quarta-feira, 10 de junho de 2020

CAMÕES GRANDE CAMÕES!


Os anos passam, os rios correm para o mar e o mar nunca está cheio. O tempo passa? Não, nós é que passamos.
Ontem estive ao pé da estátua de Camões, em Cascais. Sentado com a cabeça ligeiramente inclinada, pareceu-me triste e acabrunhado. Tem, bem seguro com as mãos e apoiado nos joelhos, o Livro.
Um céu de Primavera, as árvores a sombrear ali por perto, no jardim. Há quantos anos o Dia de Camões! O poeta fundamental de quem se ignora quase tudo da vida.
O que pensará do alto do seu poiso, a ver as gentes passar, de Inverno e de Verão?
Sim, o tempo vai correndo e, como ele escreve: “do Estio/ Há pouco que passar até o Outono” e os dias idênticos, the same” (diria o poeta Reinaldo Ferreira, chegarão ao fim em breve.
Pensei que o Poeta estava cansado. Sorri-lhe. Talvez, como eu -quem sabe?- se interrogue: “o que andará esta gente toda a fazer para cá e para lá? O que esperam, o que querem? Qual a finalidade da sua vida” - mas depressa se esquece deles e volta aos seus pensamentos.
O homem procura o bem, luta sempre - e perde ou ganha. O mundo transforma-se, em continuação. A exigência do bem mantém-se nalguns, noutros desaparece e a recordação desse bem também. 
Encontrei o livrinho onde o meu pai leu "Os Lusíadas", uma edição anotada pelo Professor Mendes dos Remédios, e tenho estado a folheá-lo, a ver as notas que o meu pai ali pôs, letra a lápis hoje quase apagada, mas dele.
 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” diz o seu soneto famoso. Camões o disse e a cantou, “a mudança”, o eterno devir que nos desestabiliza e fragiliza, e esse sentimento de insegurança e efemeridade espalhou-o ele nos seus versos. 
Joseph Turner, Tempestade
A morte, as doenças, as pestes, o escorbuto nos barcos em viagem para o fim do mundo, as catástrofes, os mares em fúria e os naufrágios (quantos deles causados pela "vã cobiça", carregados até não poderem levar mais nada) tudo ele cantou, pedindo às Musas  "engenho e arte".
Joseph Turner, Naufrágio
O que permanece, nessa mudança, nesse ir e vir? Sim, porque depois tudo fica mais ou menos igual, mudado, de modo diferente – e igual. 
Porque a natureza do Homem é igual, poderíamos dizer e existe a impermanência e a efemeridade dos momentos e de nós. E depois o eterno regresso. 

Talvez não regresse a juventude e a beleza das mulheres que cantou - que para mim tinham sempre os traços das mulheres de Botticelli - mas o retrato que delas fez mantém essa beleza e juventude para sempre.
Sandro Botticelli, Simonetta Vespucci

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo na esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
Do bem, se algum houve, as saudades.”

Lá no “assento etéreo” onde subiu “se memória da vida se consente”, deve espantar-se o Poeta com o que se passa neste mundo.
Ou talvez não, Camões conhecia bem a natureza humana. Aprendera com “a vida de muita experiência feita”. Com a idade, a Fortuna fizera-lhe “o engenho frio”, trouxera-lhe a lucidez e o pessimismo e a sua confiança no homem não devia ser grande.
“Vão os anos descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.”
(Canto X, 9)

Mudança? Afinal tudo voltou ao mesmo: àquilo de que falou na sua epopeia! O mundo muda - e continua igual: a cobiça, a traição, a “fama” que é vaidade e cobiça e que leva à maior ignomínia; a popularidade procurada no fraudulento gosto a que se chama “honra”.
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça!
Desta vaidade a que chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’ uma aura popular, que honra se chama!
Eu castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”
(Canto IV, 95)
 Lá está ela outra vez a “vã cobiça”, a "vaidade", “glória de mandar”, o poder do “vil metal”, a prepotência, a espada. As traições abundam na grande viagem sempre incerta de Os Lusíadas e da vida. 
Os perigos são infinitos, os deuses injustos, o mar e a terra revelam-se inseguros e as guerras destroem gentes e países. Por toda a parte, o choro dos que sofrem sem culpa, é eterno e sentimo-lo forte nos tempos de hoje. 
Migrantes a morrer nos mares sem túmulo, fugitivos das cidades ocupadas, crianças a morrer de fome, de doenças, de vírus.
Quantas frases ou versos poderíamos ainda encontrar que Camões não refira no seu Livro imortal sobre o mundo em que vivemos?

Continuam as intempéries que tudo destroem, os “monstrengos”, os adamastores dos mares do fim do mundo, as guerras sem fim, os ditadores de sempre, a dor, o sofrimento, o medo do desconhecido.
 
Gigante Adamastor
Daí a desconfiança, o receio de não haver para o fraco humano um lugar de paz, seguro, de descanso. Daí as palavras do Velho do Restelo (aqui ilustrado pelo enorme pintor português Columbano Bordalo Pinheiro, em 1904), avisando:
Columbano e o Velho do Restelo

“Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente pões sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança!
No mar tanta tormenta tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?”
(Canto I, 195-106)
"o céu sereno" e indiferente

Ícaro e o sol

Mas a sede de conhecimento, a procura do absoluto não deixam os homens parar de tentar, de arriscar, a vencer o medo do desconhecido - mesmo que  a morte possa ser o fim, as "asas de cera" de Ícaro continuarão a querer voar até ao sol.

Pobre querido Poeta! As ilusões são poucas e a esperança é sempre a de que “se indigne o céu sereno” e proteja finalmente o homem. E proteja o homem do outro homem.
“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno.”

Que me falta recordar? Ah, sim! A sua poesia lírica maravilhosa: as Canções, os Sonetos sem igual, a extraordinária RedondilhaSôbolos rios que vão”. 

A beleza da "mulher amada" de Camões é e será sempre inesquecível. E essa eterna.
Sandro Botticelli

A beleza, o engenho e a arte, como ele esperava, conseguiu atingi-los.

Sim, nunca teria fim a lembrança dos seus versos. Porque Luís de Camões é um grande Poeta! É o nosso mais rico e profundo Poeta.

 

4 comentários:

  1. Gostei imenso!
    As imagens são tão bem escolhidas!

    Beijinhos e bons feriados:))

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  2. Grande entre os grandes, como Pessoa. Bom finde

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  3. Brilhante analogia entre as palavras do nosso Poeta Pátrio
    e os dias inquietantes da atualidade.
    Dias bons.
    Beijinho
    ~~~~

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  4. Voltei a ler.´
    Desperta-nos sempre profunda admiração e igualmente, profunda comiseração pelo seu destino...

    Tenho estado ausente. Com o confinamento, as publicações intensificaram-se e, como gosto de retribuir os cumprimentos que me fazem, acabei por ficar muito cansada e com os olhos fatigados.

    Tudo pelo melhor,
    Beijinhos
    ~~~~~

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