domingo, 21 de junho de 2020

Histórias de pombos outra vez...

Tenho mais uma história para contar, uma história simples que nos leva a pensar que os animais, apesar de não terem a nossa voz, comunicam. 
Bem dizia Hamlet "Há mais coisas no céu e na terra daquilo que sonha a tua vã filosofia, Horácio..."
O que sabemos nós dos pombos? Dos animais a que chamamos "irracionais", das plantas e das flores? Parece que também "comunicam"
Aqui vai a história: não sei se já contei que há uns dias (exactamente há cinco dias!) me apareceu na cozinha um pombo que veio a cair pelo tubo que serve de “chaminé”.
Tinham vindo arranjar o esquentador nessa tarde mas desde manhã que eu ouvia ruídos estranhos, raminhos a caírem e um piar assustado. Pensei que havia um ninho ali por cima e tive medo que algum pombo estivesse entalado no tubo. Assim era, de facto. O técnico a certa altura chamou-me e disse:
A senhora tem aqui um passarinho. Vi-lhe a cabeça a sair do tubo e puxei-o para fora. Está um bocado atordoado, talvez intoxicado.”
E deu-mo para as mãos. Fiquei contente, confesso - estava mesmo a pensar que a avezinha ia morrer. Era um pombo ainda muito pequeno, tinha um tufo loiro de penugem que ainda não eram penas. Depois preocupei-me com a ideia de ele ficar por aqui.
E se ele fica por cá como os outros dois de há uns anos?”
Fui pô-lo na varanda num caixote com água e umas sementes ao acaso, cereais, cevadinha, o que tinha. Chegou a noite e ele não se mexia. Estava uma noite escura e cheia de nuvens escuras. Ia ter frio o passarinho.

Na manhã seguinte, o pombinho tinha conseguido saltar do caixote e estava escondido detrás de uns vasos. Quando o chamava encolhia-se e se me aproximava afastava-se devagarinho rente ao chão.

Todas as vezes que o ia espreitar, estava em sítios diferentes. Abria as asas, agitava-as mas não sabia voar. Era um pombo novinho ainda sem penas no alto da cabecinha. Estava assustado. Tremia.

Nessa tarde, vimos uns pombos poisarem no parapeito da varanda. Quando nos viam fugiam, mas voltavam depois. 

Um dos pombos – ou pomba?- metia mesmo a cabeça entre as grades como se estivesse a ensinar a saída ao pombo. Ele ia lá, tentava, mas não conseguia passar e fugia para detrás de outro vaso. 
Mais um dia e tudo igual, mas ele passeava mais à vontade no chão e saltava para o vaso da roseira e ficava encostado à grade a olhar para fora. Fazia-me pena. Não sabia como livrá-lo daquele problema. Os visitantes apareciam e desapareciam.

Mas na sexta-feira, creio, quando acordei o Manuel disse-me: “Já se foi embora. Vem ver.”

Ao princípio nem sabia o que era, não me lembrava do pombo. Fui à varanda e não vi nem pássaro nem nada, só o caixote de cartão! E os vasos com as flores que começaram a rebentar há pouco.
"Voou! O pombo voou! Que bom." 
Estava verdadeiramente contente. Confesso que, egoisticamente, pensava que ter ali um pombo ia ser mais um problema. Fiquei aliviada!
"Bom passeio, pombinho voador. Boa viagem a outras terras com os teus amigos", disse-lhe em pensamento.

Nada como ter amigos...

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Guy Béart, a canção "Qu'on est bien" e outras...


Desenho de Michel Bourdais.

Lembro hoje Guy Béar (Guy Béhart-Hasson) que foi um autor-compositor e intérprete francês muito apreciado nos anos 60 e 70. Foi  também escritor e animador de programas televisivos. Nasceu em Julho de 1930 no Cairo e cresceu em vários países - devido à profissão do pai que o levou da Europa ao México e ao Médio Oriente.
Acaba os estudos secundários no 'Colégio Internacional de Beirut' e segue para Paris. Inscreve-se na Escola nacional de música de Paris e aprende vários instrumentos  (guitarra, bandolim). Paralelamente estuda no Liceu Matemática e entra para a Ecole National des Ponts et Chaussées, onde se licencia em Engenharia.
Lança-se na canção em 1954 a partir de 1954 em cabarets parisienses da Rive Gauche. Famosa a canção Bal chez Temporel.
Este sucesso será seguido de outras canções de sucesso, L’ Eau Vive, Qu’on est bien (1958), Laura e Les grands principes 1967 são hoje clássicos.

Escreveu canções que outros cantaram também como Juliette Gréco, Patachou, como Chandernagor etc. Canta em várias salas importantes de Paris, do Bobino ao Olympia.
Em 1986, adoece com um cancro. No ano seguinte publica o livro “L’esperance folle” com o qual ganha o Prix Balzac. Volta à cena em 1986.
Em 1994, é distinguido pela Académie Française com o a "Grande Medalha da Canção Francesa".
Em 17 de Janeiro de 2015 dá o último espectáculo no Olympia, o show dura quatro horas. 

Guy Béart tem um ataque cardíaco na rua e não conseguem reanimá-lo, e morre nesse dia, 16 de Setembro.





https://youtu.be/nBJ1uDIs-Nk

http://v.blnk.fr/A19k45P7h

quarta-feira, 10 de junho de 2020

CAMÕES GRANDE CAMÕES!


Os anos passam, os rios correm para o mar e o mar nunca está cheio. O tempo passa? Não, nós é que passamos.
Ontem estive ao pé da estátua de Camões, em Cascais. Sentado com a cabeça ligeiramente inclinada, pareceu-me triste e acabrunhado. Tem, bem seguro com as mãos e apoiado nos joelhos, o Livro.
Um céu de Primavera, as árvores a sombrear ali por perto, no jardim. Há quantos anos o Dia de Camões! O poeta fundamental de quem se ignora quase tudo da vida.
O que pensará do alto do seu poiso, a ver as gentes passar, de Inverno e de Verão?
Sim, o tempo vai correndo e, como ele escreve: “do Estio/ Há pouco que passar até o Outono” e os dias idênticos, the same” (diria o poeta Reinaldo Ferreira, chegarão ao fim em breve.
Pensei que o Poeta estava cansado. Sorri-lhe. Talvez, como eu -quem sabe?- se interrogue: “o que andará esta gente toda a fazer para cá e para lá? O que esperam, o que querem? Qual a finalidade da sua vida” - mas depressa se esquece deles e volta aos seus pensamentos.
O homem procura o bem, luta sempre - e perde ou ganha. O mundo transforma-se, em continuação. A exigência do bem mantém-se nalguns, noutros desaparece e a recordação desse bem também. 
Encontrei o livrinho onde o meu pai leu "Os Lusíadas", uma edição anotada pelo Professor Mendes dos Remédios, e tenho estado a folheá-lo, a ver as notas que o meu pai ali pôs, letra a lápis hoje quase apagada, mas dele.
 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” diz o seu soneto famoso. Camões o disse e a cantou, “a mudança”, o eterno devir que nos desestabiliza e fragiliza, e esse sentimento de insegurança e efemeridade espalhou-o ele nos seus versos. 
Joseph Turner, Tempestade
A morte, as doenças, as pestes, o escorbuto nos barcos em viagem para o fim do mundo, as catástrofes, os mares em fúria e os naufrágios (quantos deles causados pela "vã cobiça", carregados até não poderem levar mais nada) tudo ele cantou, pedindo às Musas  "engenho e arte".
Joseph Turner, Naufrágio
O que permanece, nessa mudança, nesse ir e vir? Sim, porque depois tudo fica mais ou menos igual, mudado, de modo diferente – e igual. 
Porque a natureza do Homem é igual, poderíamos dizer e existe a impermanência e a efemeridade dos momentos e de nós. E depois o eterno regresso. 

Talvez não regresse a juventude e a beleza das mulheres que cantou - que para mim tinham sempre os traços das mulheres de Botticelli - mas o retrato que delas fez mantém essa beleza e juventude para sempre.
Sandro Botticelli, Simonetta Vespucci

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo na esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
Do bem, se algum houve, as saudades.”

Lá no “assento etéreo” onde subiu “se memória da vida se consente”, deve espantar-se o Poeta com o que se passa neste mundo.
Ou talvez não, Camões conhecia bem a natureza humana. Aprendera com “a vida de muita experiência feita”. Com a idade, a Fortuna fizera-lhe “o engenho frio”, trouxera-lhe a lucidez e o pessimismo e a sua confiança no homem não devia ser grande.
“Vão os anos descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.”
(Canto X, 9)

Mudança? Afinal tudo voltou ao mesmo: àquilo de que falou na sua epopeia! O mundo muda - e continua igual: a cobiça, a traição, a “fama” que é vaidade e cobiça e que leva à maior ignomínia; a popularidade procurada no fraudulento gosto a que se chama “honra”.
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça!
Desta vaidade a que chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’ uma aura popular, que honra se chama!
Eu castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”
(Canto IV, 95)
 Lá está ela outra vez a “vã cobiça”, a "vaidade", “glória de mandar”, o poder do “vil metal”, a prepotência, a espada. As traições abundam na grande viagem sempre incerta de Os Lusíadas e da vida. 
Os perigos são infinitos, os deuses injustos, o mar e a terra revelam-se inseguros e as guerras destroem gentes e países. Por toda a parte, o choro dos que sofrem sem culpa, é eterno e sentimo-lo forte nos tempos de hoje. 
Migrantes a morrer nos mares sem túmulo, fugitivos das cidades ocupadas, crianças a morrer de fome, de doenças, de vírus.
Quantas frases ou versos poderíamos ainda encontrar que Camões não refira no seu Livro imortal sobre o mundo em que vivemos?

Continuam as intempéries que tudo destroem, os “monstrengos”, os adamastores dos mares do fim do mundo, as guerras sem fim, os ditadores de sempre, a dor, o sofrimento, o medo do desconhecido.
 
Gigante Adamastor
Daí a desconfiança, o receio de não haver para o fraco humano um lugar de paz, seguro, de descanso. Daí as palavras do Velho do Restelo (aqui ilustrado pelo enorme pintor português Columbano Bordalo Pinheiro, em 1904), avisando:
Columbano e o Velho do Restelo

“Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente pões sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança!
No mar tanta tormenta tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?”
(Canto I, 195-106)
"o céu sereno" e indiferente

Ícaro e o sol

Mas a sede de conhecimento, a procura do absoluto não deixam os homens parar de tentar, de arriscar, a vencer o medo do desconhecido - mesmo que  a morte possa ser o fim, as "asas de cera" de Ícaro continuarão a querer voar até ao sol.

Pobre querido Poeta! As ilusões são poucas e a esperança é sempre a de que “se indigne o céu sereno” e proteja finalmente o homem. E proteja o homem do outro homem.
“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno.”

Que me falta recordar? Ah, sim! A sua poesia lírica maravilhosa: as Canções, os Sonetos sem igual, a extraordinária RedondilhaSôbolos rios que vão”. 

A beleza da "mulher amada" de Camões é e será sempre inesquecível. E essa eterna.
Sandro Botticelli

A beleza, o engenho e a arte, como ele esperava, conseguiu atingi-los.

Sim, nunca teria fim a lembrança dos seus versos. Porque Luís de Camões é um grande Poeta! É o nosso mais rico e profundo Poeta.