Chéri Samba, rapazes
Há muitos anos tive um aluno que nunca esqueci.
De todos eles, recordo sempre um gesto, um sorriso, uma travessura, um olhar, imagens que chegam envoltas numa espécie de névoa, onde aparece uma sala cheia de carteiras, de cadernos e livros, um quadro e um apagador, um cheiro a pó e a suor.
Chamava-se Albino e, dele, lembro tudo: o rosto, a maneira de falar, talvez por nada ter que prendesse a atenção, o que pode parecer um paradoxo.
Não era o aluno brilhante, ou o aluno divertido, ou o aluno tranquilo que não dá problemas e que é um descanso para o professor... Era uma figura sem graça, com uma pele sebácea e escura, o cabelo rapado, os dentes irregulares, estragados e um dos dentes da frente partido.
Mas os olhos vivos, sempre a brilhar, eram inteligentes, e tornavam-no num miúdo diferente. Irreverente, brincalhão, numa turma onde todos eram turbulentos, agitados, inconvenientes por falta de educação, a ironia da história era ser ele, muitas vezes, quem conseguia meter os outros na ordem. Para me ajudar...
Recordo-os ainda hoje a entrar na aula de roldão. Procuravam os lugares, agarravam-se aos tampos das carteiras, deixando um pé estendido para o próximo que passasse tropeçar e, antes que se sentassem e calassem todos, era uma luta entre mim e eles. Quando, finalmente, estavam sentados e eu pensava que podia começar, logo um se levantava e se virava o colega de trás, puxava-lhe o caderno, ou, sorrateiramente, deitavam-lhe os lápis para o chão.
Um sem número de tropelias repetidas que constituíam um divertimento e provocavam grandes gargalhadas a toda a turma. Como se, em cada aula, houvesse um desafio renovado: nenhum deveria parar a brincadeira antes dos outros: isso seria dar-se por vencido.
Recordo frases que hoje me fazem rir mas que nessa altura me enchiam os olhos de lágrimas, que me via aflita para esconder.
Lá seguia um papel, em bola, pelos ares e aterrava na cabeça de um:
-Ha! Ha! Embrulha e manda pró correio...
Logo, lá do fundo, uma voz:
- O quê?! O qué-que-disseste, pá?
- Cala o bico, ó Cristóvão! Vê lá se queres uma mise à galo!
O Cristóvão era um dos mais terríveis, sempre cheio de ideias loucas detrás dos caracóis despentedados e da cara suja.
Virava-se, imediatamente, para o que falara, com a cabeça a abanar, furioso:
- A mim? Uma mise à galo?! Vais ver lá fora!
Era uma risada geral.
Tudo lhes servia para brincar e fazer rir os outros.Os diálogos e os protestos cruzavam-se pelo ar e, com eles, voavam as tais bolinhas de papel, aviões, pedaços de giz que, não sei como, saíam dos bolsos cheios.
Eu olhava para eles espantada, dolorida e com uma certa raiva.
- “Por que me deram estas turmas!?”
Era o meu primeiro ano de ensino no Ciclo Preparatório, chegava jovem e sem experiência. E, de repente, via-me a ensinar francês, do 2º ano, a oito turmas de rapazes, cada uma com trinta alunos: da turma A à turma H.
Os alunos estavam “arrumados” por idades, comportamento ou dificuldade, correspondendo a turma A aos mais miúdos, alunos de doze ou onze anos. A idade e a dificuldade iam “subindo” com a letra, e a turma H era a mais difícil: nesta, os alunos tinham em média dezasseis anos, e provinham de meios sociais difíceis, de bairros deteriorados, com problemas de vários tipos que eu não estava preparada para enfrentar.
A turma H era a turma do Albino.
Eu fingia não ver nem ouvir, ia arrumando os papéis na secretária.
- “Se calhar, mais vale deixá-los expandirem-se um pouco, antes de começar...”, pensava.
Mas sabia que, no fundo, o fazia por não saber como os parar.
Depois, dava um grande suspiro e decidia começar de qualquer maneira.
Batia na mesa, com força, mandava-os calar. Viravam-se, surpreendidos, quase ofendidos pela interrupção.
E lá conseguia começar a aula.
Era uma turma fraca, mas o Albino era um bom aluno de francês. Gostava de responder primeiro do que os outros, queria ser ele a ler os textos e organizava a biblioteca da turma, tarefa que normalmente confiava aos alunos mais complicados e que eles desempenhavam bem.
Às vezes, vinha falar comigo, no intervalo. Deixava os outros sair e ficava a arrumar os cadernos dentro da tampa das carteiras.
- Posso apagar o quadro?
Havia uma expressão que ele usava a propósito de tudo:
- Ó stôra, viu a minha psicologia?
Até quando acabava de limpar o quadro e estava a bater com o apagador fora da janela, fazendo desenhos com o giz do apagador, ia dizendo:
- Viu esta psicologia?...
Muitas vezes, o Cristóvão “roubava-lhe” a expressão, a gozar:
- Como é que vai a tua psicologia, pá?
Furioso, o Albino protestava:
- Queres uma mise à galo?
Era a frase favorita...
À última hora de sexta-feira, era ainda mais difícil calá-los e para mim era um pesadelo ver essa hora chegar. Eu compreendia-os, sabia que já só pensavam no sábado, que estavam cansados de uma semana inteira de aulas, sonhavam com a liberdade. Tinham à frente dois dias livres...
Quando me via aflita, ou percebia a minha impaciência, o Albino olhava-me com um olhar cúmplice como a pedir licença e berrava:
- Calados, pá! Não vêem que a stôra quer falar?! A stôra vai dar a aula! É só uma hora, depois vamos para casa!
E a verdade é que lhe obedeciam.
Depois, nesses fins de tarde, vinha despedir-se e desejar-me bom fim de semana. Eu arrumava os livros e uma pilha de cadernos para corrigir os trabalhos, em casa.
Falávamos um pouco, ele procurava distrair-me porque me via triste. Ia contando coisas da vida dele, do que fazia para ajudar o pai, que tinha de ir buscar à taberna, que este sempre que o apanhava a jogar à bola lhe batia.
- Tem que ser...
Eu perguntava-lhe onde aprendera a falar francês. Dizia-me, com o seu ar malandro:
- Vou ali pró ténis do Estoril apanhar as bolas, stôra. Há lá muito franciú e eu aprendo com eles... Dão sempre boas gorgetas!
Sorria, a mostrar os dentes grandes, e despedia-se.
- Adeus, stôra, até segunda. Agora ainda vou jogar à bola, a ver se o meu pai não me apanha desta vez. Mas se precisa de ajuda prós livros, fico mais um bocado, ajudo-a até casa...
- Obrigada, Albino, não preciso de nada.
- Sempre às ordens...
O que eu gostaria de saber do Albino!
A imagem que escolhi é de Chéri Samba, pintor de origem congolesa, nascido em 1956, em Kinto M'Vuila, República Democrática do Congo. Vive e trabalha hoje em Kinshasa. Em 1972 deixa a escola para aprender com pintores como Kasa Vubu e pertence a um círculo de artistas que é uma das mais famosas escolas de pintura popular do nosso tempo.
O quadro que utilizei acima como ilustração, faz-me lembrar o Albino, na sua ingenuidade amadurecida à força, antes do tempo, pela dureza da vida que certas crianças têm em comum, vivam onde viverem: crescendo a correr, sem tempo para ser crianças...
Conhecia de Chéri Samba quadros fantásticos onde o humorismo se bate com a dureza da realidade, numa pintura sempre forte, como p.ex. , o quadro "luta contra os mosquitos"...