quarta-feira, 17 de junho de 2009

Histórias da casa amarela: o homem dos gelados



O Verão era também, para nós, o homem dos gelados...
Ouvia-se, na rua, uma campainha a aproximar-se e sabíamos que era o carrinho dos gelados. A Florinda era a primeira a dar conta e a avisar:
-“Meninas!, dizia baixinho, “é o homem dos gilaus”.
Nunca percebi por que chamava assim aos gelados, mas toda a vida o fez.
Lá vinha o homem a empurrar o carro, com o seu casaco branco muito curto. Era magro, tinha uma cor amarelada nas faces, cabelo ralo. Tinha ar de estar doente.
Era o que o meu pai dizia. De facto, estávamos proibidas pelo meu pai de lhe comprar gelados.
-“Há o perigo do contágio”, dizia-nos, “são coisas que demoram, ele pode ainda não estar curado...”
O pobre do homem tinha estado tuberculoso e nada convencia o meu pai que não pudesse ainda ter “bacilos”, como ele nos explicava, com todo o cuidado, dando imensos pormenores. Mas nós éramos crianças, inconscientes, e adorávamos os gelados. Não fazíamos caso do que nos recomendava, e, quando ele não estava em casa, com a cumplicidade da Florinda, conseguíamos fugir à proibição.
Às escondidas, sem fazer barulho, para a mãe não nos ouvir, corríamos ao porta-moedas da cozinha onde estavam os trocos do mercado e dávamos à Florinda:
-“Um de dois tostões! Chocolate e baunilha!”
Nisso estávamos as três de acordo.
-“Para as três... E um para a Rosalina e outro para ti!...”
Ela descia os dois andares, a correr, e voltava, pé ante pé, com os gelados numa cestinha de verga. Era uma festa!
A Rosalina punha sempre um ar comprometido, com remorsos daquela pequena traição que fazíamos à minha mãe, mas também pegava no seu gelado, com os olhos a brilhar.
Ainda me vejo a lamber o gelado, com ar de conspiradora, ao canto da janela, guardando para o fim o cone de barquilho, amolecido pelo chocolate a derreter-se.
A campainha ia-se afastando, trrim-trrim, pela rua acima.

1 comentário:

  1. Também para nós esses gelados eram proibidos. Coincidências de pais médicos. E também nós transgrediamos... Ainda hoje saboreio esses gelados nas minhas memórias!!

    Beijos

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