Há trinta anos, eu era uma jovem professora...

Para a Conceição, ainda mais alguns anos depois...

               Há trinta anos eu era uma jovem professora que fazia o estágio no Liceu de São João e tu eras uma das três alunas da turma de 7º ano de Francês onde eu estagiava.

O "nosso" liceu hoje...

Tu, com a tua bata verde e o mesmo sorriso que hoje tens, os olhos grandes a brilhar, às vezes nublados por um pouco de melancolia – que aparecia de repente e desaparecia logo porque tu não querias estar triste.

Disseste que foi um choque quando nos reencontrámos, quando me voltaste a ver.

Sentadas lado a lado, a separar-nos apenas o corredorzinho entre as duas filas de carteiras, numa sala de aula onde se reuniam os professores para a distribuição de horários, não nos olhávamos.

Ouvi a tua voz e pensei que a conhecia. Era a tua voz de há trinta anos, fresca,  eram as mesmas gargalhadas e a insistência em falar, falar. 

Ia-se formando na minha cabeça uma imagem que eu afastava porque era impossível...

“A Maria da Conceição?... Não! Não pode ser...”, pensava eu.

"Não quero estar sozinha aqui, na carteira! Sentem-se aqui ao meu lado", dizias tu.

E tiravas as cadeiras de cima da mesa na tua frente, a indicares o lugar vazio.

Alguém se sentou e tu ficaste contente. Gostei da tua maneira de falar e ia sorrindo enquanto riscava a página de um caderno. Ainda não tinha a certeza que eras tu.

Era uma escola nova para mim e, desta vez, era eu que me sentia insegura, solitária, intrusa. 

Estrangeira. Estava ali sentada, séria, como se tivesse voltado aos bancos da escola. Não conhecia ninguém naquela escola de Sintra.

Tu rias, mexias-te à vontade: era a tua escola, as tuas colegas, o teu mundo.

E, de repente, tudo se alterou e se pôs a girar à nossa volta. Tínhamos começado a dizer quem éramos, os nomes, as escolas de onde vínhamos.

"Não pode ser!", disseste tu. "Parem com isto! É uma coisa muito séria..."

Tudo parou naquela sala. Ouvia-se o silêncio.

"Tu és a Maria João!? Eu sabia que eras a Maria João..."

Sabias. Como eu sabia que tu eras a Maria da Conceição e não acreditávamos. Mas como podia ser? 

Tanto tempo, tanta gente, tanto mundo pelo meio. Uma vida inteira, trinta anos, vividos longe uma da outra.

A fotografia à janela. Olho para ela. Eu era uma professora cheia de ilusões e, à minha volta, tinha as minhas alunas. Na varanda, lá estão elas, encostadas à protecção de ferro onde hoje plantei o meu jardim suspenso e a minha horta.

O ano escolar tinha acabado. Algumas riam. Tu olhavas, séria, o meu braço no teu braço.

Falámos muito nesse Verão. Vinhas a nossa casa, brincavas com os meus filhos. Levavas o Diogo, pequenino, a passear, ele ficava em tua casa a dormir.  

Havia os teus pais, a tua irmã, o mar... O cheiro a maresia.

Depois, eu parti por muito tempo. Tu ficaste e nunca mais nos vimos.

Ali, na tua escola, abraçávamo-nos quase envergonhadas da nossa comoção.

Havia tanta coisa para contar.

Quanto tempo vamos demorar a contar?...

Eu sabia que eras tu...

Mas não podia ser.

Escrevi isto em 7 de Janeiro de 2006, num opúsculo que saiu a homenagear os 50 anos da minha aluna, respeitada e muito apreciada na "sua" escola, que foi também durante 3 anos a "minha" escola.

Anteontem, a Conceição veio visitar-me com um ramo de flores do tamanho do mundo, lindo e perfumado, por isso venho falar dela. 

E da saudade que tenho desses tempos e das minhas alunas!

Falar do bem que me fez vê-la, do bem que ela me fez, "protegendo-me" na sua escola. Senti-me lá uma rainha!...

E apeteceu-me pôr este lindo carrocel de Cascais! Porque a amizade é bela e gira, gira como um carrocel, sempre em movimento!