-
Estou aborrecido!, gemeu o Ratinho. Só chuva, só chuva. Não se sai de casa há
dias!
O
Ouricinho saía, a apoiá-lo. A Gatinha japonesa, essa, não disse nada. É uma menina
introvertida, contemplativa e é capaz de estar horas sem falar. Olhava pela janela, isolada no seu canto.
Achei que devia fazer um protesto:
Achei que devia fazer um protesto:
-
Ora, ora! Está-se tão bem em casa quando chove! E o Outono é tão bonit Já
tivemos tanto sol! E nunca mais chegava o Outono!
-
Meu Deus, que horror, como é possível não gostar do sol? Não sentir a falta dele? Gostar só da chuva!
Era
o Ratinho.
-
Eu gosto do sol – defendi-me- mas sei apreciar a calma que têm os dias de
chuva.
-
Calma?! Oh, sim, a calma. E para que queres a calma? Virá o tempo da calma total…
E, num aparte:
- Longe, espera-se!
E, num aparte:
- Longe, espera-se!
-
Ratinho, não digas isso. Há beleza nestes dias. Vê as árvores lá fora. A cor
mudou, algumas folhas caíram, esperam o Inverno. Precisam de descansar...
Árvores, de Syuji Hirai
-
Hihihi, riu-se o Ratinho. Pois é, esperam o Inverno. Sabes o que é o Inverno? É
o fim. É o frio. É o gelo… É a morte.
E entristeceu
de repente o meu amigo.
-
És tão novo! Por que pensas assim? A morte?! O Inverno é o tempo da natureza repousar…
Depois…
-
Hahaha! Agora era o Ouricinho.
- Repousar, hibernar, as folhas mortas, o renascer na Primavera. Tanto bla-bla… E quem te diz que lá chegas?
- Repousar, hibernar, as folhas mortas, o renascer na Primavera. Tanto bla-bla… E quem te diz que lá chegas?
folhas mortas, ontem em Cascais (MJF)
Fiquei
admirada com o desabafo. O Ouricinho também? Uma criança! O Ratinho, contente com ajuda,
continuou:
-
Sim, é isso! Tanto passarinho que morre gelado, que não consegue aquecer-se. E
o Outono? Tanto poeta que morre no Outono…
Era tão verdade o que ele dizia. Ainda há poucos dias eu tinha estado a
pensar neste Outono assassino… Sangrento! Chamei-lhe assim mesmo, na minha raiva.
-
Sim, reconheço que têm razão os dois. Este Outono tem sido uma estação terrível, assassina…
Árvores do Outono, no Japão, de Yoshiyuki Sakano
Ficaram
a olhar-me, surpreendidos, quase assustados.
- Outono assassino? Achas?, perguntou o Ratinho, divertido.
Não respondi. Estava a lembrar os nomes de escritores, matemáticos, pintores que morreram nas últimas semanas ou meses.
Não respondi. Estava a lembrar os nomes de escritores, matemáticos, pintores que morreram nas últimas semanas ou meses.
-
Até morreu o Manitas de Plata…
O
Ouricinho continuou:
-
Gostava dele. Tocava bem. Dizem que tinha jeito para fazer tudo, com as mãos. Até guitarra! Por isso lhe chamaram desde pequenino o “manitas de plata”!
Outros outonos, outros poetas, outras mortes. Como se, para essas almas delicadas, chegar ao Outono bastasse, e se arrastassem, de forças perdidas, ao longo dos verões quentes. À espera da tranquilidade, para morrerem em paz. Quem sabe? Podem-se pensar tantas coisas na nossa vida!
Composição de Outono, de Etsuko
Outros outonos, outros poetas, outras mortes. Como se, para essas almas delicadas, chegar ao Outono bastasse, e se arrastassem, de forças perdidas, ao longo dos verões quentes. À espera da tranquilidade, para morrerem em paz. Quem sabe? Podem-se pensar tantas coisas na nossa vida!
“A morte surpreende-nos sempre mas, no fim e
ao cabo, é natural.”, pensei.
- Estás muito calada, disse a gatinha japonesa. Pensas nos mortos?
- Estás muito calada, disse a gatinha japonesa. Pensas nos mortos?
E afastou-se a olhar as vidraças, onde corriam fiozinhos de chuva em estrias brilhantes.
Murmurou:
Murmurou:
Estava sentada, perto da janela, e cantarolava o que me pareceu serem uns versos.
“Manhã de Outono
No espelho
O rosto do meu pai.”
-
O quê, gatinha?
"Como
sabia ela que eu pensava no meu pai?"
- É um haïku, de Murakami Kijo (*)…
E continuou, sem me responder, a olhar para fora. O que veria ela?
E continuou, sem me responder, a olhar para fora. O que veria ela?
“A libelinha vermelha
Abre
Olhou-me, com um
sorriso triste:
- Este é de Kaya
Shirao… Gosto muito dele. Foi contemporâneo de Buson.
Parecia-me
uma história estranha a deste dia. Ela continuava a dizer poesia e eu de boca
aberta, a ouvir. Eram bem bonitos aqueles versos. Sabia como eram delicados e breves
aqueles poemas japoneses…
Outono, de Etsuko Nagamatsu
E a vozinha dela cantava:
“Sol poente de Outono
A solidão
Também é feliz”
Eu estava espantada: do aborrecimento do Ratinho por causa da chuva, tínhamos passado para os mortos do Outono. E para uma lição de poesia japonesa!
José FreitasCruz, Paisagem japonesa
E eles...? Dizia
eu que "eles" estavam aborrecidos? Não. Já tinham inventado uma nova brincadeira.
Tinham-se encostado à janela a contar os carros lá em baixo. E tinham começado uma discussão com os outros todos que tinham chegado. Até a gatinha japonesa não tinha resistido!
A
chuva parara e um raiozinho muito fino batia no parapeito. O céu cinzento fora
atravessado por um raio de sol.Talvez aparecesse um arco-íris...
Luz de Outono, no Japão, Syuji Hirai
Suspirei,
feliz:
-
Ah, a maravilhosa luz do Outono!
Mas
ninguém me ouvia.* * * (*) NOTA:
O poeta Kaya Shirao (1738-1791) foi contemporâneo de Yosa Buson, era um grande viajante.
Murakami Kijo foi aluno de Masaoka Shiki.
Masaoka Shiki
Shiki faz parte dos quatro poetas japoneses os mais considerados poetas clássicos que escreveram "haikus", o poema curto japonês. São eles:
Matsuo Basho (1644-1694)
Kobayashi Issa
(1763-1828
Masaoka Shiki (1867-
1902)
Como eu compreendo este Ratinho: também me faz falta o sol. Mas também sei apreciar um dia de chuva e até já gosto mais do Outono! Só não gosto do frio...
ResponderEliminarEstes amiguitos estão cada vez mais sábios e eu gosto cada vez mais deles!
Tem aí muitas visitas...o que vale é que cabem todas no mesmo cesto, senão estava bem arranjada!
Já sabe: ADORO estas histórias, este Ratinho Poeta e este Ouricinho traquina, cheio de vida!
As fotos com as cores do Outono são lindíssimas! E gostei dos Haikai!
Um post que me deixou encantada:)
Um beijinho grande :)
Como compreendo os nossos amiguinhos, a única coisa que gosto no outono, é do colorido das árvores. Tudo o resto: frio, chuva, vento... dispensava.
ResponderEliminarMas sabe bem estar no aconchego do lar e ouvir a chuva cair...
Viva o sol e os dias alegres!
Um beijinho.:))
Um lindo post, para conjurar o aborrecimento não há nada como a imaginação. E o conhecimento de haikus que ajudem a enriquecer os dias. Eu gosto de todas as estações, todas enriquecem os anos, que senão se tornariam monótonos.
ResponderEliminarBom finde, um grande beijo