terça-feira, 17 de agosto de 2021

O meu pai morreu num dia 17 de Agosto como uma “chuvada rápida de Primavera” ...



O meu pai morreu num dia 17 de Agosto. Não importa quando foi, quanto tempo passou nem importa a razão por que se foi embora para sempre. Sabemos que somos mortais e que a passagem por esta terra é efémera. 

Mas para os que ficam mais sozinhos todos, a passagem de algumas pessoas devia durar sempre e ser eterna. Não ser, apenas, “uma chuvada na Primavera”, como disse um poeta japonês. Hoje estou a  pensar que o meu pai era mais novo quando morreu do que eu sou agora, sei que posso morrer mas não conto que seja para já. 

O que sinto hoje é que a falta que me faz é muito grande. Ponho-me a dizer a mim mesma que, se fosse vivo, ele me pudesse explicar o sentido das coisas que não entendo ou que não quero aceitar que aconteçam.

Se eu lhe contasse o que me angustia todos os dias ou os medos da noite talvez ele tivesse uma resposta. Ele sabia dar-me respostas e eu não tinha medo de nada.

 Papá, vai doer?” - esta foi a primeira pergunta séria que me lembro de lhe ter feito. Eu fizera um corte na perna ao encostar-me à janela onde havia um vidro no chão que o vidraceiro trouxera para substituir o vidro partido.

A perna cheia de sangue, muito susto da minha mãe e lá fomos ao hospital ter com ele num táxi.  

O meu pai só disse: “Não vais sentir nada, Maria João.” Eu acreditei e não senti nada quando me pôs os agrafes na pele. Eu acreditei sempre nele.

Quantas e que outras perguntas "sérias" teria para lhe fazer hoje ainda? Todos nós, humanidade, começamos cedo todos a interrogar-nos.

De onde vimos e para onde vamos?”, perguntou Gauguin . "Para que existimos? Qual o sentido da vida para depois morrermos?", perguntaram de vários modos Tolstoi, Camus ou Malraux.

Eu acrescentaria outra interrogação:

Porque se é infeliz, Papá? Por que razão há gente que sofre e que tem fome? Por que há outras pessoas que têm tudo e não pensam se não em si? Qual é o sentido da vida? Por que razão o homem mata o outro homem, seu irmão indefeso? Por que não aceitam os homens terem um “irmão” diferente, de outra cor, de outro mundo, de outra religião? Por que existe o ódio que tantas vezes parece mais forte do que o amor? E o medo por que existe?"

E perguntaria mais coisas que também não sei: "Há um Deus que nos proteja, Papá? E protege todos ou só alguns?" (O meu pai também não sabia quando estava vivo, mas agora saberá?)

E continuaria a perguntar-lhe coisas e coisas mais. É tão bela a vida e a natureza mas...

"Por que morrem os animaizinhos nas florestas a arderem e os cavalos se espantam a fugirem e os donos desesperados a tentar salvar a casa e os animais?  E os homens que querem salvar outros homens que fogem do perigo ardem e se afogam nas intempéries e nos fogos, por quê? E por que motivo há homens armados que matam inocentes e queimam o mundo?"

Concluiríamos que Deus – mesmo que exista - não tem culpa de nada disso. Sabemos que é culpa dos homens. Sei bem que ficarias triste ao ouvir-me perguntar estas coisas. E outras perguntas sem resposta - e tanto que  tínhamos para falarmos.

"E os pássaros que deixam de voar - por quê, Papá?"

Vejo-te, como tantas vezes vi, sentado à mesa do jardim, a agitar o braço com o cigarro na mão, sacudindo a cinza. Vestes o casaco de malha já usado de tantos anos mas de que gostavas muito.  

Vejo-te, de olhos baixos, com as sobrancelhas que pareciam ter vida e se moviam conforme o que te preocupava. Sei que vais apagar cuidadosamente o cigarro no cinzeiro ou no prato do café que ali estiver por perto, encolher ligeiramente os ombros e dizer-me: “Não sei, Maria João, não sei.”

Sinto a tua mão apertar-me o braço. E vamos, sem palavras, como na noite em que me foste buscar a casa das primas da minha mãe onde estivera separada de todos porque a minha irmã tivera tosse convulsa. Parece-me sentir outra vez a tua mão enluvada na minha mão pequenina que, lembro bem, trazia luvas de lã vermelhas.

A noite de Inverno era muito escura mas a lua brilhava lá ao fundo, perto da nossa casa. Apertas a minha mão e pensas “estou contente porque vais para nossa casa e vamos estar todos outra vez”.

E eu penso - agora que voltámos os dois a andar juntos - que gostava de encontrar  as respostas, mas é tarde.

“Até um dia, meu pai.”

"Noite breve –

Quantos dias

Me restam para viver?"(1)

Vai passar algum tempo mas um dia chegará para mim a tal “chuvada rápida de Primavera” de que fala o poeta japonês.


2 comentários:

  1. Comovi-me com esta leitura. Tão bonito.

    Beijinhos:))

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  2. Querida Maria João,
    Um texto deveras sentido e comovente!
    Recordações e vivências que não se esquecem!
    Tantas coisas que ficam por dizer...
    Um abraço apertado.
    Beijinhos.:))

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