Mais um
artigo que me entusiasmou -quando não me entusiasmar, quer dizer que "morri"-, no Nouvel Observateur de16 de Outubro (o último
número com este nome, pois o de 23 de Outubro já saiu com o título de “L’Obs”) e que fala
de um livro importante: “Est-ce ainsi que les hommes vivente? Faire face à la
crise et resister”, da psicanalista Claude Halmos.
Porque esta crise atinge-nos mais do que se julga: "afecta até o desejo de viver.”
Procuro pinturas que recordem desgraças semelhantes, ligadas a outras crises e descubro Georges-Frederick Watts e a grande fome da Irlanda!
Porque esta crise atinge-nos mais do que se julga: "afecta até o desejo de viver.”
Georges-Frederick Watts, "Afogada"
E
por que razão me entusiasmei? Porque vi que há pessoas que tentam entender este problema "humano", entender a sério, nas
suas raízes e consequências.
Vi que existe alguém que não desiste nem baixa os braços perante o horror que foi e é este tempo - em que uma crise económica se instalou, seguida de uma crise social, e ganhou espaço como um polvo que tudo prende e atrai nos seus infinitos braços.
Vi que existe alguém que não desiste nem baixa os braços perante o horror que foi e é este tempo - em que uma crise económica se instalou, seguida de uma crise social, e ganhou espaço como um polvo que tudo prende e atrai nos seus infinitos braços.
E
penso no Padre António Vieira e no "Sermão de Santo António aos Peixes", em São Luís do Maranhão, quando diz aos peixes (e o Padre António Vieira aos homens) que o animal pior de todos os que há na criação é o “polvo” (*)…
Metaforicamente, claro, o polvo hoje é este capitalismo financeiro, a "hipocrisia tão santa" deste sistema de viver que tudo “engoliu” e triturou com os seus tentáculos! Lançando à sua volta uma mancha negra de tinta, enganadora e traiçoeira - como a do polvo de que fala António Vieira... Sem esquecer todo os outros "peixes" agressivos!
Santo António a pregar aos peixes, (Guimarães)
o Santo António pobre, das notas de 20 escudos...
Pde. António Vieira, retrato anónimo
Metaforicamente, claro, o polvo hoje é este capitalismo financeiro, a "hipocrisia tão santa" deste sistema de viver que tudo “engoliu” e triturou com os seus tentáculos! Lançando à sua volta uma mancha negra de tinta, enganadora e traiçoeira - como a do polvo de que fala António Vieira... Sem esquecer todo os outros "peixes" agressivos!
G.F.Watts, "A Morte e a Inocência"
De que fala, pois, o livro de Claude Halmos? Explica o que todos sabemos: como a crise económica de hoje não poupa ninguém. E como isso atinge profundamente o nosso
espírito e a nossa vida familiar e social.
Diz Claude Halmos (**): “Perder o trabalho, recear perdê-lo,
viver na incerteza, no empobrecimento crescente, ou mesmo na pobreza, estar
convencido de que o mundo de amanhã vai ser ainda mais difícil para os filhos: estas
provações atingem-nos para além de um simples stress.”
Todos o sabemos, é claro. Mas quem o diz? Bem, Claude
Halmos di-lo: “A crise económica criou uma outra crise, uma
crise psicológica que rói, corrói, despedaça os corações, os corpos e as
cabeças. Atinge as pessoas no seio da vida social e do equilíbrio familiar,
afecta até o desejo de viver.”
Desse sofrimento real e dessa realidade social, atingidos no seu âmago, pouca gente fala claramente. A classe política, órgãos de informação, psicólogos quem fala?, interroga-se a escritora.
Ora o silêncio tem graves consequências: condena os atingidos a julgarem-se sozinhos a enfrentar os seus sofrimentos e a ter vergonha deles. Claude Halmos quebra, pois, o silêncio e lança um grito de alarme, como já o fez noutros campos.
Ora o silêncio tem graves consequências: condena os atingidos a julgarem-se sozinhos a enfrentar os seus sofrimentos e a ter vergonha deles. Claude Halmos quebra, pois, o silêncio e lança um grito de alarme, como já o fez noutros campos.
Dizer a essas pessoas “se não consegues suportar o
que suportas, não é culpa tua, nem é uma tua fragilidade. Não o suportas porque é uma coisa invivível" é dizer-lhes que não devem desistir de lutar.
Que devem ir até ao fim, que devem bater-se. Para
sobreviverem! Para comunicarem com os outros. Para resistirem. Saberem que não são eles que estão doentes, mas sim que o mundo em que
vivem é anormal.
As
vítimas da crise – a quem ela chama “os fracassados da crise”- têm necessidade de
tratamento, de ajuda, porque, atingidos por uma vaga destructiva, “o traumatismo que sofreram é equivalente ao de uma guerra,
uma morte, um acidente, uma ruptura.”
Hokusai, a Grande Vaga
Importante
sem dúvida este trabalho de Halmos, porque nos faz perceber que esta crise
económica engendrou uma crise psicológica tremenda!
Porque é bom saber e afirmar forte que a culpa não é dos que foram apanhados pelos tentáculos do polvo, mas do próprio polvo!
Porque é bom saber e afirmar forte que a culpa não é dos que foram apanhados pelos tentáculos do polvo, mas do próprio polvo!
Esses
desgraçados que se culpabilizam, se auto-acusam, se desqualificam,
se “menorizam”, caem em depressão e atentam contra a vida como se fossem eles os únicos
e os primeiros responsáveis do seu drama e da situação para que "arrastaram" a própria família!
E
essas pessoas –os tais fracassados da crise- estão em perigo. “Por muito forte que um ser humano seja, não pode suportar o insuportável”, diz Claude Halmos.
E não se
trata da sua incapacidade pessoal ou da sua história de falhanço pessoal, mas
de uma realidade social exterior.
Para a autora, é fundamental falar do assunto, e ajudar os que estão em perigo. Falar para resistir, falar para trocar ideias com os
outros, falar para partilhar os sofrimentos, e para –finalmente!- ver esses
sofrimentos e esses medos reconhecidos pela sociedade.
Ufa! Fiquei aliviada! Há ainda alguém que pensa nos outros! Posso pôr, para terminar, o quadro de Watts que fala da Esperança, que vi na maravilhosa Tate Gallery, em Londres!
G.F.Watts, "Hope" (1886)
* * *
(*) Sobre o polvo, diz o Pde. António Vieira, in "Sermão aos Peixes", cap. V:
“(...) com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar. (…)
(**) Quem é Claude Halmos?
(*) Sobre o polvo, diz o Pde. António Vieira, in "Sermão aos Peixes", cap. V:
“(...) com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar. (…)
Se
está nos limos, faz-se vestir ou pintar das mesmas cores - de todas aquelas
verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se
está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da
mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição,
vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu
próprio engano, lança-lhe os braços de repente e fá-lo prisioneiro.”
Excelente texto como sempre
ResponderEliminarNa verdade a canalha anda à solta
Excelente texto, como diz o Mar Arável.
ResponderEliminarEsta crise é realmente motivo para desânimo e o pior de tudo é a falta de perspectivas, a falta de esperança, que, a cada dia que passa, se acentua.
Enfim, vamos ver o que o futuro nos reserva!
Um beijinho grande e um bom domingo:)
O padre António Vieira é uma velha paixão. Já não lia este sermão há muito tempo.
ResponderEliminarObrigada pela forma como o traz.
Beijinho. :))