Tantos livros que li, na minha vida!
Talvez seja uma "livro-dependente", palavra que se devia ter já inventado. Ou biblio-dependente?
Livros de Salinger, em Paris
Não posso imaginar a vida sem livros. Aprendi neles quase tudo, cresci com eles, adolescente chorei com eles, ri com eles. Casei e continuei com eles, tentei transmitir o gosto aos meus filhos. Vou envelhecendo com eles, pode-se dizer...
Li há pouco tempo uma frase
mas esqueci quem a disse e tornei-a minha, modificando-a: a vida é um grande
rio de livros, que flui até à morte...
Ando à volta com uma novela tremenda de Simenon: Le Chat. Abro e fecho o livro. Agora arrumei-o por uns tempos na estante.
Romance duro, sem piedade, sem comiseração: a vida a fluir, nua e crua, na sua
desgraça e no ódio que às vezes separa as pessoas, mesmo quando se amaram.
Era a matéria dos seus romances "duros" como ele lhes chamava. Simenon é um dos meus escritores preferidos - e não falo só dos romances policiais com o Comissaire Maigret.
Das Obras Completas, Tout Simenon, da editora Omnibus, tenho mais de 15 volumes!
Com os livros de Georges Simenon, aprendi a ler francês e a saber falar a língua. Na Universidade, os Maigrets eram as minhas leituras para me acostumar e poder entrar noutros romances com linguagem mais difícil. Era coloquial, acessível, escrevendo muito bem, no entanto: sempre perfeito! André Gide apreciava-o muito, e Gide apreciava a forma.
Outras histórias como "Quartier Nègre", "45º à L'Ombre", "Les gens d'en face" são inesquecíveis: de amor, de solidão, de egoísmo, de infelicidade, de vidas destruídas.
Simenon amou muitas mulheres, "conta" a biografia dele e os livros íntimos. Dele e sobre ele tenho quase tudo. Não sei se, no seu enorme egoísmo, ele amou alguém...
Georges Simenon
Era a matéria dos seus romances "duros" como ele lhes chamava. Simenon é um dos meus escritores preferidos - e não falo só dos romances policiais com o Comissaire Maigret.
Das Obras Completas, Tout Simenon, da editora Omnibus, tenho mais de 15 volumes!
Com os livros de Georges Simenon, aprendi a ler francês e a saber falar a língua. Na Universidade, os Maigrets eram as minhas leituras para me acostumar e poder entrar noutros romances com linguagem mais difícil. Era coloquial, acessível, escrevendo muito bem, no entanto: sempre perfeito! André Gide apreciava-o muito, e Gide apreciava a forma.
Simenon amou muitas mulheres, "conta" a biografia dele e os livros íntimos. Dele e sobre ele tenho quase tudo. Não sei se, no seu enorme egoísmo, ele amou alguém...
A história de que vou falar é banal. Emile era viúvo, e um dia decidiu casar-se com Marguerite, também viúva. Ela aceitou. Tinha medo de viver sozinha. Creio que, acima de tudo, foi o "comodismo" da relação que lhes interessou. Ela era uma viúva ainda nova e ficou contente por se "arrumar" e não ter de pensar em ser ela a trazer a lenha para casa, no Inverno, ou despejar o balde do lixo todos os dias.
Viúvo, ele também, precisava de alguém que lhe pusesse a casa em ordem e cozinhasse. Dividiram as tarefas...
Hoje, velhos, encontram-se num frente a frente quotidiano onde o autor vai fazer ressaltar sobretudo o ódio e a insuportabilidade do “outro”.
Viúvo, ele também, precisava de alguém que lhe pusesse a casa em ordem e cozinhasse. Dividiram as tarefas...
Hoje, velhos, encontram-se num frente a frente quotidiano onde o autor vai fazer ressaltar sobretudo o ódio e a insuportabilidade do “outro”.
O autor escreve, a propósito dela:
"Marguerite era doce, quase suave. Imaginava-se a sua figura jovem e esbelta, uns anos atrás, já nessa altura vestida de cores pastel, com um grande chapéu de palha na cabeça, passeando, de sombrinha na mão, à beira do rio".
Mas a juventude passou. "Tudo passa, tudo esquece, tudo cansa", diz um velho ditado.
Mas a juventude passou. "Tudo passa, tudo esquece, tudo cansa", diz um velho ditado.
Num dia de Novembro, estavam os dois sentados ao pé da lareira. Ele, com o jornal aberto, ela com o tricot no colo, na poltrona baixinha. E assim começa o livro.
"Olhavam-se, espiavam-se. Não precisavam de se olhar. Há anos que se observavam assim, dissimuladamente, trazendo todos os dias a este jogo novas subtilezas."
Ele tinha um gato. O gato estava sempre entre eles. "Se não era de raça, não deixava de ser um gato com bom aspecto. O corpo elegante, flexível esticava-se ao longo das paredes e dos móveis com o corpo de um tigre."
Ela tinha um papagaio colorido que lhe saltitava no ombro, assim que o tirava da gaiola. "Uma arara grande de cores brilhantes que nunca falava mas que, quando se zangava, dava gritos estridentes."
E eles viravam-se as costas. Durava há quatro anos esta situação. Desde que o gato morrera... Ah! Sim, porque, entretanto, o gato desaparecera!
Ele tinha um gato. O gato estava sempre entre eles. "Se não era de raça, não deixava de ser um gato com bom aspecto. O corpo elegante, flexível esticava-se ao longo das paredes e dos móveis com o corpo de um tigre."
E eles viravam-se as costas. Durava há quatro anos esta situação. Desde que o gato morrera... Ah! Sim, porque, entretanto, o gato desaparecera!
Ao encontrar o corpo sem vida do gato, na cave onde ela ia buscar o vinho - depois de o chamar ternamente- ele culpa-a da morte do gato. “Envenenaste-o?!”
Nunca saberemos se ela o envenenou. Encolhe os ombros e não lhe responde.
O desabafo dele não era pergunta, era uma afirmação. E nunca mais lhe dirige a palavra. De tempos a tempos, escreve-lhe um bilhetinho com duas palavras "o gato".
O desabafo dele não era pergunta, era uma afirmação. E nunca mais lhe dirige a palavra. De tempos a tempos, escreve-lhe um bilhetinho com duas palavras "o gato".
Dias depois, é o papagaio que aparece morto. Marguerite não o censura nem acusa. Mas quando ele escreve no papelinho "o gato", ela responde baixinho "o papagaio".
E assim se passam os dias. Ele sai para ir ao café, ela vai às compras, prepara o jantar e senta-se na eterna poltrona, a tricotar. As vidas deles vão-se esvaziando de sentido, como um boneco cheio de ar. Ouve-se o barulho das agulhas de tricotar, a lenha a crepitar na lareira e mais nada.
E agora? Agora, os corpos
envelheceram, e o sentimento gastou-se? É o que ambos não perdoam ao outro? Quem sabe? Simenon não fala disso, limita-se a pô-los em cena.
A verdade é que, se ele era prepotente e rude, ela era uma avarenta. E havia entre eles uma grande diferença social: Marguerite era filha de proprietários rurais, Emile tinha sido pedreiro.
Teria sido a desilusão, a amargura, ou desgosto das pequenas coisas? Mon amour, c'est le désamour, cantava Leny Scudero.
O romance fala, sobretudo, de ressentimento - e de ódio também. Um ódio que vai durar até à morte. Tudo está ali, naquela luz de Outono, quando o livro começa.
A verdade é que, se ele era prepotente e rude, ela era uma avarenta. E havia entre eles uma grande diferença social: Marguerite era filha de proprietários rurais, Emile tinha sido pedreiro.
Teria sido a desilusão, a amargura, ou desgosto das pequenas coisas? Mon amour, c'est le désamour, cantava Leny Scudero.
O romance fala, sobretudo, de ressentimento - e de ódio também. Um ódio que vai durar até à morte. Tudo está ali, naquela luz de Outono, quando o livro começa.
Ele só soube amar verdadeiramente o gato...
Uma manhã ela não consegue levantar-se da cama. Queixa-se: "É o meu coração..." E fica deitada. Sabia que era grave. Recostou-se nas almofadas, e esperou.
Ele não responde, e sai como nos outros dias.
Uma manhã ela não consegue levantar-se da cama. Queixa-se: "É o meu coração..." E fica deitada. Sabia que era grave. Recostou-se nas almofadas, e esperou.
Ele não responde, e sai como nos outros dias.
Quando ele voltou, ela não dava acordo de si. Chamou a ambulância, foi
com ela para o hospital. Era tarde, porém. Marguerite stava morta.
Arrependeu-se?
Culpou-se? "E chi lo sa? Alibaba...", diria o Aldo Zari.
Não creio que Alibabá o soubesse. O coração de Emile era duro como uma pedra. Só se abrira para o gato. Alguma coisa, porém, se quebra naquele mecanismo, como brinquedo avariado, quando ela morre.
Ridículos, velhos palhaços cujo público já os não quer ver. Incomodam, a caminho da destruição.
A quem escreveria ele agora os bilhetinhos a dizer "o gato"? A quem espreitaria agora, de olhos meio fechados, a estudar o efeito das suas farpas? A ver se a magoara o necessário. Se ela já "tinha pago" a morte do gato...
Personagens comoventes, como Simenon tão bem sabe criar, personagens que amamos porque sofrem, porque são como toda a gente.
Numa entrevista à TV francesa, em 1967, altura em que sai o livro, o autor resume brevemente o assunto:
"É um história que não é divertida. Dois velhos que vivem numa pequena casa em Paris e que se odeiam. Por causa da morte de um gato. Desconfiam um do outro, deixam de se falar, escrevem bilhetinhos. Cada um julga que o outro o vai envenenar."
Simenon sorri, e acrescenta:
"Creio, que no fundo, se trata de uma história de amor"...
A quem escreveria ele agora os bilhetinhos a dizer "o gato"? A quem espreitaria agora, de olhos meio fechados, a estudar o efeito das suas farpas? A ver se a magoara o necessário. Se ela já "tinha pago" a morte do gato...
Numa entrevista à TV francesa, em 1967, altura em que sai o livro, o autor resume brevemente o assunto:
Simenon sorri, e acrescenta:
"Creio, que no fundo, se trata de uma história de amor"...
Sim, talvez história de amor e de solidão. Sem a companhia do gato e sem ela, sem o ódio que o fazia viver, a vida de Emile deixou de ter sentido. A quem odiaria? É horrível de o dizê-lo, mas há pessoas que vivem para odiar os outros e enchem a vida de pedras, de vidros partidos, de latas velhas, para atirar aos que odeiam!
Emile começou a dizer coisas sem nexo e levaram-no para o hospital. Lá ficou. Ninguém o ia ver, porque ele não tinha amigos, porque amava ninguém e nunca pensara se não em si próprio. Morreu pouco depois
E e assim acaba a história! Lembro como terminavam as
velhas fábulas gregas : “Hó myutsos deloi?” (transcrição fonética da expressão...)
Sim, que lição tirar da "fábula"? para mim a "myutsos" não "deloi" coisa nenhuma! Cada vida é cada vida e cada um "cria" a sua vida livremente. (Ou, mais ou menos, dirão os pessimistas.)
Eu sou optimista! Sei que o ódio é um sentimento muito forte, mais forte talvez do que o amor para alguns. Mas não para mim! Eu acredito nos bons sentimentos, no amor sentido, na ternura, na companhia. Eu sou uma grande parva, já me disseram!
Eu sou optimista! Sei que o ódio é um sentimento muito forte, mais forte talvez do que o amor para alguns. Mas não para mim! Eu acredito nos bons sentimentos, no amor sentido, na ternura, na companhia. Eu sou uma grande parva, já me disseram!
A verdade é que "Vidas são vidas", como diria, filosoficamente, José Régio. Não é por acaso que é este o título do 2º
volume de "A Velha Casa".
E temos que fazer da nossa o melhor que pudermos, porque depende em grande parte de nós! E sem arranjar "gatos" a complicar!
Para quem interessar: existe um filme tirado do livro, da autoria de Pierre Grenier-Deferre (1971), com dois actores fora do comum: Simone Signoret e Jean Gabin.
Dois mestres que dão toda a brutalidade e a tristeza da história, de modo incomparável!
É Dia de São Valentino! Não desanimemos com as histórias do Simenon! Depende muito de nós (sejamos optimistas!) o São Valentino. Como diz a canção, "every day is Valentine's day!" Se nós quisermos...
Bom dia de São Valentino, amigos! Bom dia de São Valentino ao amor que tive numa vida...
E ouçam Chet Baker e "Funny Valentine"!
E temos que fazer da nossa o melhor que pudermos, porque depende em grande parte de nós! E sem arranjar "gatos" a complicar!
Para quem interessar: existe um filme tirado do livro, da autoria de Pierre Grenier-Deferre (1971), com dois actores fora do comum: Simone Signoret e Jean Gabin.
Dois mestres que dão toda a brutalidade e a tristeza da história, de modo incomparável!
É Dia de São Valentino! Não desanimemos com as histórias do Simenon! Depende muito de nós (sejamos optimistas!) o São Valentino. Como diz a canção, "every day is Valentine's day!" Se nós quisermos...
E ouçam Chet Baker e "Funny Valentine"!
Eu também penso que é uma história de amor, porque senão não tinha nenhum sentido que estivessem a aguentar-se dessa maneira, cada um necessitava do outro para ser ele mesmo, à sua maneira, claro. Cada pessoa é como é, e talvez no fundo não consiga ser de outra maneira, mesmo que gustasse que assim fosse.
ResponderEliminarGostei muito deste post. Adoro a Simone Signoret, nem sei porquê sempre me fascinou.
Mando-te um beijinho
Também me fascina: é linda, inteligente e tem classe! C'est beaucoup...
EliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarClaro que é, mas daquelas histórias de amor duras e cruas que ele costuma contar! Se nada é simples na vida, porque o seria o amor, não é? UM beijinho e bom dia de S. Valentino!
EliminarDescobri este blog hoje. Já tive um que eliminei ao fim de uns alguns anos porque a blogosfera me cansou e tinha pouca disponibilidade. mas h´´a alguns que considero únicos que ainda visito e foi através de uma amiga que cá cheguei e gostei imenso de tudo o que li e vi. Muito agradável, muito profundo. Parabéns.
ResponderEliminarBranca, agradeço-lhe a mensagem que deixou! Fiquei contente por ter "dado" um pouco de mim no que escrevo. Apareça! Bom fim de semana!
EliminarAi de quem não namora
ResponderEliminarpela vida fora
Nao sabia desse libro do Simenon, mas com certeza è livro dele. Quando tu escreve que pode ser que nunca amou uma mulher por o egoismo dele, acho tu tem razao.
ResponderEliminarTalvez seria porque nao ter nascido o 14 fevreiro, mas o dia anterior?! Va saber!
Um abraco. Gostei muito deste post.
Obrigada Nela! Tu és especialista destes escritores... Tenta ler, é um conto tremendo. E ouve a entrevista dele que pus nos post: ele fala da história, mas tem um sorriso quase irónico. Eu adoro os livros do Simenon! ADORO! Mas não gosto dele, li tudo sobre ele e não gosto... Gosto é do Maigret! ! O outro é "o homem" - e não tem nada que ver com o escritor, já o dizia Proust no seu "Contre Sainte-Beuve"!!
EliminarO escritor ´"é" o que escreve, o que "escolheu" ser e deixar de si
E punto e basta... Bacione!
Parece uma história interessante.
ResponderEliminarOs livros são a melhor companhia!
Um beijinho
Vejo aqui a paixão sobre os livros policiais além da paixão tão bem retratada.
ResponderEliminarO Mickey e a Minnie são um achado.
Beijinho. :))
Amar é um duro exercício,
ResponderEliminarúnico.
bjs muitos