quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

ISMAIL KARADÉ e “Os Tambores da Chuva"

Quem é  Ismaïl Kadaré? podem perguntar alguns - uma vez que pouco se fala dele por cá. 
Kadaré nasceu em 1936 na Albânia (1) em Gjirokastër ao Sul da Albânia.

A nota biográfica da edição que li  de "Les tambours de la pluie” (2) diz-nos: "Pertencia a uma família de pequenos funcionários" e pouco mais sei da sua vida. 

A não ser o facto de que, muito jovem, presenciou a devastação do seu país pelas tropas que durante a Segunda Guerra Mundial se digladiaram naquela região

 Durante a II Guerra Mundial a cidade foi ocupada várias e sucessivas vezes por Italianos e Gregos, pelas forças reaccionárias albanesas, pelos alemães, sendo finalmente retomada pelos resistentes  anti-fascistas albaneses.

Esta experiência deixou marcas profundas tanto na vida como na obra do escritor.

Ismail Kadaré estudou primeiro na sua cidade natal, Gjirokastër. Faz os estudos superiores de História e Filologia, na Faculdade de Letras de Tirana onde se licenciou. Depois vai continuar os estudo no Instituto Gorki de Literatura, em Moscovo.

Sai de Moscovo em 1960, aquando da ruptura das relações entre a  Albânia e a URSS.

Publicou contos, antologias de poemas e alguns romances entre os quais "O General do Exército Morto" (1966), "Les tambours de la pluie” (1970) e outros como "Qui a ramené Doruntine", de 1980 (3) ou "Le crépuscule des dieux de la steppe".


Nos anos 80, conseguiu enviar para França os seus manuscritos e, em 1990, depois de ter recebido ameaças do regime comunista albanês, a seu pedido exilou-se em França e recebeu não só asilo político como a nacionalidade francesa.

Durante anos, Kadaré foi jornalista e colaborou especialmente em revistas de literatura. A dada altura vai consagrar-se totalmente à actividade de escritor.

 Vive em Paris. Pertence à União de Escritores e Artistas da Albânia. Nas suas obras aproveita muitas ocasiões para atacar o regime albanês através de metáforas e alegorias políticas de outros tempos.

Segundo alguns críticos Kadaré “mergulha, com a preocupação constante de uma literatura sóbria e justa, nas histórias da Albânia e dos seus costumes."

No entanto mantém-se perto da verdade (...) "dando da sua pátria uma imagem que longe de ser luminosa conserva nele uma linguagem da verdade e do amor louco pelo seu povo. A história que nos conta, tragédia derradeira dos indivíduos à procura da liberdade, possui a beleza dos contos sagrados.” (4)

Falando de Kadaré tive vontade de contar o que me aconteceu na minha última viagem a Roma, em Outubro passado. 

Não ia a Roma há uns nove anos e reparei no grande número de  jovens albaneses - ou geórgios ou do Bangladesh -que trabalham agora nos cafés e restaurantes do centro de Roma.
Encontrei-os sobretudo no Bistrot Pasquino, um lugar tranquilo, delicioso, com boa música onde íamos almoçar quase todos os dias. Conversávamos, havia um grupo simpático de jovens italianos, como a bela e profissional Merry, e albaneses ou bangladeshi, como o Karim.

Trabalham ali enquanto acabam os seus estudos universitários em Roma ou fazem uma pós-graduação. Foi assim que conheci as duas estudantes albanesas, a Kzanta a terminar o seu curso e a Angela que depois da licenciatura quis continuar a estudar cinema e escolheu a universidade de Roma. A Cinecittà e o cinema italiano marcaram muita gente. E marcam ainda hoje, justamente. 

Perguntava-lhes sempre se conheciam Kadaré e a resposta era afirmativa, com um sorriso aberto - e acrescentando outras perguntas : "o que pensas dele? Gostas?" Eu fazia os meus comentários e elogiava um escritor que realmente aprecio. Percebi a alegria que lhes dava o escritor "deles" ser conhecido.

 Uma tarde encontrámos num dos cafés mais conhecidos da Piazza Navona, o "Tre Scallini", um grupo de pessoas agradáveis que eram albaneses.

 Começámos a conversar de mesa para mesa e mais uma vez falei do escritor. Por coincidência, uma das pessoas presentes era um jornalista albanês que conhecia e admirava Ismail Kadaré - a quem tinha feito uma entrevista há uns anos em Paris. Chama-se Adriatik Kelmender e vive hoje no Kosovo, em Pristina.

Junto as duas fotografias que Adriatik me facultou - dando-me simultaneamente autorização para as utilizar. Foram tiradas durante a entrevista que fez a Ismail Kadaré na sua casa  em Paris há quinze anos.


Voltando atrás, lembro-me de
ter encontrado uma tradução portuguesa de “Os tambores na chuva” (5) e senti vontade de reler um livro que tanto me interessara.

 “Os tambores da chuva” - ou o ruído da chuva que bate como tambores - tem para mim um "valor" duplo. A verdade é que o associo à estação das chuvas de  São Tomé. Quantas vezes ouvi "bater os tambores da chuva" - a chuva, torrencial e a pique - que batia nas folhas das árvores, protecção metálica das janelas ou nas caixas protectoras dos ares condicionados. A chuva torrencial que surge de repente e depressa o sol encobre com o seu calor tórrido!

Tambores que rufavam a qualquer hora do dia ou da noite - essa chuva "libertava-nos" de repente da atmosfera electrizante, do calor húmido insuportável  dando-nos, por breves momentos, alívio.

Trata-se de uma história vivida numa cidade medieval albanesa cercada por forças inimigas durante muitos meses. O castelo protege a cidade mas a defesa é difícil quando tudo começa a faltar e o medo se instala. É um pânico quase incompreensível que avança.

Revela-nos a nota de introdução do romance: “Este romance que se passa no século XV evoca a Guerra de Tróia com o cavalo sedento que, desta vez, está fora da cidade cercada e, não, dentro dela”.

O que me encantou no livro? A atmosfera de entusiasmo e depois terror de uma batalha sangrenta que se desenrola há dias e dias? A descrição das muralhas fumegantes, ensanguentadas? A luta dos homens, a vontade de acreditarem que nessa luta, dolorosa e quase impossível  de suportar, conseguirão a salvação?

É a “crónica” de dias impossíveis, do calor infernal em que vivem assaltantes e sitiados com a ideia da morte sempre presente, com a crueldade de ambos os lados e a infinita angústia debaixo dos raios de sol que queima, decompõe as imagens e enlouquece os espíritos dos mais fortes. 

E aquela chuva que cai torrencial, libertadora, batendo nas tendas, nas lanças, como tambores e aliviando o peso no peito. Vão conseguir ajuda ou salvação?

Em 1982, o italiano Luciano Tovoli (produção franco-italiana) adaptou o romance “O General do Exército Morto”, publicado em 1963. Kadaré tinha então 27 anos e era o seu primeiro conto. O livro teve um grande êxito na Albânia e fora dela.

O filme tem o nome de "L'Armata ritorna" (ou Il Generale dell' armata morta") e os intérpretes são grandes actores italianos e franceses - como Marcello Mastroianni, Anouk Aimée e Michel Piccoli – (tenho pena mas não vi o filme, não posso falar dele).

Outro livro de Kadaré "Abril Despedaçado" foi igualmente adaptado ao cinema desta vez pelo realizador brasileiro Walter Salle (6). O exílio e a busca de identidade são temas que preocupam o escritor e valores que o realizador partilha  nas obras que filmou.

 Ismail Kadaré foi proposto várias vezes para o Nobel e recebeu muitos prémios literários consagrados. 

De facto, em 2005, recebeu o Prémio Internacional Man Booker;

em 2009, recebe o Prémio Príncipe de Astúrias das Letras (hoje Prémio Princesa de Astúrias);

em 2015, recebe o Prémio Jerusalém - prémio israelita que já fora atribuído a Arthur Miller, Ian McEwan e Haruki Murakami;

em 2016, recebeu a Légion d’ Honneur da França.

 Tenho a certeza de que vão gostar de Ismaïl Kadaré! Quem sabe se o espera ainda o Prémio Nobel? Seria justo.

(1(1) Nasceu numa cidade do sul da Albânia, Gjirokastër (ou Gjirokastra), em 28 de Janeiro de 1936.

(2(2) Na edição de “Les tambours de la pluie”, Librairie Arthème Fayard, 1985, col.Folio

(3(3) Na colecção Livre de Poche, Gallimard,1986

(4(4) Nota na edição de “Avril Brisé”, Colecção Livre de Poche

(5(5) Edição Quetzal, colecção "Serpente emplumada", 2012


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ismail_Kadare

https://www.bertrand.pt/autor/ismail-kadare/8829

2 comentários:

  1. Merecida homenagem a un grande escritor e grande homem, menos conhecido do que era justo.
    Ah, a chuva!

    Chove longínqua e indistintamente,
    Como uma coisa certa que nos minta,
    Como um grande desejo que nos mente.
    Chove. Nada em mim sente.

    Beijinhos grandes

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  2. Obrigada Maria, também pelo poema do PESSOA (só pode ser ele...) que mentindo é verdadeiro. Nada é simples, tudo é paradoxo á medida que a vida nos vai levando em frente sabe-se lá onde. Sabe-se lá até quando. Mas a amizade segue par a par connosco.Beiinhos

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