Victoria e eu...
Hoje vive numa casa de repouso, que ela chama "gaiola dourada". "Já não voo por Telavive..."
Ben David Zadock, escultura
Longe do centro da sua Telavive, da Promenade e dos cafés onde ia, das pastelarias que frequentava a comer os deliciosos sufganyot ou o apfelstrudel. Falta-lhe tudo o que amava e sente-se isolada no sítio onde está.
"Estou bem, não te preocupes, é tudo bom. Mas perdi a minha independência, a minha liberdade de passarinho..."
passarinho (blog Trepadeira)
Sabe que não podia viver sozinha no pequeno apartamento onde vivera tantos anos, agora sem família por perto pois o filho vive em Londres.
"Sinto-me cansada e não me apetece ir à sala do convívio. Fico por aqui a olhar pela janela...", escreve na sua letra bem desenhada, num francês correcto.
"Lembro-me de ti, Audrey!"
Sim, há momentos em que a vida sorri como um belo dia de sol e ficamos felizes por ter amigos. Pergunta-me como vão as minhas costas, velhos males...
"E tu Audrey, o que fazes de belo? Como vão as tuas costas?"
Talvez a franja de “Sabrina” lhe tenha dado essa ideia... No entanto, gosto que me chame assim, é uma coisa nossa, quase infantil. Ela adora a Audrey Hepburn e eu sinto-me um pouco dentro desse amor.
Conheci Victoria pouco depois de chegar a Telavive. Foi a Susy que ma apresentou.
Precisava de arranjar umas bainhas das saias, perguntei-lhe e ela disse-me, no seu modo
despachado:
“Chama a Victoria, "la sarta"
(costureira, em italiano, pois a Susanna
falava-me sempre em italiano), ela é muito perfeita no trabalho. Trabalhou num
atelier em Genève. É séria e não é careira. ”
Victoria é uma judia da Turquia. E que escolhera a Suíça para viver, com Albert -que conhecia desde jovem. Albert trabalhava já em Genève e viam-se nas férias, em Istambul.
Casaram, tiveram um filho. Viveram anos e anos na Suíça e ela trabalhou no tal atelier de alta costura de que me falava a Susy. Um dia, no tarde da vida, reformaram-se e decidiram ir para Israel.
Casaram, tiveram um filho. Viveram anos e anos na Suíça e ela trabalhou no tal atelier de alta costura de que me falava a Susy. Um dia, no tarde da vida, reformaram-se e decidiram ir para Israel.
Albert era um um judeu loiro, um senhor, com um bigode sempre bem tratado, e um sorriso doce. Um perfeito gentleman! Às vezes, via-o, contemplativo, com o seu olhar sempre nostálgico, num dos bancos do Jardim
Ben Gourion.
O que pensaria Albert? Lembraria a frescura dos verões de Genève? Levantava-se de imediato e vinha cumprimentar-me.
Eu tinha começado as aulas no Ulpan da minha rua, o Gordon. Eu morava na rehov Lassalle, 4 e o Ulpan era no nº 7.
É uma escola de língua, tipo full-immersion,
onde se ensina hebraico aos judeus imigrantes, vindos de toda a parte, seja da
Rússia como da Argentina ou da França, ou do Yemen e da Etiópia.
Ulpan Gordon, na rehov Lassalle, 7
A minha professora do Ulpan chamava-se Ilana. Era uma mulher
inteligente e viva, quase da minha idade, com uma paciência infinita.
Mais tarde, tive outra professora que me deu lições particulares e que ficou amiga para a vida, a Ruti.
Bebíamos grandes canecas de chá o tempo todo! E eu tinha que explicar o meu dia, em hebraico. A dada altura, tive de contar a história do livro policial que eu me tinha posto a escrever! Confesso que fui inventando coisas que nada tinham a ver, mas num vocabulário mais simples!
As minhas professoras - a Ilana e a Ruti eram sabras.
Mais tarde, tive outra professora que me deu lições particulares e que ficou amiga para a vida, a Ruti.
A Ruti, a Lilit e eu, na Dizengoff
Ruti e eu, em casa, durante a lição...
As minhas professoras - a Ilana e a Ruti eram sabras.
Chamam “sabras” aos judeus nascidos em Israel,
filhos dos kibutznikim, dos pioneiros,
muitos deles sobreviventes do holocausto. A palavra “sabra” tem um sentido duplo,
especial.
“Sabra”, em hebraico, é o figo-da-Índia, o fruto selvagem que cresce nos desertos ou nos terrenos meio-áridos, uma forma de cactus. Como ele, os sabras consideram-se cheios de picos por fora - para se defenderem- mas com toda a doçura do mundo, dentro.
“Sabra”, em hebraico, é o figo-da-Índia, o fruto selvagem que cresce nos desertos ou nos terrenos meio-áridos, uma forma de cactus. Como ele, os sabras consideram-se cheios de picos por fora - para se defenderem- mas com toda a doçura do mundo, dentro.
perto deserto do Neguev(foto MJF)
“Tu quem és? De onde
vens? Eu sou a Ilana, tu como te chamas? O que
fazes? Eu sou professora. E tu és aluno (a)...”
E eu repetia: “ani
Maria, ani me Portugal, ani shlomi tov, ani
talmida ve at morá...”
Tinha nessa altura um problema com os óculos. Já precisava de óculos para ler e tinha outros para guiar... Nunca
sonhara na vida ter de usar os dois simultaneamente! Pois na escola, punha os dois pares na testa,
ou tinha-os pendurados do pescoço por um fio.
Ora um par nos olhos, ora o outro, conforme tinha de escrever ou de olhar para a ardósia! E toda a gente se ria da minha aventura.
Ora um par nos olhos, ora o outro, conforme tinha de escrever ou de olhar para a ardósia! E toda a gente se ria da minha aventura.
Claro que depois mandei fazer uns óculos de lentes progressivas ao Sr.
Chriqui da Dizengoff, judeu marroquino, o oculista mais divertido que encontrei
na vida!
Para medir o centro óptico mandava-me sair para a rua: “Venha a andar, devagar”... Eu ia. “Mais depressa.” E eu ia mais depressa. Ele apontava o lápis que tinha na mão e “encontrava” o centro. E lá punha uma pinta negra numa lente e depois na outra.
Quando a minha amiga Victoria começou a vir a minha casa era
uma alegria para mim. Podia falar em francês e explicar-lhe tudo o que ia
sentindo, naquela nova terra. Podia saber mais coisas da vida dela. Também podia falar espanhol porque os judeus turcos falam “ladino”, um misto de espanhol e outras
línguas, resquícios dos lugares por onde andaram.
Vista de Istambul
Ela falava-me de Istambul, das saudades que tinha, da tranquilidade daquela vida, das
comidas orientais perfumadas, das primas que lá ficaram e com quem se escrevia
e trocava fotografias que me mostrava. Trazia um saquinho com ela e as
fotografias muito arrumadas lá dentro.
“Elas gostavam de cantar e de dançar. E eu também gostava
muito!... Ainda gosto!”, e dava uns passos de dança na sala e ria agitando os
braços como se tivessem um lencinho. "Agora estamos todas velhas...", e sentou-se ao meu lado.
Mulher pequenina e
muito morena, com olhos de azeitona a brilhar a brilhar, usava uma franja
cortada a direito que a tornava mais nova. A verdade é que a sua juventude de
espírito era enorme e isso transparecia no olhar e nas atitudes! Ela era jovem...
Havia sempre uma
história divertida para contar. Acima de tudo, apreciava a convivência, o bom
viver e os sentimentos profundos.
“Sou uma romântica,
Audrey querida...” E acrescentava: “Olha,
até no casamento. Eu chamo-me Victoria, como a Rainha de Inglaterra, e ele
Albert, o Rei...”
Ficámos amigas. Quantas vezes, estava eu sentada no Café Segrafedo, ao fundo da rehov Dizengoff, e via-a passar, a
correr, de malinha no braço, toda bem vestida, diria mesmo toda aperaltada, a
caminho da pastelaria que está na esquina da rehov Frishman. Muito antes de chegarmos à Kikar Rabin...
Café Segrafedo
interior do Café Segrafedo
Kikar Rabin
Ela nem me via. Sorria, olhando em frente, de cabeça bem erguida,
e apressava o passo. Tinha muitas amigas da sua idade e sei que a esperavam à
hora do chá. Nunca percebi se ela ia atrasada, creio que era a sua maneira de
andar: sempre apressada.
Depois, um dia, o suave Albert morreu, sem uma queixa, sem um
suspiro, bom como era. E Victoria pareceu de repente uma flor murcha. Às vezes,
chorava e lembro-me do lencinho bordado com que enxugava os olhos.
Vim-me embora. Estive anos sem a ver. Quando voltei a Israel, ela veio ter comigo à Dizengoff, agitada e feliz.
Sentámo-nos em campo
neutro, noutro café que não era nem o Segafredo, nem a sua pastelaria. Mostrei fotografias
recentes dos meus filhos, da casa onde voltara a viver na minha terra. Ela olhava-as com atenção. Ela olhava sempre para tudo com atenção. Abriu a mala e voltou a
mostrar-me as velhas fotografias.
Falámos e rimos, como duas tontas, de tudo e de
nada. Porque ela era assim: uma fonte de optimismo e de alegria...
Nesta última carta, disse-me que estava contente porque o Schlomo
-o filho que vive em Londres- a ia visitar em breve. Contou muitas coisas, como
costuma fazer. E escrevia-me, um pouco desolada:
“Sabes, Audrey, minha
querida Maria, hoje percebo que fiz mal em não ter aprendido hebraico. Nesta
casa de repouso, estou desfasada, sinto-me muito só. Todos conversam e se
compreendem e eu fico fora das conversas. Os israelitas são ásperos como o
“sabra”: o figo-bravo com espinhos: bruscos e doces. Tu sabes porque viveste
cá...Todos falam hebraico e eu sei apenas o trivial. Não é que as pessoas sejam
antipáticas, como de início julguei e te disse há tempos. Não sabem que eu não
falo hebraico... Falam inglês também, mas eu só
sei francês e espanhol...”
Junto ao lindo postal, que trazia os votos de Bom Ano Novo, atrasados, mandou-me umas folhas do Paris-Match
onde se falava de um adolescente francês de 15 anos que queria pertencer à Academia Francesa. Justificava o seu
pedido, dizendo: “Eu amo e amei sempre a
literatura! E quero ser imortal! ”
“Mando-te estes
recortes porque sei que tu gostas destas coisas, como eu.”
Proponho que viva até aos 120 anos, como dizem em Israel: “Ad mea esserim!”
Notas:
1. “ O Ladino é uma língua hoje extinta na Península Ibérica.
No passado, era a língua das grandes comunidades judaicas nas cidades de Portugal
e da Espanha. Foi a língua usada pelos judeus desses países: uma mistura de palavras
hebraicas do dia a dia, com a língua da região onde habitavam que tanto podia
ser o castelhano, o português, o árabe e até mesmo o catalão”(wikipedia).
Resta-me dizer que essa língua foi “transportada” para outras
partes da Europa, chegando à Grécia e à Turquia e outros países, quando os Judeus
foram expulsos pela Inquisição. Ou fugiram. Nos séculos XVI, XVII e XVII.
2. "Sabra" ou figo-da-ìndia: "por ser um fruto áspero e duro por fora, mas macio e doce por dentro foi escolhido para designar os judeus nascidos em Israel, em oposição aos judeus da Diáspora" (wikipedia).
2. "Sabra" ou figo-da-ìndia: "por ser um fruto áspero e duro por fora, mas macio e doce por dentro foi escolhido para designar os judeus nascidos em Israel, em oposição aos judeus da Diáspora" (wikipedia).
Adorei esta história verdadeira.
ResponderEliminarJá conheço daqui a sua amiga Victoria e simpatizo com ela. Pessoas fortes que resistiram a uma vida com momentos muito duros, mas que nunca desistiram e souberam caminhar para o futuro, apesar de certamente haver marcas dolorosas do passado. Pessoas admiráveis!
Obrigada por este post. Gostei muito das fotografias!
Um beijinho grande :)
Eu sei que tu entendes tudo isto, com a tua enorme snsibilidade! Boa semaninha...à chuva! espero que sem ciclones! Aqui tem estado terrível!
ResponderEliminarMaria João,
ResponderEliminarGostei destas memórias e destas partilhas.
Beijinho e desejo que venha o bom tempo.
Ana
Madame Victoria tal e qual a conheci e vi! Parabéns!
ResponderEliminarUm retrato perfeito de Madame Victoria, amiga querida. E uma saudade imensa de Tel Aviv, a roer-me. Those were the years...
ResponderEliminarGostei muito, muito humana como sempre e com um fantástico poder de descrição. A Maria João sempre nos compreendeu bem, mesmo sem palavras, antes de ir aprender hebraico. Aqui sempre esteve em casa e pertencia a nós todos.
ResponderEliminarBeijinhos da Gusta e do Inácio
Obrigada, Inácio, a sua opinião conta muito para mim, como sabe! Foi o nosso primeiro amigo em Telavive, o nosso conselheiro, o "batedor" que me permitiu saber mais e mais de uma realidade que muito me interessou - e interessa: Israel!
ResponderEliminarUm beijinho amigo para os dois
Só hoje tive "assento" para vir visitar-te. Essa mulher estupenda, está a viver agora de uma maneira que para mim não queria, em meio de gente estranha, com outro idioma, sem o seu companheiro e o filho longe. Como é muito forte, saberá concerteza adaptar-se, e tirar partido ao que possa. Nem sequer tu estás perto, para levá-la a tomar um cafézinho e escutá.la com carinho. Oxalá que consiga ter alegria mesmo assim, eu não me imagino...
ResponderEliminarMelhor não pensar.
Beijinhos