Penso
que as grandes injustiças não devem ser esquecidas. Devem mesmo ser referidas -quando temos conhecimento
delas, claro. Muito menos ainda devemos esquecer as revelam um cunho racista.
O racismo continua a ser possível e muito “seguido”,
A nossa obrigação moral (apenas moral pois ninguém nos pode obrigar a nada,
vivemos em democracia) é ‘revelar’ o que sabemos para que os outros -que estão
interessados em saber a verdade- a saibam também.
Agora
que tanto se tem falado do Holocausto, da libertação dos campos e dos judeus perseguidos, apenas porque ‘judeus’,
lembro o “Affaire Dreyfus” que dividiu a França, nos finais do século
XIX.
Descobri
na biblioteca um livro muito gasto pelos anos e comecei a colá-lo e a “restaurá-lo”
para não se estragar mais. Chama-se “Cinq
années de ma vie” (1894-1899) e é o “diário” escrito pelo Capitão Dreyfus.
O
livrinho veio de casa do avô do Manuel, o militar republicano Álvaro Poppe que
participou no 5 de Outubro 1910. Mas o livro pertencia ao seu amigo Afonso Costa,
também republicano mas civil. De facto, é a assinatura dele que está na capa do
livro (ed. Bibliothèque-Charpentier,
Paris, 1901), com a data de 30 de Abril 1903.
Quem
sabe se comprado em Paris quando estavam juntos no exílio? Quantas histórias contava o avô Poppe e quantas horas passei (passámos) a ouvi-lo. Um dia estive uma tarde inteira a falar com ele sobre os impressionistas. Gostava muito de Van Gogh.
O livro deve ter sido emprestado e o avô nunca o devolveu. Acontece. E ainda bem que aconteceu pois assim veio ter às minhas mãos.
O livro deve ter sido emprestado e o avô nunca o devolveu. Acontece. E ainda bem que aconteceu pois assim veio ter às minhas mãos.
Na altura em que redescobri o livro (a vida é feita de tantas coincidências) encontrei
uma referência ao Affaire Dreyfus, no
suplemento “Culture et Idées”, do Monde (de 5 de Julho 2014) - e fiquei mais interessada ainda.
Falavam de um filme mais sobre "o caso" Dreyfus. De facto, trazia uma entrevista com o realizador Roman Polansky -judeu de origem polaca- e com o escritor Robert Harris.
Assim fiquei a saber que saiu outro livro sobre o ‘caso’: o de Robert Harris, intitulado An Officer and a Spy (2014), no qual se inspirou Polanski para o filme que sairá em 2016.
Falavam de um filme mais sobre "o caso" Dreyfus. De facto, trazia uma entrevista com o realizador Roman Polansky -judeu de origem polaca- e com o escritor Robert Harris.
Assim fiquei a saber que saiu outro livro sobre o ‘caso’: o de Robert Harris, intitulado An Officer and a Spy (2014), no qual se inspirou Polanski para o filme que sairá em 2016.
Em português, o título é Oficial e Espião (edições Presença) e, em francês, apenas “D” (ed. Plon).
Muitos filmes se fizeram sobre o caso Dreyfus: desde o de Meliès, ou o de José Ferrer, "I accuse!" (Acuso!), em 1958.
Ou, mais recentemente, o de Yves Boisset, realizado em 1995.
Muitos filmes se fizeram sobre o caso Dreyfus: desde o de Meliès, ou o de José Ferrer, "I accuse!" (Acuso!), em 1958.
Ou, mais recentemente, o de Yves Boisset, realizado em 1995.
Este
livro tem uma particularidade: a história é “vista” pelos olhos de George
Picquart (1854-1914), que foi professor na escola militar de Dreyfus e um dos
seus defensores mais convictos.
E que contribuiu sem dúvida nenhuma para provar a sua inocência - e a culpabilidade de outro oficial, o Comandante Ferdinad Esterhazy, militar de alta patente.
E que contribuiu sem dúvida nenhuma para provar a sua inocência - e a culpabilidade de outro oficial, o Comandante Ferdinad Esterhazy, militar de alta patente.
Como
num inquérito policial, Picquart- que era oficial do Bureau de Renseignement,
os serviços de espionagem franceses- vai
seguir uma pista original: um “pequeno papel azul”, um apontamento, dirigido a Esterhazy pelo
adido militar alemão, cuja letra ele descobre ser a mesma do documento que faz
parte dos elementos-chave da acusação no processo contra Dreyfus.
Este papel azul é publicado em 1896 no jornal Le Matin.
Este papel azul é publicado em 1896 no jornal Le Matin.
Por quê escolher a figura de Picquart? Diz
Polansky:
“Dreyfus não era especialmente interessante nem simpático como herói e, acima de tudo, tinha passado os 5 anos fundamentais do seu processo numa ilha deserta - acorrentado à cama, na maioria das noites.”
“Dreyfus não era especialmente interessante nem simpático como herói e, acima de tudo, tinha passado os 5 anos fundamentais do seu processo numa ilha deserta - acorrentado à cama, na maioria das noites.”
Por isso foi necessário descobrir outro “herói”. É, então, que lê o livro de Harris e decide
adaptá-lo. E será Picquart a personagem central.
Continua:
“No livro de Harris está toda a estrutura do
filme. Através dele, o enredo passa a ter o aspecto de um filme de suspense, de
um thriller, o que em Hollywood se chama ‘the Arch’.”
A
figura de Picquart vai funcionar como um ‘whistleblower’
– o que “lança o alerta”. É
ele quem despoleta a acção. Harris refere a cena da humilhação de Dreyfus, nos Invalides, quando lhe arrancam as divisas e lhe quebram a espada:
“Essa cena (no dia 5 de Janeiro de 1895)
mudou o curso da História mundial. É o momento em que Théodore Herzl, fundador
do sionismo político, e que assistia no meio da multidão àquela cena, pensa que
o povo judeu devia ter o seu Estado. Essa destituição pública criou uma mudança
radical.”
Posto
isto, quem foi Alfred Dreyfus? Um homem, um oficial francês que, por ser judeu, se viu enredado
numa trama de espionagem, sendo acusado, preso, e doze anos depois reabilitado com todas as honras…
Leio
na wikipedia: “Em Outubro de 1877, com 18 anos, entra na prestigiada Ecole Polytecnique, em Paris. Ali estuda,
de 1877 a 1880, e termina o curso. De 1880 a 1882 continua a estudar, agora na Escola
de Artilharia Militar de Fontainebleau.
École Polytecnique
No
exame final, em 1892, quando “os amigos esperavam
que tivesse um bom resultado”, um dos
membros do júri, o General Bonnefond, deu-lhe uma má nota em “cote
d’amour” (intraduzível: amor pela
pátria?), justificando que “os judeus não são desejados” naquela
Escola -nota má essa que, evidentemente, lhe baixou a média final.
A
carreira que se anunciava perfeita, é minada
à partida.
“Dreyfus
apresenta um protesto, o Director da escola, o General Lebelin de Dionne,
lamenta o que aconteceu, mas expressa a sua impossibilidade de alterar o
resultado.
Mesmo
assim, Dreyfus é chamado para o Quartel General às ordens do General Staff,
onde é o único oficial judeu."
O tempo corre mas, em
1894, Dreyfus é acusado de traição: “teria”, alegadamente, confiado
segredos militares franceses à Embaixada Alemã, em Paris. É condenado a
prisão perpétua e enviado para a colónia penal da Ilha do Diabo, na Guiana Francesa.
a Ilha do Diabo
Em
1896, começam as dúvidas sobre a veracidade dos factos de que o acusam. E,
depois de uma investigação aprofundada, a situação revira: o Comandante Ferdinand Walsin Esterhazy é indiciado.
Teria sido ele o “traidor” que confiara os segredos aos alemães.
Walsin Esterhazy
O Exército acusa agora Dreyfus de outros crimes, baseado em documentos falsos.
George Picquart que nunca acreditara na sua culpabilidade vai, de dúvida em dúvida, buscando testemunhos novos, informações e cria um dossier sobre o assunto.
George Picquart que nunca acreditara na sua culpabilidade vai, de dúvida em dúvida, buscando testemunhos novos, informações e cria um dossier sobre o assunto.
George Picquart
Em
Janeiro de 1898, sai, no jornal L’Aurore, uma “Carta Aberta ao Presidente da República”,
de Emile Zola, intitulada “J’ accuse”.
Chocado
com as campanhas nacionalistas e anti-semitas que de ano para ano iam
aumentando, e convencido da inocência de Dreyfus, Zola entra na luta que os dreyfusards tinham começado, para conseguir
a reabertura do processo.
Zola, pintado por Edouard Manet (1868)
E
os ânimos inflamam-se: o governo é pressionado para reabrir o caso. E Dreyfus
vem da Guiana para ser sujeito a um novo julgamento.
Dreyfus
A
reabilitação far-se-á dois anos mais tarde. Depois da amnistia votada na
Câmara, a Cour de Cassation anula o
julgamento de Rennes.
Em
21 Julho de 1906, é reintegrado, como major, no Exército. Recebe a Légion d’Honneur.
A
honra -de militar e de homem- é lavada. Alfred Dreyfus não atraiçoou a sua pátria. Em
1914, combaterá, na 1ª Guerra, e é respeitadíssimo.
Mas quem pôde tirar, alguma vez, a vergonha e a dor sofridas?
Mas quem pôde tirar, alguma vez, a vergonha e a dor sofridas?
Pergunto:
e se Emile Zola não tivesse escrito “J’accuse!” e não se tivesse preocupado com
esta injustiça?
Um post muito interessante!
ResponderEliminarGostei de ler:)
Um beijinho grande e desejo-lhe um bom fim-de-semana:)
O artigo de Zola foi um autêntico terramoto que converteu o caso Dreyfus numa confrontação política e social que fez história. O escritor morreu afinal em extranhas circunstâncias e tudo parece indicar que foi assassinado por um dia ter escrito "J´accuse:::". É um tema apaixonante e mesquinho ao mesmo tempo, muito mesquinho.
ResponderEliminarPois foi. Fundamental para a resolução do caso. Sei que possivelmente morreu assassinado: enfim, sufocado pelo fumo da lareira estranhamente "limpa" pouco tempo antes. A 'hombridade' e dignidade dos homens paga-se... Os outros homens não perdoam... Sim, mesquinhez e ódio aos judeus...
EliminarMas que interessante "reportagem" sobre o caso Dreyfus!
ResponderEliminarGostei muito...
Mais uma tremenda injustiça que se cometeu! Valeu-lhe Zola...
Beijinhos.:))
É verdadde, Cláudia! É interessantíssimo e terrível este caso. Pobre Dreyfuss ali esteve na Ilha do Diabo, prisioneiro, acorrentado à cama de noite. E inocente! Um beijo
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