sexta-feira, 26 de maio de 2023

Velhas histórias. O comboio da noite

 

                  "Comboio, vapor, chuva", Joseph William Turner (1844)


Senti sempre um grande fascínio pelos comboios da noite especialmente no Inverno. O mistério que têm, com a escuridão e o frio, as estradas, as terras com luzes que passam a correr, as estações em que se não para. Tudo sugere a distância, o afastamento das coisas vãs, a liberdade total.
imagem retirada da internet

Recordo sempre o quadro de Joseph William Turner que mostra um comboio,  durante um temporal que o pintor, pela janela, consegue ver e fica fascinado: os efeitos criados pela turbulenta mistura das nuvens, do vapor, da chuva e dos raios de sol que conseguem atravessar tudo encantam-no.

 Imagino muitas vezes a aventura que seria viajar no Transiberiano ou no Orient-Express ou mesmo no comboio imaginário para Irkutsk, na peugada do cavalo do correio do Czar, 'Miguel Strogoff', herói do livro de Jules Verne.

Como aquela viagem -longínqua já- de Moscovo à bela São Petersburgo adormecida ao pé das águas do Neva. Inesquecível viagem do passado, em tempos melhores e irrepetíveis.
                     As estações de comboio de Moscovo e de São Petersburgo


Sempre, as estepes desfilando, as florestas de abetos esguios, de ulmeiros e bétulas com os troncos brancos salpicados de cinzento esverdeado, tudo isso numa paisagem de neve.
 
Claude Monet, Le train

Não é assim o comboio da noite em que agora vou, o comboio da linha marginal - que me leva a casa ao longo da costa até São João do Estoril. 

Hora de ponta, consegui lugar sentada num dos poucos assentos que restavam. Lá fora adivinham-se a sombra das águas, um pouco de cais branco e negro, as docas, a areia e os barcos na Marina, a lua reflectida no mar ou o vermelhão do crepúsculo no horizonte.

Dentro, as pessoas olham os últimos clarões de luzes lá fora e bamboleam o corpo rígido de um dia de trabalho. Rostos marcados, traços duros, desconfiados sem vontade de se entregarem, presos da tensão do dia que começara cedo e que ainda não acabara para muitos deles. 

Faltava-lhes ainda a chegada a casa e outras preocupações para resolver - o jantar e os filhos e o dia de amanhã. Pouco a pouco acabam por se abandonar ao bem-estar que os invade no calor da carruagem e adormecem.

Uma rapariga à minha frente lê um livro volumoso. Lembro a "Menina a ler" de Renoir e sorrio. Com a gola do casaco levantada, prendendo com ela os cabelos castanho-dourados, estremece na carruagem aquecida e, pelo modo como segura as abas do casaco bem apertadas junto ao pescoço não parece ter apenas frio, parece ter arrepios de febre.

Duas senhoras iguais na toilette descuidada, nos cabelos amarelos mal pintados, com o mesmo corte vulgar, vão sentadas frente a frente - falando em desespero, agarradas ao telemóvel. As conversas cruzam-se, interrompem-se em modulações diferentes. Eu vou ouvindo.

-   Olha, querida, a mãe já vai no comboio, diz ao paizinho que estou a chegar.

Quase ao mesmo tempo ouve-se a outra senhora gritar para o telemóvel com voz irritada:

-   Não foi isso que se combinou na reunião, percebes?

E agitava a mão livre, afastando o cabelo da testa. E o monólogo em dueto continua.

-  Sim, filha, levo o que me pediste. E até levo uma sobremesa de que tu gostas!

Era a outra senhora. Esta falava num tom doce e, no sorriso, mostrava sem querer as gengivas. A da frente continuava ainda a falar da reunião, abespinhada:

-  Nem penses! Era o que faltava!

Os outros passageiros da carruagem não as ouvem, absortos nos problemas da vida de cada um -mas há sempre os faladores que não se calam com o telemóvel na mão. Atrás de mim um pouco distante ouço uma voz de homem impessoal, monocórdica, que diz para o telemóvel:

-  Minha senhora, os nossos serviços estão a par do problema... Claro, claro, assim que for possível. É do nosso interesse.

E as conversas seguem-se, interrompidas por uma ou outra exclamação, ou com silêncios a meio.

 
Edward Hopper

Olho pela janela. Os prédios correm nas luzes bruxuleantes da iluminação pública, as silhuetas desenhando-se detrás das cortinas dos prédios altos. A fila de carros no trânsito alonga-se, os farolins são uma mancha vermelha brilhando na esteira deles. Arrancam, travam, avançam, enquanto o comboio desfila, desafiando-os, ultrapassando-os a toda a velocidade.Há passageiros que esperam mas o comboio não para.

 
Edward Hopper

Do lado contrário está o mar que não se vê, por detrás do espelho negro das janelas, onde se revelam em película colorida os rostos lívidos dos passageiros. E ouço ainda:

- Vai ligando o forno, estou a chegar sim? Beijinhos...

Desliga, olhando-se no vidro, ajeitando o casaco e o cachecol, feliz. A paragem em que vai descer aproxima-se. Ouço, ainda teimando, a outra:

- Isso era o que eles queriam! Mas não foi isso que se combinou na reunião. Eu cá não aceito. Não julgues que me deixo convencer assim facilmente.

A rapariga do livro embrulha-se melhor no casaco, encosta o rosto ao vidro fresco da janela, procura uma posição para dormir e a cabeça descai devagarinho. Os outros passageiros vão silenciosos, uns lêem o jornal grátis que tiraram da rede do comboio, outros cederam ao torpor e dormem de boca aberta.  

Do outro lado do corredor virada para mim está sentada uma mulher jovem. Traz um vestido azul escuro e uma bonita écharpe verde esmeralda que lhe aviva a pele clara. Tem no colo um monte de fotocópias e vai sublinhando frases, fórmulas, números com um marcador amarelo e, depois, aponta num bloco algumas notas.

 

 Edward Hopper

Parece estudar, atenta ao que lê e escreve. Ao lado, um senhor levanta-se para sair na paragem, pede licença mas ela, distraída ou cansada, ao dar-lhe passagem meio erguida deixa cair os papéis. Consegue ainda segurá-los com os joelhos, apertando a caneta nos dentes, sorri e desculpa-se. Senta-se outra vez, junta as folhas, põe a caneta e o marcador na mala de mão.

Decide parar o trabalho, olha os outros passageiros sem os ver, dá um suspiro e encosta-se no assento. Adormece e a cabeça vai abanando, docemente, ao sabor do movimento do comboio. Ela, porém, não sente nada, não ouve o barulho em sua volta, sorri a dormir agarrada aos papéis.

 
Edouard Vuillard 

Longe, na minha imaginação, continua minha viagem eterna no comboio da noite, através das estepes, iluminado, recortando figuras chinesas, pessoas invisíveis na distância, por entre as cortinas de renda do compartimento no wagon-lit. O fumo sai pela chaminé da velha locomotiva e espalha-se na noite enevoada, vai apitando e desaparece na mancha da floresta negra.

Edouard Vuillard
 
Esqueço os companheiros de viagem, recosto-me na cadeira e deixo-me ir ao sabor do movimento do comboio. A leitora do livro dorme abraçada a ele. De longe em longe parece-me ouvir apitar o comboio da noite. Mas é apenas a minha imaginação.

8 comentários:

  1. Gostei muito desta viagem de comboio, estive a "ver" /imaginar os passageiros pela descrição e a adorar as pinturas. um beijinho grande e bom fim-de-semana

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  2. Tens um geitão para descrever, e uma viagem de combóio agora dá realmente muito de si, com as pessoas mal educadas a falar aos berros. Nada que ver de certeza com a que vocês os dois fizeram por uma bela estepe russa. Os combóios sempre foram fascinantes, os antigos e os de agora. A penúltima viagem que nós fizémos antes do covid (já não voltamos a sair de casa...), foi no TAV até Madrid e no AVE a Barcelona,. Cruzámos a Espanha inteira, ida e volta, a paisagem variava com grande
    rapidez, foi maravilhoso. Arriba os combóios e abaixo a gente que já não é capaz de desfrutá-los!
    Que tenhas uma boa semana

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    1. Sim, já não há muita gente que goste da calma e tranquilidade de uma viagem de comboio! Só querem a rapidez, a velocidade e o avião! Sempre que íamos ao Porto viajávamos no comboio e em duas horas e pouco estávamos lá. E de Veneza para Trieste e volta também passávamos duas belas horas... Adoro a própria atmosfera: os assentos, os cortinados nas janelas e a paisagem que corre ali ao nosso lado. Depois da ida a Israel quero ir ao Porto passar uns dias com uma velha amiga, a filha do Polónio Sampaio que foi muito nosso amigo. E depois no regresso fico em Aveiro em casa da minha ex-aluna preferida, a Guida. Viajar até Madrid também seria bom, quem sabe? Boa semana!

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  3. Como diz a Maria, não por estas palavras...mas a Maria João transforma uma viagem de combóio corriqueira, em poesia, porque tem o olhar de um poeta.
    Adorei a descrição!
    Gosto muito de andar de comboio e já perdi o conto às viagens de comboio para Lisboa ( durante os 3 anos que lá trabalhei, vim todos os fins-de semana, excepto dois). Também fiz uma viagem para França, para Toul de comboio, com uma prima (há quinhentos anos!!). Foi uma aventura, dois dias e duas noites de comboio.
    Continuo a adorar viajar de comboio, mesmo a viagem de e para Lisboa, no Regional, gosto de a fazer. Agora já não vou aí há uns 3 anos. Qualquer dia vou...

    Beijinhos e bom domingo:))

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  4. Também gosto muito de viajar de comboio. Actualmente, todas as semanas faço uma pequena viagem de 1h aproximadamente, 30 min. para cada lado. Tem um "quê" de fascinante, misterioso... e tem o revisor!!
    Quanto às conversas ao telemóvel, acho que se resumem a falta de educação; a falta de respeito pelos outros. Quantas vezes me apetece dizer:
    - Espero que o meu silêncio não o/a incomode!
    Enfim...
    Obrigada por esta viagem, Maria João!
    Beijinhos. 😘🌿🌹

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    1. Maria João, o meu comentário saiu como "anónimo".
      Beijinhos e boa semana. 😘

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