O meu pai fazia anos no dia sete de Setembro e lembro que muitas vezes festejou os seus anos na quinta na Serra de São Mamede. Costumávamos passar o mês de Setembro na quinta dos avós. O meu pai gostava muito do campo e era contrariado que, às vezes, nos deixava passar algum tempo na praia.
Nessas
manhãs de fim de Verão eu ia à aventura, com as minhas sandálias de couro e o
meu vestido leve com laços nos ombros - que a minha mãe fizera. Ou com os calções à pirata que a minha mãe me arranjara um dia e uma camisa à "cowboy", como eu gostava.
Os ruídos do campo, os ralos, as cigarras, o zumbir dos besouros e das vespas entonteciam-me. Deitava-me à beira do tanque, a apanhar sol e a olhar para o céu. Pouco bastava para que ficasse cheia de sardas no nariz e nos braços. Dias depois de estarmos na Serra, a minha pele tinha um belo tom de queimado.
Na casa da Serra, o meu pai sentia-se à vontade. Estava-se no fim do Verão e a temperatura era suave. Fugíamos ao calor abafado da cidade onde só à noitinha corria um vento fresco.
A paisagem era linda. Os pinhais à volta, a encosta a descer, suave, as árvores variadas. Oliveiras, castanheiros já com seus tons dourados a lembrar o Outono que chegaria em breve.As
pereiras, macieiras e cerejeiras no pomar, perto da horta. E os pinheiros pela
serra acima. E as figueiras cheias de figos por essa altura do ano. E ainda havia papoilas pelos campos amarelos.
Vejo o meu pai na grande varanda, sentado num dos bancos de madeira corridos encostado à parede da casa. Com um livro apoiado sobre a mesa de madeira rústica já gasta pelo tempo e pelas chuvas ele ficava a ler, com um lápis ou uma caneta na mão para poder assinalar o que o impressionava.
Erguia de vez em quando os olhos para a paisagem que se estendia do lado direito. E eu olhava-o de longe e percebia que ele estava feliz.
Em baixo, a cidade branca, estendida, no seu feitio de losango. Por vezes dizia-nos:“É como um papagaio de papel, reparem...”
Numa dessas noites decidi uma vez experimentar a minha coragem, desejosa de
risco e de aventura e de me mostrar corajosa aos olhos do meu pai.
Atravessava a quinta, passava os tanques de águas negras que de dia tinham uma cor azul transparente e inofensiva e subia até ao pinhal.
Debaixo da copa do grande pinheiro manso de onde pendia o baloiço, acenava com um lenço e gritava “oh! oh!”, que era o sinal combinado para provar que tinha conseguido chegar.
Via as minhas irmãs agitarem os braços junto da casa iluminada, lá longe. E começava logo a voltar para casa.
Olhava em redor, receosa, parecia-me ouvir ramos a estalar, escutava o piar da coruja.
Ouvia um coelho bravo pular entre as giestas e as urzes e o coração apertava-se na garganta. Regressava a casa, numa correria doida, serra abaixo, tropeçando nos ramos, prendendo os pés nas raízes que me pareciam mãos de bruxas.
Respirava fundo quando chegava à zona dos tanques. O coaxar das rãs e o cricri dos ralos eram já uma companhia. Sabia que o meu pai gostava de se sentar a ler ao pé do tanque grande.Arranhada, vermelha e com a respiração acelerada, chegava a casa cansada e feliz. As minhas irmãs batiam palmas. Eu queria era ver o que o meu pai diria.
Na varanda, ao cimo das escadas, coberta de glicínias e da folhagem vermelha da vinha virgem, o meu pai lia, sob a lâmpada à volta da qual giravam as borboletas da noite e as grandes libélulas. Voltava-se para mim e dizia:
- Então?
E eu sorria, aliviada.
Recordo bem desses dias de férias o momento quando, ao fim da tarde, havia o momento mágico, quando o meu pai nos perguntava, com ar divertido:
- Querem ir aos figos?
- Sim!, dizíamos em coro as três.
- E às amoras...
Lá íamos atrás do meu pai com um cesto que a minha mãe nos dera para trazer os figos. Descíamos a azinhaga, que ia ter ao fundo da quinta e à estrada, e íamos à procura das amoras, arranhando os braços nas silvas emaranhadas que escondiam as bagas dos frutos.
O ar cheirava a arbustos selvagens, a madressilva e aos oregãos que enchiam e perfumavam a vereda.
Depois subíamos pelo mesmo caminho até ao pequeno talhão onde havia muitas figueiras e óptimos figos. Os figos “esteveiros” chamávamos-lhes.
Os figos dos últimos dias do Verão. Já não sei se esses figos amadureciam mais tarde, se tinham outra cor, pareciam-me roxos, se eram mais doces porque tardios. A verdade é que ficaram associados ao meu pai e a essas tardes de Setembro.
Passaram tantos e tantos anos.
Hoje
é o dia de anos do meu pai. O meu inesquecível e bem amado pai. Sempre presente. Sempre ao pé em todos os momentos da minha vida de menina e moça.
Sei como te sentias, está muito bem explicado, e percebo como te sentes ao recordar. Outro dia, a olhar para o céu cheio de estrelas, pensei que simplesmente para ver maravilhas como essa já valia a pena nascer.
ResponderEliminarBssss
Eu gosto mais da Ursa Maior... (Sorrisos...)
ResponderEliminarBelíssimas recordações...
Um beijinho grande, MJ.
~~~~~~
Adorei!Muitos Beijos
ResponderEliminarEstimada MJ, venho informá-la que citei o seu 'blog'
ResponderEliminarno 'post' que acabei de publicar.
Saúde e dias bons.
As minhas melhores saudações.
~~~~~
Belas memórias. Um grande abraço!
ResponderEliminar