquio, é recolhido criança e educado pela família da mãe que enlouquecera. Nutria um sentimento especial por uma tia, a tia Fuki, que o acompanhará sempre. 

Menino doente e nervoso, lia incessantemente o que havia na casa onde vivia. Era assíduo nas bibliotecas públicas do seu bairro queria ler tudo e procurava o que não havia em casa dos parentes da mãe. 

Quando na Era Meiji (2) - época de grande abertura do Japão ao Ocidente - começam a aparecer de livros ocidentais, o escritor torna-se num fanático de literatura francesa,  russa e dinamarquesa. 

Segue de perto igualmente a literatura europeia e lê os clássicos franceses Voltaire, Rousseau ou Anatole France. Aprecia o poeta alemão Goethe.

Mas Akutagawa Ryûnosuke é um neurasténico. Tem insónias frequentes e problemas de estômago, ligados à ansiedade. Sofre de depressão e vive angustiado com o  receio de vir a sofrer da mesma doença da mãe. A loucura dela vai condicioná-lo psicologicamente durante toda a vida.  

Considerado por muitos como um 'parente' de Edgar Allan Pöe, de Franz Kafka, de Dostoievsky e Gogol a verdade é que os lia todos  e  os admirava.

As histórias de Akutagawa falam do absurdo da existência, da miséria social e moral, dos deserdados da sorte, dos ladrões por necessidade ou por profissão,  dos assassinos, da loucura que se apodera subitamente dos homens e os leva a actos incompreensíveis. 
 
No "Prefácio" da edição francesa de "Rashômon" (3), diz Jacques Dars: “Muitos são os que conhecem apenas indirectamente Akutagawa por causa do filme do mesmo nome, obra de arte do cinema japonês (4), onde duas novelas espantosas do escritor revelam um pouco do seu autor.”
 
 
"Stray Dogs", uma BD sobre livros de Akutagawa

O autor viveu em casa de parentes adoptivos muito mais velhos do que a mãe e foi “educado à maneira antiga e mergulhado numa atmosfera impregnada de cultura tradicional, que a vaga ocidental não tinha ainda aflorado” (op.cit., Introdução).

Os seus livros situam-se muitas vezes na época do Japão feudal e violento do período Edo e anterior - na Idade Média, no século XVI japonês, tempo de trevas e de lendas, de feiticeiros e de bandidos. 
Em 1950, o realizador japonês Akira Kurosawa - um dos melhores realizadores do Japão - escolhe o conto "Rashômon" para um filme. E é esse filme que vai tornar conhecida no Ocidente a obra do escritor. (4) 
 
 Contos curtos que reflectem o interesse pela cultura medieval e pelo Japão feudal, diferentes pela temática, pelo tempo em que se situam e pelas personagens diversas - têm todos um sabor a mundos desconhecidos, estranhos, de violência e, por vezes, muito cruéis.
Akutagawa é "moderno" pela escolha das personagens e pelo uso dos  "pontos de vista" variados das mesmas. 
No conto "Figuras Infernais",  por exemplo (incluído no volume "Rashômon e outros contos"), relata o acontecimento principal (o rapto de uma donzela e o assassinato do seu acompanhante) e, a seguir, "mostra" ao leitor o ponto de vista de cada um dos personagens intervenientes - inclusivamente a 'opinião' do morto e da donzela desaparecida.

Rashômon” fala do absurdo da escolha, dentro de um Universo absurdo e sem sentido. Fala de um dia vivido por um funcionário que perdera o empregado há um  tempo. Rashômon é um homem miserável, sem perspectivas de futuro. 

Numa noite chuvosa de Inverno não encontra lugar para dormir.  Abriga-se debaixo da Porta de Rashô onde vão deitar o lixo e se encontram mesmo os corpos dos assassinados pelos bandidos.

Nada tem sentido e sente um desespero absoluto: a alternativa da sua vida naquele fim de tarde de chuva torrencial é voar ou matar.

Acaba a brigar com uma velha tão miserável quanto ele. Ambos à procura de  comida, aquela pobre mulher enquanto rouba os mortos arranca-lhes tufos de cabelos e junta-os num saquinho para  fazer uma peruca. Absurdo dos absurdos, tudo é absurdo.

 
Os seus textos têm um sabor a 'outros mundos', estranhos e violentos, por vezes muito cruéis.

 Aos nove anos conhecia a literatura dos clássicos da China e do Japão; desde o liceu que era um excelente aluno de estudos sino-japoneses (o chamado ‘Kanbun’) tão complicados como os nossos estudos greco-latinos.” (Prefácio, op. cit. pg.8)

Quando entra para a Faculdade de Letras de Tóquio estuda esses autores e vai tentar traduzi-los para japonês. É nesse momento que se sente inclinado a escrever a sua obra. Na Universidade, além  dos clássicos, que lê em chinês, vai descobrindo os escritores modernos do Japão e os escritores ocidentais que surgem. A literatura francesa começara de facto a entrar no Japão nos primeiros anos do início do século XX, na chamada "Era Meiji".

Apaixona-se por Baudelaire, Yeats, Strindberg, Mérimée e Anatole France. Frequentemente encontramos citados na sua obra nomes de escritores do fim do século XIX e princípios do século XX. Flaubert e George Sand aparecem assim como o seu adorado Baudelaire. 

"A vida não vale uma única linha de Baudelaire", dizia ele. (in "Rashomon e outras Histórias", Cavalo de Ferro, A Era, pg.268)

Num dos seus escritos finais, "A vida de um homem estúpido" - espécie de diário autobiográfico sem datas - conta a ida a uma livraria e uma descoberta sensacional:

"Então com vinte anos de idade, ele tinha subido a uma escada apoiada a uma estante à procura de livros ocidentais acabados de chegar: Maupassant, Baudelaire, Strindberg, Ibsen. Shaw, Tolstoi..."(...) Alinhado à sua frente estava o próprio 'fin de siècle'. Nietzsche, Verlaine, os irmãos Goncourt, Dostoievski, Hauptmann, Flaubert.(5)Em 1918, casa com Tsukamoto Fumi (1900-1968). Nesse ano é gravemente atingido pela epidemia de gripe espanhola. Em 1919, volta a ter a gripe espanhola. Salva-se mas o pai morre vítima da  doença. 

Depois de  longa viagem à China, em 1921, é o momento de escrever “Num bosque de bambu”, publicado  em 1922. No regresso, adoece. A saúde piora de repente. O seu estado vai-se agravando, tem um esgotamento nervoso. Continua o receio da loucura. Habitua-se a tomar barbitúricos.

Comecei agora a ler  "La vie d'un idiot" que é um diário autobiográfico escrito no fim da vida. 
O autor escolhe a forma dos "haikus" para escrever de modo poético, conciso e essencial, certas impressões,  sentimentos e coisas inexplicáveis.  
"Engrenagens em movimento" é o conto que antecede "A vida de um idiota". É uma história passada no comboio para Tóquio em que um passageiro se dirige ao narrador e fala-lhe de um fantasma com uma gabardine. Sempre o absurdo, o mistério, o inexplicável da "engrenagem" que é a vida.
Nos últimos anos de vida, muito doente, escreve Villa Genkaku” e “Os Kappausando um tom muito diferente dos outros livros, um tom mais íntimo. Os dois  aparecem publicados em 1927, póstumos. Como igualmente "A vida de um Homem Estúpido".

"A vida de um homem estúpido" vem incluída na edição portuguesa de Rashômon e outros Contos", da editora 'Cavalo de Ferro', que considero extremamente interessante, cuidada e com uma óptima tradução. (6)
"Antes de tomar o cianeto – escreve Jacques Dars – deixa à maneira de testamento duas palavras de enigmática concisão: “vaga inquietação” que ainda hoje são um mistério que nos turba." (op.cit.pg.8)


Akutagawa  é, sem dúvida, uma figura curiosa e desarmante para nós ocidentais e o seu fim pode parecer incompreensível. No entanto, o

suicídio é corrente na cultura do Japão, o escritor estava muito doente e temia enlouquecer. Sofria demasiado.

 

Não vi o filme de Akira Kurosawa (1910-1988) aproveita esse e outro conto para o filme “Às Portas do Inferno” (1950).

***

 
     (1)  Akutagawa Ryûnosuke nasce em Tóquio em 1892 e morre em 1927. Suicida-   se com 35 anos. 

(2) A ‘Era Meiji’ (ou Revolução Meiji – de 1867 a 1912, data da morte do Imperador Meiji) caracteriza-se pela abertura ao Ocidente. O Imperador Meiji, Príncipe Mutsuhito, subiu ao trono com 15 anos e governou até 1912. Nessa ‘Era’ a capital passou de Tóquio (Edo) para Kyoto.

 
Príncipe Mutsuhito

A Era Meiji vem substituiu os Xoguns Tokugawa (1603 a 1868) da Era Edo (ou Era dos Samurais e Xoguns). Foi chamada a ‘Era de Paz e de Desenvolvimento’ - com o Japão feppchado sobre si próprio.

   (3)´Refiro-me a "Rashômon”, antologia  com quatro contos, edição francesa da Gallimard, Folio, 2003, com Prefácio de Jacques Dars.

   (4)Akira Kurosawa é um dos realizadores mais famosos do Japão juntamente com Iasunari Misoguchi (realizador da obra-prima do cinema “Contos da Lua vaga depois da Chuva” em 1953).  Kurosawa nasce em 1910 e morre em 1988. O filme “Rashômon” intitula-se em japonês “Yabu no Naka”e em português tem o título “Às portas do Inferno” (1950).
     (5) "La vie d'un idiot", Gallimard, collection 'Folio'.

    (6)"A vida de um homem estúpido" está incluído em "Rashômon  e Outras Histórias", Cavalo de Ferro Editores, 2012. (Em nota explicativa, somos informados de que essa edição se baseou na tradução inglesa de Jay Rubin, "Rashômon and Seventeen Other Stories", Penguin Classics, 2009).
https://pt.wikipedia.org/wiki/Meiji_(imperador)

https://ajanelaencantada.wordpress.com/2014/11/10/as-portas-do-inferno-1950/

https://www.prospectmagazine.co.uk/magazine/a-haunted-imagining-of-the-life-of-ryunosuke-akutagawa

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