quarta-feira, 29 de setembro de 2021

MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO E “FIGURAS DE HOJE E DE HONTEM” (sic)

Mulher de grande cultura, Maria Amália Vaz de Carvalho deixou uma obra muito interessante e variada.

Recorda-se talvez mais hoje a figura da educadora que sempre foi e a sua acção empenhada na educação das crianças e na formação cultural das mulheres, dentro de um conservadorismo tradicional compreensível.

 A sua obra abrange vários campos que vão não só da poesia e da ficção ao ensaio, à crónica e crítica literárias, à biografia e ao jornalismo de intervenção.

Escritora e poetisa, nasceu em Lisboa no dia 1 de Fevereiro de 1847 e faleceu, com pouco mais de 74 anos, no dia 23 de Abril de 1921. 

Casada com o poeta ‘parnasianode origem brasileira, Gonçalves Crespo (1846-1883), com ele colaborou  sempre na actividade política e nos trabalhos literários. (1) 

Também foi tradutora de folhetins, de que as pessoas cultas do seu tempo eram apreciadoras.

O tempo de Maria Amália Vaz de Carvalho era o de figuras especiais da cultura portuguesa, de nomes como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Junqueiro e tantos outros que se reuniam por vezes em sua casa.

Em 1867, fez a sua estreia literária com o poema romântico Uma Primavera de Mulher e em 1876 publica o livro “Vozes no Ermo” que teve críticas muito favoráveis - como a que lhe fez Guerra Junqueiro por exemplo.

 Grande parte das crónicas, nomeadamente as consagradas à crítica literária, foram reunidas nos volumes Serões no Campo (1877).

No entanto escreveu obras de outros tipo, sempre no campo da educação: "Uma Primavera de Mulher" (1867), "Arabescos", "Mulheres e Crianças", "Cartas a Luísa", "Cartas a uma Noiva", "As nossas Filhas - Cartas às Mães" ou “O drama da vida contemporânea”.

Também a parte histórica lhe interessou. Escreve  "Cenas do Século XVIII em Portugal" e "A Vida do Duque de Palmela", considerada a sua melhor obra.  

Em 1886, de parceria com o marido, Gonçalves Crespo, editou a antologia infantil Contos para os Nossos Filhos.

O

O livro a que me quero referir hoje, Figuras de Ontem e de Hoje, sai em 1902. O livro abre com um artigo sobre a morte de Eça. O I Capítulo intitula-se precisamente  Eça de Queiroz, O Homem e o Artista e começa assim:

“Foi há poucos dias que eu recebi aqui em Cascais, na pequena casa à beira do oceano, em que escrevo estas linhas, a súbita notícia da morte de Eça de Queiroz.(...) Como exprimir a pena profunda, a mágoa sem nome, que a minha alma sentiu!

Aqui me veio achar a notícia de que Oliveira Martins, um dos mais queridos, um dos melhores que eu tive, expirara ao cabo de luta ingente que aquele temperamento enérgico teve com a destruição final.

Aqui soube da morte súbita de Carlos Valbom, um dos espíritos mais finos, mais elegante (...) que me foi dado conhecer de perto.

Sousa Martins, o amigo estremecido que velara comigo ao pé da cabeceira do leito em que minha mãe agonizava, e do leito em que meu marido morrera; aquele que foi para Gonçalves Crespo, terno e carinhoso como o melhor dos irmã e me acompanhou depois como o mais dedicado amigo; aquele que era o talento, a graça e a bondade (...) morreu justamente no mês em que escrevo (...).

Agora finalmente é Eça de Queiroz o artista extraordinário, o grande romancista peninsular cuja glória seria europeia se a língua portuguesa fosse conhecida em toda a Europa, e que assim mesmo, vencendo os obstáculos que o nosso meio opõe a tudo o que é belo e grande, conseguiu ser adorado pela élite intelectual de dois países irmãos – Portugal e Brasil!

Como estas paredes do ninho marítimo, em que todos os verões me abrigo, me têm visto chorar pelos meus grandes amigos mortos!” (p.1-3)

Continuando a leitura, vamos descobrir - além de um retrato maravilhoso do 'Homem" e do "Artista" Eça de Queiroz - muitas outras figuras de escritores portugueses.

E vamos encontrar igualmente textos sobre escritores estrangeiros seus contemporâneos tais como Balzac, Gabriele d’Annunzio, Hall Caine, Rudyard Kipling e também a mulheres-escritoras - de quem tão pouco se falava - como a italiana Matilde Serao, a francesa Georges Sand ou a belga Carlota Brontë (sic). 

 A escritora faleceu, com pouco mais de 74 anos, no dia 23 de Abril de 1921, na sua casa de Cascais, à beira do oceano. 

Onde, como refere no livro, apesar de muitos bons momentos "Por uma coincidência triste, parece que esta minha pequena casa de Cascais está ligada à memória da morte de muitos dos meus amigos."

Resta-nos ler ou reler o que esta escritora admirável escreveu. Deixo-vos apenas uma indicação. Boa leitura!

https://www.infopedia.pt/$maria-amalia-vaz-de-carvalho

(1) António Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 11 de Março de 1846 — Lisboa, 11 de Junho de 1883) foi um jurista e poeta de influência parnasiana. Nasceu nos arredores da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, filho de um comerciante português António José Gonçalves Crespo e de Francisca Rosa da Conceição, uma mestiça escrava à data do seu nascimento. Aos 10 anos de idade mudou-se para Portugal. Depois de estudos preparatórios em Lisboa, matriculou-se em Direito na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1877. Ainda estudante casou, em 1874, com Maria Amália Vaz de Carvalho, ingressando no mundo das tertúlias intelectuais de Lisboa. Nesses círculos a avançou na sua carreira como poeta e publicista, ganhando grande nomeada.

Foi colaborador de diversos periódicos, entre os quais O Ocidente (1877-1915) e a Folha, o Jornal de Coimbra de que era director João Penha, o poeta que introduziu o 'parnasianismo' em Portugal, e também nas revistas A Mulher (1879), Jornal do Domingo (1881-1888), A Leitura (1894-1896), Branco e Negro (1896-1898) e Serões (1901-1911). (wikipedia)

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Hoje é o dia de anos do meu pai

      

O meu pai, num desenho do veneziano Umberto Sartori

O meu pai fazia anos no dia sete de Setembro e lembro que muitas vezes festejou os seus anos na quinta na Serra de São Mamede. Costumávamos passar o mês de Setembro na quinta dos avós. O meu pai gostava muito do campo e era contrariado que, às vezes, nos deixava passar algum tempo na praia.

Nessas manhãs de fim de Verão eu ia à aventura, com as minhas sandálias de couro e o meu vestido leve com laços nos ombros - que a minha mãe fizera. Ou com os calções à pirata que a minha mãe me arranjara um dia e uma camisa à "cowboy", como eu gostava.

Os ruídos do campo, os ralos, as cigarras, o zumbir dos besouros e das vespas entonteciam-me. Deitava-me à beira do tanque, a apanhar sol e a olhar para o céu. Pouco bastava para que ficasse cheia de sardas  no nariz e nos braços. Dias depois de estarmos na Serra, a minha pele tinha um belo tom de queimado.

Na casa da Serra, o meu pai sentia-se à vontade. Estava-se no fim do Verão e a temperatura era suave. Fugíamos ao calor abafado da cidade onde só à noitinha corria um vento fresco.

A paisagem era linda. Os pinhais à volta, a encosta a descer, suave, as árvores variadas. Oliveiras, castanheiros já com seus tons dourados a lembrar o Outono que chegaria em breve.

As pereiras, macieiras e cerejeiras no pomar, perto da horta. E os pinheiros pela serra acima. E as figueiras cheias de figos por essa altura do ano. E ainda havia papoilas pelos campos amarelos.

Vejo o meu pai na grande varanda, sentado num dos bancos de madeira corridos encostado à parede da casa. Com um livro apoiado sobre a mesa de madeira rústica já gasta pelo tempo e pelas chuvas ele ficava a ler, com um lápis ou uma caneta na mão para poder assinalar o que o impressionava.

Erguia de vez em quando os olhos para a paisagem que se estendia do lado direito. E eu olhava-o de longe e percebia que ele estava feliz.

Em baixo, a cidade branca, estendida, no seu feitio de losango. Por vezes dizia-nos:

É como um papagaio de papel, reparem...”

Nos fins de Agosto havia também as noites sem lua, negras e estreladas, as noites das estrelas cadentes. As noites em que estudávamos as constelações. A minha preferida era a Cassiopeia porque para mim era um M de pernas para o ar.

Numa dessas noites decidi uma vez experimentar a minha coragem, desejosa de risco e de aventura e de me mostrar corajosa aos olhos do meu pai.

Atravessava a quinta, passava os tanques de águas negras que de dia tinham uma cor azul transparente e inofensiva e subia até ao pinhal.

Debaixo da copa do grande pinheiro manso de onde pendia o baloiço, acenava com um lenço e gritava “oh! oh!”, que era o sinal combinado para provar que tinha conseguido chegar.

Via as minhas irmãs agitarem os braços junto da casa iluminada, lá longe. E começava logo a voltar para casa.

Olhava em redor, receosa, parecia-me ouvir ramos a estalar, escutava o piar da coruja.

Ouvia um coelho bravo pular entre as giestas e as urzes e o coração apertava-se na garganta. Regressava a casa, numa correria doida, serra abaixo, tropeçando nos ramos, prendendo os pés nas raízes que me pareciam mãos de bruxas.

Respirava fundo quando chegava à zona dos tanques. O coaxar das rãs e o cricri dos ralos eram já uma companhia. Sabia que o meu pai gostava de se sentar a ler ao pé do tanque grande.

Arranhada, vermelha e com a respiração acelerada, chegava a casa cansada e feliz. As minhas irmãs batiam palmas. Eu queria era ver o que o meu pai diria.

Na varanda, ao cimo das escadas, coberta de glicínias e da folhagem vermelha da vinha virgem, o meu pai lia, sob a lâmpada à volta da qual giravam as borboletas da noite e as grandes libélulas. Voltava-se para mim e dizia:

- Então?

E eu sorria, aliviada.

Recordo bem desses dias de férias o momento quando, ao fim da tarde, havia o momento mágico, quando o meu pai nos perguntava, com ar divertido:

- Querem ir aos figos?

- Sim!, dizíamos em coro as três.

- E às amoras...

Lá íamos atrás do meu pai com um cesto que a minha mãe nos dera para trazer os figos. Descíamos a azinhaga, que ia ter ao fundo da quinta e à estrada, e íamos à procura das amoras, arranhando os braços nas silvas emaranhadas que escondiam as bagas dos frutos.

O ar cheirava a arbustos selvagens, a madressilva e aos oregãos que enchiam e perfumavam a vereda.


Depois subíamos pelo mesmo caminho até ao pequeno talhão onde havia muitas figueiras e óptimos figos. Os figos “esteveiros” chamávamos-lhes.

Os figos dos últimos dias do Verão. Já não sei se esses figos amadureciam mais tarde, se tinham outra cor, pareciam-me roxos, se eram mais doces porque tardios. A verdade é que ficaram associados ao meu pai e a essas tardes de Setembro.

Passaram tantos e tantos anos.

Hoje é o dia de anos do meu pai. O meu inesquecível e bem amado pai. Sempre presente. Sempre ao pé em todos os momentos da minha vida de menina e moça.