O meu pai morreu num dia 17 de Agosto. Não importa quando foi, quanto tempo passou nem importa a razão por que se foi embora para sempre. Sabemos que somos mortais e que a passagem por esta terra é efémera.
Mas para os que ficam mais sozinhos todos, a passagem de algumas pessoas devia durar sempre e ser eterna. Não ser, apenas, “uma chuvada na Primavera”, como disse um poeta japonês. Hoje estou a pensar que o meu pai era mais novo quando morreu do que eu sou agora, sei que posso morrer mas não conto que seja para já.
Se eu lhe
contasse o que me angustia todos os dias ou os medos da noite talvez ele tivesse uma resposta. Ele
sabia dar-me respostas e eu não tinha medo de nada.
“Papá, vai doer?” - esta foi a primeira pergunta séria que me lembro de lhe ter feito. Eu fizera um corte na perna ao encostar-me à janela onde havia um vidro no chão que o vidraceiro trouxera para substituir o vidro partido.
A perna cheia de sangue, muito susto da minha mãe e lá fomos ao hospital ter com ele num táxi.
O meu pai só disse: “Não vais sentir nada, Maria João.” Eu acreditei e não senti nada quando me pôs os agrafes na pele. Eu acreditei sempre nele.
Quantas e que outras perguntas "sérias" teria para lhe fazer hoje ainda? Todos nós, humanidade, começamos cedo todos a interrogar-nos.
“De onde vimos e para onde vamos?”, perguntou Gauguin . "Para que existimos? Qual o sentido da vida para depois morrermos?", perguntaram de vários modos Tolstoi, Camus ou Malraux.
Eu acrescentaria outra interrogação:
“Porque se é infeliz, Papá? Por que razão há gente que sofre e que tem fome? Por que há outras pessoas que têm tudo e não pensam se não em si? Qual é o sentido da vida? Por que razão o homem mata o outro homem, seu irmão indefeso? Por que não aceitam os homens terem um “irmão” diferente, de outra cor, de outro mundo, de outra religião? Por que existe o ódio que tantas vezes parece mais forte do que o amor? E o medo por que existe?"
E perguntaria mais coisas que também não sei: "Há um Deus que nos proteja, Papá? E protege todos ou só alguns?" (O meu pai também não sabia quando estava vivo, mas agora saberá?)E continuaria a
perguntar-lhe coisas e coisas mais. É tão bela a vida e a natureza mas...
Concluiríamos que Deus – mesmo que exista - não tem culpa de nada disso. Sabemos que é culpa dos homens. Sei bem que ficarias triste ao ouvir-me perguntar estas coisas. E outras perguntas sem resposta - e tanto que tínhamos para falarmos.
"E os pássaros que deixam de voar - por quê, Papá?"
Vejo-te, como tantas vezes vi, sentado à mesa do jardim, a agitar o braço com o cigarro na mão, sacudindo a cinza. Vestes o casaco de malha já usado de tantos anos mas de que gostavas muito.Vejo-te, de olhos baixos, com as sobrancelhas que pareciam ter vida e se moviam conforme o que te preocupava. Sei que vais apagar cuidadosamente o cigarro no cinzeiro ou no prato do café que ali estiver por perto, encolher ligeiramente os ombros e dizer-me: “Não sei, Maria João, não sei.”
Sinto a tua mão apertar-me o braço. E vamos, sem palavras, como na noite em que me foste buscar a casa das primas da minha mãe onde estivera separada de todos porque a minha irmã tivera tosse convulsa. Parece-me sentir outra vez a tua mão enluvada na minha mão pequenina que, lembro bem, trazia luvas de lã vermelhas.
A noite de
Inverno era muito escura mas a lua brilhava lá ao fundo, perto da nossa casa. Apertas a minha
mão e pensas “estou contente porque vais para nossa casa e vamos estar todos
outra vez”.
E eu penso - agora que voltámos os dois a andar juntos - que gostava de encontrar as respostas, mas é tarde.
“Até um dia, meu pai.”
"Noite breve –
Quantos dias
Me restam para viver?"(1)
Vai passar algum tempo mas um dia chegará para mim a tal “chuvada rápida de Primavera” de que fala o poeta japonês.
Comovi-me com esta leitura. Tão bonito.
ResponderEliminarBeijinhos:))
Querida Maria João,
ResponderEliminarUm texto deveras sentido e comovente!
Recordações e vivências que não se esquecem!
Tantas coisas que ficam por dizer...
Um abraço apertado.
Beijinhos.:))