Os anos passam, os
rios correm para o mar e o mar nunca está cheio. O tempo passa? Não, nós é
que passamos.
Ontem estive ao pé da estátua de Camões, em Cascais. Sentado com a cabeça
ligeiramente inclinada, pareceu-me triste e acabrunhado. Tem, bem seguro com as mãos e apoiado nos joelhos,
o Livro.
Um céu de Primavera, as árvores a sombrear ali por perto, no jardim. Há quantos anos o Dia de
Camões! O poeta fundamental de quem se ignora quase tudo da vida.
Sim, o tempo vai correndo e, como ele escreve: “do Estio/ Há pouco que passar até o Outono” e os dias “idênticos, the same” (diria o poeta
Reinaldo Ferreira, chegarão ao fim em breve.
Pensei que o Poeta estava cansado. Sorri-lhe. Talvez, como eu -quem sabe?- se interrogue: “o que
andará esta gente toda a fazer para cá e para lá? O que esperam, o que querem? Qual a finalidade da sua vida” -
mas depressa se esquece deles e volta aos seus pensamentos.
O homem procura o bem, luta sempre - e perde ou ganha. O mundo transforma-se,
em continuação. A exigência do bem mantém-se nalguns, noutros desaparece e a recordação desse bem também.
Encontrei o livrinho onde o meu pai leu "Os Lusíadas", uma edição anotada pelo Professor Mendes dos Remédios, e tenho estado a folheá-lo, a ver as notas que o meu pai ali pôs, letra a lápis hoje quase apagada, mas dele.
Encontrei o livrinho onde o meu pai leu "Os Lusíadas", uma edição anotada pelo Professor Mendes dos Remédios, e tenho estado a folheá-lo, a ver as notas que o meu pai ali pôs, letra a lápis hoje quase apagada, mas dele.
“Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades” diz o seu soneto famoso. Camões o disse e
a cantou, “a mudança”, o eterno devir que nos desestabiliza e fragiliza, e esse sentimento de
insegurança e efemeridade espalhou-o ele nos seus versos.
Joseph Turner, Tempestade
A morte, as doenças, as pestes, o escorbuto nos barcos em viagem para o fim do mundo, as catástrofes, os mares em fúria e os naufrágios (quantos deles causados pela "vã cobiça", carregados até não poderem levar mais nada) tudo ele cantou, pedindo às Musas "engenho e arte".
Joseph Turner, Naufrágio
O que permanece, nessa mudança, nesse ir
e vir? Sim, porque depois tudo fica mais ou menos igual, mudado, de modo
diferente – e igual.
Porque a natureza do Homem é igual, poderíamos dizer e existe a impermanência e a efemeridade dos momentos e de nós. E depois o eterno regresso.
Talvez não regresse a juventude e a beleza das mulheres que cantou - que para mim tinham sempre os traços das mulheres de Botticelli - mas o retrato que delas fez mantém essa beleza e juventude para sempre.
Porque a natureza do Homem é igual, poderíamos dizer e existe a impermanência e a efemeridade dos momentos e de nós. E depois o eterno regresso.
Talvez não regresse a juventude e a beleza das mulheres que cantou - que para mim tinham sempre os traços das mulheres de Botticelli - mas o retrato que delas fez mantém essa beleza e juventude para sempre.
“Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o
ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo
é composto de mudança,
Tomando
sempre novas qualidades.
Continuamente
vemos novidades,
Diferentes
em tudo na esperança;
Do mal ficam
as mágoas na lembrança,
Do bem, se
algum houve, as saudades.”
Lá no “assento etéreo” onde subiu
“se memória da vida se consente”,
deve espantar-se o Poeta com o que se passa neste mundo.
Ou talvez não, Camões conhecia bem a natureza humana. Aprendera com “a vida
de muita experiência feita”. Com a idade, a Fortuna fizera-lhe “o engenho frio”, trouxera-lhe a lucidez e o pessimismo e
a sua confiança no homem não devia ser grande.
“Vão os anos
descendo, e já do Estio
Há pouco que
passar até o Outono;
A Fortuna me
faz o engenho frio,
Do qual já
não me jacto nem me abono;
Os desgostos
me vão levando ao rio
Do negro
esquecimento e eterno sono.”
(Canto X, 9)
Mudança? Afinal tudo voltou ao mesmo: àquilo de que falou na sua epopeia! O mundo muda - e continua igual: a cobiça, a traição, a “fama” que é vaidade e cobiça e que leva
à maior ignomínia; a popularidade procurada no fraudulento gosto a que se chama “honra”.
“Ó glória de
mandar, ó vã cobiça!
Desta vaidade
a que chamamos fama!
Ó
fraudulento gosto, que se atiça
C’ uma aura
popular, que honra se chama!
Eu castigo
tamanho e que justiça
Fazes no
peito vão que muito te ama!
Que mortes,
que perigos, que tormentas,
Que
crueldades neles experimentas!”
Lá está ela outra vez a “vã cobiça”, a "vaidade", “glória de mandar”, o poder do “vil
metal”, a prepotência, a espada. As traições abundam na grande viagem sempre
incerta de Os Lusíadas e da vida.
Os perigos são infinitos, os deuses injustos, o mar e a terra revelam-se inseguros e as guerras destroem gentes e países. Por toda a parte, o choro dos que sofrem sem culpa, é eterno e sentimo-lo forte nos tempos de hoje.
Migrantes a morrer nos mares sem túmulo, fugitivos das cidades ocupadas, crianças a morrer de fome, de doenças, de vírus.
Os perigos são infinitos, os deuses injustos, o mar e a terra revelam-se inseguros e as guerras destroem gentes e países. Por toda a parte, o choro dos que sofrem sem culpa, é eterno e sentimo-lo forte nos tempos de hoje.
Migrantes a morrer nos mares sem túmulo, fugitivos das cidades ocupadas, crianças a morrer de fome, de doenças, de vírus.
Quantas frases ou versos poderíamos ainda encontrar que Camões não refira no
seu Livro imortal sobre o mundo em que vivemos?
Gigante Adamastor
Daí a desconfiança, o receio de não haver para o fraco humano um lugar de paz, seguro, de descanso. Daí as palavras do Velho do Restelo (aqui ilustrado pelo enorme pintor português Columbano Bordalo Pinheiro, em 1904), avisando:
Columbano e o Velho do Restelo
“Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente pões sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança!
No mar tanta tormenta tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?”
(Canto I, 195-106)
"o céu sereno" e indiferente
Ícaro e o sol
Pobre querido Poeta! As ilusões são poucas e a esperança é sempre a de que “se indigne o céu sereno” e proteja
finalmente o homem. E proteja o homem do outro homem.
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno.”
Gostei imenso!
ResponderEliminarAs imagens são tão bem escolhidas!
Beijinhos e bons feriados:))
Grande entre os grandes, como Pessoa. Bom finde
ResponderEliminarBrilhante analogia entre as palavras do nosso Poeta Pátrio
ResponderEliminare os dias inquietantes da atualidade.
Dias bons.
Beijinho
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Voltei a ler.´
ResponderEliminarDesperta-nos sempre profunda admiração e igualmente, profunda comiseração pelo seu destino...
Tenho estado ausente. Com o confinamento, as publicações intensificaram-se e, como gosto de retribuir os cumprimentos que me fazem, acabei por ficar muito cansada e com os olhos fatigados.
Tudo pelo melhor,
Beijinhos
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