Lembro-me bem do dia em que tive de me separar da minha irmã mais velha.
Devia eu ter cinco anos - e ela tinha um ano mais. Adoecera com tosse convulsa e,
para eu não ser contagiada, o meu pai foi levar-me a casa de uma das tias da minha mãe,
a tia Mariquinhas.
A minha irmã ficou ao cimo das escadas, a ver-me partir. Queria
descer, para vir ter comigo e gritava. Recordo o seu bibe branco, enfeitado com folhos nos ombros,e a camisola vermelha de lã angorá, as botas curtas e as meias
de renda até ao joelho.
Eu olhava-a, e choramingava. Não a queria deixar, nem percebia a razão por que tinha ir embora da minha casa, quase de
noite, de casa dos meus pais. O grande laço de fita escocesa, que me segurava
os cabelos, caía desmanchado para um lado. Nem o casaco de lã forte me aquecia.
Tinha sido um Inverno muito frio o desse ano. Lembro-me que, dias antes,
debruçada à janela alta da nossa casa amarela, vira os meus pais irem para o cinema, ao velho Cine-Teatro maravilhoso, o tecto pintado de
azul, pelo qual corriam figuras femininas cheias de grinaldas e de flores.
Recordo as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro e o rebordo
suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar a plateia e descobrir o
meu avô, que me dizia adeus com a mão.
Eram os tempos da Florinda, inesquecível amiga que nos tratava como filhas - ela que nunca casara e tanto desejava ter uma família- fez de nós três as suas meninas.
Mais tarde, já eu casada, foi para minha casa e tratou dos meus filhos que, também, nunca a esqueceram!
Eram os tempos da Florinda, inesquecível amiga que nos tratava como filhas - ela que nunca casara e tanto desejava ter uma família- fez de nós três as suas meninas.
Mais tarde, já eu casada, foi para minha casa e tratou dos meus filhos que, também, nunca a esqueceram!
Nessa noite de Inverno, vira o meu pai abrir o guarda-chuva, muito grande, e
nele pousarem devagarinho pequenos flocos brancos.
Flocos suaves que se desfaziam em
gotas e escorregavam pela seda preta, até ao empedrado da rua que ficava
brilhante e onde uma manchinha branca começava a formar-se. É a única
recordação de neve da minha infância.
Magritte, Guarda-chuva
A noite em que o meu pai me levou era fria e a separação custou-me logo no primeiro momento em que olhei e o meu pai já lá não estava.
Havia três primas já crescidas naquela casa que sentia estranha, ao fundo da rua estreita, a Rua João Acciaoli, com casas bonitas.
Ao fim da tarde, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me logo a correr à janela para o ver. Era uma novidade que me divertia.
Outras vezes, ouvia, desinteressada, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da calçada. Burrinhos de olhos doces como esses só os encontrei em Marrocos, na Medina de Fez.
Havia três primas já crescidas naquela casa que sentia estranha, ao fundo da rua estreita, a Rua João Acciaoli, com casas bonitas.
Ao fim da tarde, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me logo a correr à janela para o ver. Era uma novidade que me divertia.
Outras vezes, ouvia, desinteressada, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da calçada.
Durante o dia inteiro, as minhas primas penteavam-me, faziam e
desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas
engomadas, bordadas com pintinhas de todas as cores. Brincavam comigo, para me tirarem da tristeza em que ficara depois da partida.
Pesava-me a ausência da minha irmã, dos meus pais, e da pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir dela.
Pesava-me a ausência da minha irmã, dos meus pais, e da pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir dela.
Na casa, havia um gatinho que dormia ao fundo da minha cama numa
almofada e a quem eu dava leite num biberon de bonecas: das bonecas de
louça, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também
brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras minúsculas e armários pintados com flores
de várias cores.
Os dias desenrolavam-se lentos e era à noite que eu mais pensava
na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo do candeeiro de vidrinhos
verdes e brancos.
E a minha irmã como estaria? Quando estava já na cama, lembrava-me
de muitas coisas e ficava triste.
Não sei quanto tempo passou.
Uma noite, tínhamos acabado de jantar há pouco, e ouvi a campainha da porta. Eu estava a brincar,
fazia uma “cantareira” em cima do sofá, arrumando os tais brinquedos de madeira, que tinham brincado as minhas primas, em pequenas. Começava a ter muito sono.
A Mimi, que era a mais nova, foi abrir. Soaram
uns passos rápidos no corredor. Aproximavam-se e eu conhecia-os bem! Virei-me para
a entrada: era o meu pai, eu sabia!
Lembro-me de lhe saltar ao pescoço e de o apertar com força com os meu braços pequenos.
Lembro-me de lhe saltar ao pescoço e de o apertar com força com os meu braços pequenos.
Saímos os dois sozinhos na noite. Eu, com o meu casaco felpudo e o meu barrete de
lã vermelha, que se apertava por debaixo do queixo com uma fita, e as botas grossas e quentinhas de que tanto gostava. O meu pai trazia o sobretudo comprido que o
fazia parecer ainda mais alto, o cachecol cinzento e umas luvas que recordo serem de pele
amarela.
Sé de Portalegre (foto Mão de Ferro)
Atravessámos o largo da Sé, deserto àquela hora. Detrás da igreja,
no alto, a lua brilhava encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se
desvaneciam.
Sentia-me bem, com a mão pequenina na mão enorme do meu pai,
a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, por voltar a
casa.
Ficamos sem saber o desfecho? Não acredito.... Espero bem que a maninha estivesse já recuperada...
ResponderEliminarBeijinho.
Acho que tenho de acabar a história...ficou em suspenso! beijo
EliminarAo ler recordei como era estar doente em criança, nunca fui separada das minhas irmãs, mas recuperei mais cedo do sarampo e não tinha com quem brincar porque elas ainda estavam doentes e por essa altura comecei a fazer figuras em plasticina - e tive tosse convulsa, assim como a minha irmã mais nova, a minha irmã mais velha escapou porque tinha sido vacinada, e consigo ainda lembrar-me como era horrível, estava sempre a tossir
ResponderEliminarum beijinho e boa noite
Tenho muitas recordações (infelizmente) de doenças na infância...não havia vacinas e "apanhávamos"tudo umas das outras... sarampo, anginas, varicela...
EliminarAs minhas recordações, nesse aspecto, são por desgraça mais duras. Tinha um irmão, o Toli, que só tinha um ano de diferença de mim.. Apanhámos os dois o sarampo e a que estava pior era eu, mas de repente a ele veio-lhe o garrotilho e levou-o por diante. O médico pôs-lhe o soro antes de tempo e depois já não se pôde fazer nada, morreu asfixiado nos braços do meu pai. Nunca será para mim um tema a narrar, é demasiado doloroso. O meu pai sofreu de claustrofobia o resto da vida.
ResponderEliminarQue tristeza, Maria! Não imaginava um drama assim. Nem todas as histórias tê o mesmo final feliz. Faz muita impressão, minha amiga!
EliminarO final parece sugerir o amanhecer, como um recomeço, após a linda lua, em casa com a família e a irmã querida.
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