quinta-feira, 13 de abril de 2023

Lembrar Truman Capote, o livro “Ao começo do dia", outros autores americanos e outras histórias...

Reli este livro de Truman Capote com emoção. Fazia parte dos livros que mais amei na juventude. O conto Ao começo do dia - na edição americana, Breakfast at Tiffany’sé o título de um dos quatro contos, o que abre o livro, publicado há muitos anos na ‘Colecção Miniatura’ (1).

Truman Capote

Quem era Truman Capote? Truman Streckfus Persons, de seu nome verdadeiro, nasce em Nova Orléans na Louisiana em 30 de Setembro de 1924. (2)

O pai era um comerciante, filho de uma família respeitada do estado do Alabama, e a mãe era uma jovem de 16 anos, Lillie Mae Faulk, igualmente do Alabama. Truman era ainda adolescente quando a mãe foge de casa.

 

Monroeville

Anos mais tarde os pais divorciam-se e Truman vai viver em casa de uns primos afastados, em Monroeville. A mãe voltara a casar, o marido era um bom homem cubano chamado Joseph “Joe” Capote, que decide adoptar Truman que ficará a chamar-se Truman Capote e vai viver com eles para Nova Iorque.

 Nova Iorque

Capote escreveu muitos livros de contos, romances, textos de ‘não-ficção’ narrativa e artigos de jornalismo colaborando em jornais e revistas.

O livro Breakfast at Tiffany's (Ao começo do dia) sai em 1958 e é, talvez, a obra mais conhecida do autor. A personagem central é uma jovem mulher de vinte anos, Holly Golightly, ingénua e excêntrica ao mesmo tempo.
A 5th Avenue em New York

A história passa-se em Nova Iorque, num bairro popular, à volta da figura de Holly  Golightly. 

Holly cujo passatempo era ir todas as manhãs, de autocarro, olhar para a montra da loja Tiffany, na 5ª Avenida - onde se vendiam os mais belos colares de diamantes - antes de os clientes entrarem.  E, sem tirar os olhos dos diamantes, ia comendo devagar o pequeno almoço que podia ser apenas um gelado.

Acho que todos conhecemos a história – sobretudo pelo sucesso do filme do realizador americano Blake Edwards, em 1961, com Audrey Hepburn no principal papel.
 

 
O enredo é sério e divertido, contado por um narrador que se apaixona por ela - porque todos se apaixonavam por Holly.

Holly era divertida, sedutora, vulnerável e terna, inquietando os que com ela se cruzavam. De cabelo despenteado, pintado de várias cores e de nariz no ar, óculos escuros, passeava-se no bairro com o seu gato ruivo.

Uma jovem mulher independente, que vive à sua maneira, com horários diferentes dos outros, vestindo-se de modo original, uma mulher livre que não ouve ninguém e que quer ser ela própria a escolher a vida e cujo sonho é poder entrar um dia na Tiffany's e comprar um colar de diamantes.
É um conto cheio de beleza e de sonho, de coisas boas e más, que acontecem na casa onde Holly Golightly vive, a ela e aos vizinhos. Tristeza e desilusões muitas, sim, mas a sua vontade de viver consegue que "dê a volta" à vida. Pode chorar, andar à chuva ou cantar à janela. Holly é uma sobrevivente. é teimosa e impulsiva mas tem um grande coração. 
É um belo conto sobre a juventude, a dificuldade de viver e ...a amizade.

Neste volume há mais três histórias curtas. Uma intitula-se Casa de Flores, com a figura pura da indígena Ottilia que vive numa “casa de raparigas” onde o jovem Royal Bonaparte se apaixona por ela. 

 
Gauguin "Jovem mulher com leque branco" (1902)

Antes de se ir embora, Royal pede-lhe que vá ter com ele à floresta. Diz que é "para viverem um grande amor". Ela vai e, com algumas peripécias pelo meio, assim vai acontecer.

Uma viola de diamantes” é um conto de grande humanidade que fala de homens que passam pela prisão e por vezes trazem com eles um sonho - ou apenas uma guitarra enfeitada com diamantes de vidro - o caso de Tico Feo, dono dessa guitarra. Ou Mr. Shaeffer que fabrica bonecas que - depois de vendidas lá fora - lhe dão algum dinheiro para o tabaco. São duas personagens vivas, verdadeiras.

 

  E depois vem Memória do Natal, conto que fecha o livro. Dele quero falar um pouco mais. Uma história simples e banal, porém com uma sensibilidade aguda que nos confrange. Lembra por vezes a poesia de um seu outro livro, Harpa de Ervas (1951).

Ficamos com o doloroso sentimento de que bastam pequenas coisas na vida, pequenos gestos, um olhar, uma conversa - para dar felicidade às pessoas. E no entanto quão depressa são desvalorizados ou apagados como se só os grandes gestos contassem.

Em poucas páginas as duas personagens do livro entram no coração dos leitores. Pela sinceridade e inocência de um miúdo de sete anos e de uma mulher de sessenta que ficou sempre criança. Quem pode esquecer Buddy, o narrador? é ele que recorda e conta:

 Uma mulher de cabelo branco aparado está de pé à janela da cozinha. Calça sapatos de ténis e enverga uma camisola cinzenta informe por cima de um vestido estival de algodão. É baixa e viva como uma pequena galinha (...). O rosto é notável  não é sem parecenças de com o de Lincoln, anguloso, tisnado pelo sol e pelos ventos; mas também delicado, de ossos finamente cinzelados e olhos tímidos cor de cereja madura.

- Ai minha vida! - exclama de hálito a esfumar o vidro da janela – estamos no tempo dos bolos de fruta!

Edouard Manet

A pessoa que está a falar com ela sou eu. Tenho sete anos ela sessenta e tal. Somos primos muito afastados e vivemos juntos...bem! Desde que eu me lembro. (...) Somos os melhores amigos um do outro. Ela chama-me Buddy em recordação de um rapazinho que dantes fora o seu melhor amigo. O outro Buddy morrera em 1880 era ainda uma criança. Ela continua a ser uma criança.” (Col. Miniatura, pg 136) 

Nostalgia, saudade, consciência do tempo passado perdido. Tão belo e triste ao mesmo tempo.

Escrevia o autor: “Encontrar a forma certa para a 'sua' história é simplesmente perceber a maneira mais natural de a contar” E isso Truman Capote sabia.

 
Escreveu outras obras. O romance “Other voices other rooms” (1948) baseado em experiências da sua infância. Ousa falar do racismo sulista - e entre outras coisas conta a história de um estupro colectivo de uma mulher ‘afro-americana’ por brancos, no Alabama. Não era normal aparecer 'escrito' um acontecimento nitidamente racista.

Capote conheceu a escritora Carson McCullers (3) autora de um dos mais belos romances sobre a realidade da América sulista, The Heart is a Lonely Hunter, e de Ballad of the Sad Café onde, como Capote, falava com verdade da realidade “real” e da dura vida de certas camadas sociais da América. Ambos falavam de solidão, de alienação, de desigualdades e de lugares de pobreza; ambos falavam das contradições sulistas, das enormes diferenças e choques de ordem social, do racismo e da marginalidade.

 

Foi nela que encontrou amizade e foi graças a ela que conseguiu um contrato com a editora Random House para publicar Other voices other rooms. O romance teve imediato sucesso literário nacional e internacional. Capote afirma-se como um autor americano entre os mais originais do pós-guerra.

O romance "Outras vozes, outros lugares" (1948) é baseado em experiências da sua infância. Ousa falar do racismo sulista - e, entre outras coisas, conta a história de um estupro colectivo de uma mulher ‘afro-americana’ por brancos, no Alabama. Não era normal aparecer 'escrito' um acontecimento nitidamente racista.

 
Em 1966, publica uma obra controversa em que relata uma situação verdadeira : o assassinato de uma família, no estado do Kansas, numa quinta isolada, em 1959. 

 
Ao ler a notícia, Truman Capote decide escrever sobre o crime. Quase seis anos mais tarde, em 1965, publica a sua história em The New Yorker - em quatro partes.
Este livro transforma-o no pioneiro da arte da reportagem jornalística. Intitula-se In Cold Blood - "A Sangue frio” na tradução portuguesa da Dom Quixote - e teve grande sucesso.

Para o escrever, o autor deslocou-se à prisão onde estavam presos os dois assassinos para falar com eles e, assim, escrever a história ‘sob todos os pontos de vista, como uma reportagem. Uma reportagem dura sobre vidas quebradas e sem sentido nem futuro. A pedido de um dos assassinos  (que se ligou muito ao escritor naquele tempo de espera) foi assistir à sua execução por enforcamento.

Nessas idas, acompanhava-o a amiga e Harper Lee (4) que o ajudava a tomar notas. Eram amigos desde miúdos e por vezes eram personagens um do outro nas histórias sobre a infância comum.   
Harper Lee é autora de um livro fascinante Não matem a cotovia (título original To kill a mockingbird onde Capote é o "pequeno Dill Harris", um dos personagens principais.

 Que dizer mais? Truman Capote era membro do Instituto Nacional das Artes e Letras e recebeu em três anos diferentes o Prémio O. Henry Memorial (5) que premiava os melhores contos do ano.  

 Nos últimos anos dedicou-se a obras mais do tipo jornalístico como "Música para Camaleões" em que critica a sociedade mundana de Nova Iorque e, como era de esperar, cria muitos inimigos. Morre bastante solitário - depois de ter sido muito acompanhado, mas dizer a verdade paga-se...

Aconselho a leitura deste autor – se ainda não o leram. E igualmente a leitura das duas escritoras Carson McCullers e Harper Lee. Para mim todos eles têm o valor enorme no modo como revelam aquela parte da América, tão problemática, antes e depois da Secessão, e a simplicidade e a humanidade com que o fazem.

***

 (1) Foi publicado na Colecção Miniatura, (s/data), com uma bela capa de Bernardo Marques.

(2) Truman Capote nasce em Nova Orleães, na Louisiana, em 30 de Setembro de 1924 e morre em 25 de Agosto de 1984 em Los Angeles, Califórnia.

(3) Carson McCullers nasce em 19 de Fevereiro de 1917e morre em 29 de Setembro de 1967. Escreveu muitos livros entre os quais o livro de contos The Ballad of the Sad Café. “A Balada do Café Triste” está publicada nas edições Presença (2011) e na Relógio d'Água (2017). Existem também traduções de "Coração, Solitário Caçador", nas Edições Cor. A Relógio d’Água publica mais tarde o romance - nova tradução, novo título: "O Coração É Um Caçador Solitário".

(4) Harper Lee nasceu no dia 28 de Abril de 1926 e morreu, em 19 de Fevereiro de 2016 na sua cidade.em Monroeville, no estado do Alabama, onde Capote viveu. Ali passou infância e adolescência. O seu primeiro livro, To kill a mockingbird, ganhou vários prémios, entre eles o Pulitzer de Ficção, em 1961. Em português existem pelo menos duas traduções: Não matem a Cotovia, na Editora Difel e Mataram a Cotovia, na  Relógio d’ Água.

 (5) O Prémio foi criado nos USA, em 1919, com o nome de Prize Stories.

https://www.google.com/search?client=firefox-bd&q=truman+capote+biografia

https://pt.wikipedia.org/wiki/Carson_McCullers

https://www.blogletras.com/2016/02/a-complexa-relacao-entre-truman-capote.html

6 comentários:

  1. Querida Maria João, fiquei com muita vontade de ler "Ao começo do dia" de Truman Capote! E a "culpa" é sua, que descreve a vida e obra dos autores com tanta mestria, que apetece ir logo a correr procurar os livros.😉
    Gostei imenso de ler tudo o que escreveu e de saber sobre a amizade de T. Capote com Carson McCullers e Harper Lee.
    Um beijinho e obrigada! 😘

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu sempre gostei imenso dele. O primeiro livro ofereceu-mo o Manuel acho que ainda não tínhamos casado. Foi "A Harpa de Ervas", lindo e terno. Depois fui continuando sempre. Este que está na miniatura tem 4 contos muito bons mas só o Tiffany's é que é conhecido. O último que li foi também o último que publicou Foi "A sangue frio" - que é já uma reportagem sobre um assassinato que emocionou a América. Procure ler Truman Capote, nunca me desiludiu.!!!! Beijinhos

      Eliminar
  2. É sempre uma aprendizagem e um prazer ler os seus post. Tenho alguns dos livros que refere (alguns comprados por sugestão da Maria João), mas ainda não li quase nada...vão passando outros à frente...tantos livros bons para ler e tão pouco tempo disponível para isso...melhores dias virão!

    Já aqui deixei um ou outro comentário que não apareceu...estarão no spam? Eu agora recebo, no meu blogue, alguns que vão para o spam. De vez em quando vou lá ver.

    Beijinhos e um bom fim-de-semana:))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não sei o que tem o meu blogue. Acontece-me por exemplo não conseguir pôr comentários sem ser como anónima... Hei-de ir ver. De facto estava a estranhar que a "minha fiel leitora" não aparecesse. Beijinhos

      Eliminar
  3. Quando li A sangue Frio, há mil anos, lembro-me que fui informar-me e me ficou gravado que Truman Capote era um homem muito inteligente e intenso, de forte personalidade e intensa vida social, homosexual declarado, algo que naqueles tempos era raríssimo, alcoolizado e drogadicto. etc. Devia ter lido mais obras dele, creio que o crime cruel e sem sentido que relata e que aconteceu de verdade, me impressionou demasiado. Agora cada vez leio menos. "Trop tard"...
    Bom finde, procura distrair-te. Beijinhos

    ResponderEliminar
  4. Também li "A sangue frio" sabe-se lá porquê li-o em espanhol! Deve ter sido quando fomos pela última vez a Salamanca.Ainda o tenho e impressionou-me muitíssimo! Mas tem histórias e livros muito bons e escreve muito bem! Tens de ler mais. Dizem que "Música para Camaleões" é muito bom, mas esse quase não me lembro mas sei que criticava a sociedade americana e contava tudo o que "eles" não queriam que se soubesse... Tenho que o encontrar. Bom fim de finde!

    ResponderEliminar