segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Hoje é o dia de anos do meu pai

      

O meu pai, num desenho do veneziano Umberto Sartori

O meu pai fazia anos no dia sete de Setembro e lembro que muitas vezes festejou os seus anos na quinta na Serra de São Mamede. Costumávamos passar o mês de Setembro na quinta dos avós. O meu pai gostava muito do campo e era contrariado que, às vezes, nos deixava passar algum tempo na praia.

Nessas manhãs de fim de Verão eu ia à aventura, com as minhas sandálias de couro e o meu vestido leve com laços nos ombros - que a minha mãe fizera. Ou com os calções à pirata que a minha mãe me arranjara um dia e uma camisa à "cowboy", como eu gostava.

Os ruídos do campo, os ralos, as cigarras, o zumbir dos besouros e das vespas entonteciam-me. Deitava-me à beira do tanque, a apanhar sol e a olhar para o céu. Pouco bastava para que ficasse cheia de sardas  no nariz e nos braços. Dias depois de estarmos na Serra, a minha pele tinha um belo tom de queimado.

Na casa da Serra, o meu pai sentia-se à vontade. Estava-se no fim do Verão e a temperatura era suave. Fugíamos ao calor abafado da cidade onde só à noitinha corria um vento fresco.

A paisagem era linda. Os pinhais à volta, a encosta a descer, suave, as árvores variadas. Oliveiras, castanheiros já com seus tons dourados a lembrar o Outono que chegaria em breve.

As pereiras, macieiras e cerejeiras no pomar, perto da horta. E os pinheiros pela serra acima. E as figueiras cheias de figos por essa altura do ano. E ainda havia papoilas pelos campos amarelos.

Vejo o meu pai na grande varanda, sentado num dos bancos de madeira corridos encostado à parede da casa. Com um livro apoiado sobre a mesa de madeira rústica já gasta pelo tempo e pelas chuvas ele ficava a ler, com um lápis ou uma caneta na mão para poder assinalar o que o impressionava.

Erguia de vez em quando os olhos para a paisagem que se estendia do lado direito. E eu olhava-o de longe e percebia que ele estava feliz.

Em baixo, a cidade branca, estendida, no seu feitio de losango. Por vezes dizia-nos:

É como um papagaio de papel, reparem...”

Nos fins de Agosto havia também as noites sem lua, negras e estreladas, as noites das estrelas cadentes. As noites em que estudávamos as constelações. A minha preferida era a Cassiopeia porque para mim era um M de pernas para o ar.

Numa dessas noites decidi uma vez experimentar a minha coragem, desejosa de risco e de aventura e de me mostrar corajosa aos olhos do meu pai.

Atravessava a quinta, passava os tanques de águas negras que de dia tinham uma cor azul transparente e inofensiva e subia até ao pinhal.

Debaixo da copa do grande pinheiro manso de onde pendia o baloiço, acenava com um lenço e gritava “oh! oh!”, que era o sinal combinado para provar que tinha conseguido chegar.

Via as minhas irmãs agitarem os braços junto da casa iluminada, lá longe. E começava logo a voltar para casa.

Olhava em redor, receosa, parecia-me ouvir ramos a estalar, escutava o piar da coruja.

Ouvia um coelho bravo pular entre as giestas e as urzes e o coração apertava-se na garganta. Regressava a casa, numa correria doida, serra abaixo, tropeçando nos ramos, prendendo os pés nas raízes que me pareciam mãos de bruxas.

Respirava fundo quando chegava à zona dos tanques. O coaxar das rãs e o cricri dos ralos eram já uma companhia. Sabia que o meu pai gostava de se sentar a ler ao pé do tanque grande.

Arranhada, vermelha e com a respiração acelerada, chegava a casa cansada e feliz. As minhas irmãs batiam palmas. Eu queria era ver o que o meu pai diria.

Na varanda, ao cimo das escadas, coberta de glicínias e da folhagem vermelha da vinha virgem, o meu pai lia, sob a lâmpada à volta da qual giravam as borboletas da noite e as grandes libélulas. Voltava-se para mim e dizia:

- Então?

E eu sorria, aliviada.

Recordo bem desses dias de férias o momento quando, ao fim da tarde, havia o momento mágico, quando o meu pai nos perguntava, com ar divertido:

- Querem ir aos figos?

- Sim!, dizíamos em coro as três.

- E às amoras...

Lá íamos atrás do meu pai com um cesto que a minha mãe nos dera para trazer os figos. Descíamos a azinhaga, que ia ter ao fundo da quinta e à estrada, e íamos à procura das amoras, arranhando os braços nas silvas emaranhadas que escondiam as bagas dos frutos.

O ar cheirava a arbustos selvagens, a madressilva e aos oregãos que enchiam e perfumavam a vereda.


Depois subíamos pelo mesmo caminho até ao pequeno talhão onde havia muitas figueiras e óptimos figos. Os figos “esteveiros” chamávamos-lhes.

Os figos dos últimos dias do Verão. Já não sei se esses figos amadureciam mais tarde, se tinham outra cor, pareciam-me roxos, se eram mais doces porque tardios. A verdade é que ficaram associados ao meu pai e a essas tardes de Setembro.

Passaram tantos e tantos anos.

Hoje é o dia de anos do meu pai. O meu inesquecível e bem amado pai. Sempre presente. Sempre ao pé em todos os momentos da minha vida de menina e moça.

 

5 comentários:

  1. Sei como te sentias, está muito bem explicado, e percebo como te sentes ao recordar. Outro dia, a olhar para o céu cheio de estrelas, pensei que simplesmente para ver maravilhas como essa já valia a pena nascer.
    Bssss

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  2. Eu gosto mais da Ursa Maior... (Sorrisos...)
    Belíssimas recordações...
    Um beijinho grande, MJ.
    ~~~~~~

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  3. Estimada MJ, venho informá-la que citei o seu 'blog'
    no 'post' que acabei de publicar.
    Saúde e dias bons.
    As minhas melhores saudações.
    ~~~~~

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