segunda-feira, 11 de abril de 2016

J. D. Salinger, uma biografia


O meu sonho era um livro que não se conseguisse largar e que, quando o acabávamos de ler, queríamos que o seu autor fosse um amigo, um super-companheiro e que pudéssemos telefonar-lhe sempre que tivéssemos vontade…”

Isto dizia o seu herói, o jovem estudante Holden Caulfield, no romance “A catcher in the rye”.

Escritor de histórias imaginativas, loucas e negras? Talvez. E gosto de voltar a ele de vez em quando. Porque me rejuvenesce! Sabe-se lá com quanto 'sacrifício" e sofrimento as escreveu!

A biografia e o documentário completíssimos (segundo leio num artigo) de David Shields e Shane Salerno (intitulada "Salinger", 2013) abriram muito o conhecimento sobre a ‘reclusão’ voluntária do escritor: como, por exemplo, a 'passagem' pela IIª Guerra, que o deixou traumatizado.

As únicas palavras  públicas, durante mais de 45 anos, foram: “Vivo no mundo mas não faço parte dele.” 


A biografia abre com a IIª Guerra que o marcou profundamente, e “o destruiu como ser humano mas criou um escritor” . 
Muitos dos entrevistados pelos biógrafos foram os seus colegas da tropa que, até à sua morte, nunca falaram de nada, por respeito por ele.
 "É a guerra, sem dúvida, a chave desse isolamento".

De facto, Salinger trabalhou na contra-espionagem e sabia exactamente o que se passava. "Se teve mais liberdade de movimento, por outro lado teve o conhecimento completo dos massacres diários. Um modo de fugir a esse horror foi escrever, mesmo nas trincheiras, com sua máquina", escreveu Ignacio Latorre Zacarés (*) . 

J.D. Salinger desembarcou no dia 6 de Junho de 1944, na praia da Normandia, com o seu regimento do Utah.
Nos primeiros dias, dos 3.100 soldados do batalhão morreram 2.500. 
Meses depois, na batalha de 6 de Novembro de 1944, na fronteira germano-belga, em Bulge, os mortos foram calculados numa percentagem de 200% dos soldados da 4ª divisão, que as bombas faziam saltar pelo ar, aos bocadinhos. Ou o massacre de Malmedy em que

Também a experiência da libertação dos campos de concentração – a que assistiu- lhe deixou profundas marcas. Até porque Salinger era de origem judaica por parte do pai.

Salinger acreditava numa guerra ‘romântica’, de justiça e de bem. A realidade era bem diferente. Chocante. Viu o que nunca sonhara ver. Nos finais da guerra, entra voluntariamente num hospital de Nuremberg para ser tratado dos traumas psicológicos. 

O resto dos 65 anos que ainda viveu levou-os a tratar os restos desse trauma. Encontrava-se muitas vezes com os soldados do seu batalhão, que sobreviveram.
com a filha, Margaret Salinger

Teria ele podido continuar a escrever mais, ou já estava tudo dito? Seria medo de se repetir? Possivelmente já estava tudo dito. 
A vida afectiva foi complicada. Nada é simples quando a ferida que se tem dentro é tão grande. 


Apaixona-se muito novo por Oona O'Neill, que tem 16-17 anos.  Amor (incompreendido?) que pouco dura. Oona casa, um ano depois, com Charlie Chaplin que tem 53.

Salinger: dois ou três casamentos, vários amores, uma filha e um filho. Casa jovem, no final da guerra, com uma jovem franco-alemã. Divorcia-se quando descobre que ela fora espia alemã.


Casa com Claire Douglas, em 1955. A filha Margaret nasce nesse ano e Mathew em 1960. Margaret escreverá um livro sobre as sua relação forte mas difícil com o pai: "Dream Catcher" (Apanhador de Sonho?).
Claire Douglas
Margaret Salinger


Outras relações sempre complexas.  Entre 1972-73, vive com Joyce Maynard que tinha 18. Um ano depois, ela deixa-o, não queria viver assim, reclusa numa quinta. 
Joyce Maynard 1973



Desistiu – desiludiu-se? - de escrever, muito cedo. Ou talvez de publicar. Esperemos que existam as tais histórias inéditas - de que tanto se falou há dois ou três anos!
numa festa, em Cornish

Isolou-se, fechou-se numa quinta, em Cornish, no New Hampshire, sem receber ninguém. 


Áspero, agreste com todos, endureceu. No fundo, a verdade é que  as histórias dele apontavam para essa desilusão, para esse absurdo, esse sem-sentido de viver. 


Teve um sucesso espantoso e vendeu milhões de exemplares do livro “Catcher in the rye” -que demorou 10 anos a escrever e de que dizia ter-se arrependido de o escrever, porque lhe pesava esse sucesso. Começara a escrevê-lo ainda na Guerra.
“Não suportava o público, nem as pessoas à sua volta. Durante 45 deixou de falar com a imprensa, leitores, a não ser com algumas poucas pessoas.
A sua vida transformou-se numa fuga obsessiva a esse mundo. Os próprios habitantes do lugar respeitavam a sua vontade de desaparecer e não comunicar.” (*)
E, no entanto, vejo desfilar as personagens que nos “prendiam” pelas suas hesitações, escolhas difíceis, solidão, medos, angústias. O ser humano é isto tudo e, ao falar do Homem, tem de se falar disto. E ele falou.
Vejo os vestidos da irmã de Buddy, Boo-Boo. Ele, Buddy, era o herói do livro “Carpinteiros ergam alto o pau de bandeira” (1955, no New Yorker) E “Seymour –na Introduction” (1959). Mais tarde publicados os dois num só volume, em 1963. Considerado nesse ano a melhor novela do ano. A personagem principal, talvez o auto-retrato do escritor. Mas Seymour era também o irmão que Buddy adorava. 

Seymour, o adorado irmão Seymour, é, porém, um angustiado. Ele que fora um menino prodígio, actor famoso no programa da rádio em que participava toda a família Brass, é um super-sensível, um inquieto falador a quem Buddy chamava de ‘falador abusivo’. Era o contador de histórias sem fim.
com a irmã, Doris

Um dia, Boo-Boo escreve a bâton vermelho, no espelho da casa de banho, um recado para os irmãos que viriam a seguir arranjar-se: carpinteiros ergam alto o pau de bandeira! E é esse o título do livro.



As brincadeiras, os desgostos, as pequenas e grandes lutas. A vida que corre, ora lenta, ora frenética, assustadora. Os amigos dos bons tempos.
com  Emily Maxwell, mulher de William Maxwell, seus amigos



E Seymour (ele próprio?) é um ansioso que, na manhã do casamento, desaparece deixando a noiva à porta da igreja. Depois volta e ‘rapta-a’! Sentia-se tão feliz, tão feliz que não era capaz de aguentar a cerimónia do casamento.
Reencontramo-lo mais tarde –ele ou um outro!- no conto Um dia perfeito para o peixe-banana.
Um jovem casal passa a lua de mel numa praia da Flórida, num hotel sobre o mar. Um dia de manhã ele vai nadar. Encontra a sua pequenita amiga que lhe fala dos ciúmes que tem de outra pequenita. Ele vai com ela até ao mar e conta-lhe a história do peixe-banana. Ela ri-se. Passara-lhe a tristeza.

Volta e senta-se na cadeira de lona, a pensar. Quando regressa ao quarto do hotel, dá um tiro na cabeça. Talvez porque tinha medo que a realidade não chegasse ao nível dos seus sonhos… Mas se Seymour era o próprio salinger, como refere, então há muitas razões para ter disparado aquele revólver!
Massacre de Malmedy (1945)

Talvez tenha sido esse sentimento que parou o fluxo das suas palavras num dia do ano 1953.
Em 1948, saíra o conto A Perfect Day for Banana Fish, uma curta e trágica história.
Os outros seus contos das Nine Stories serão igualmente publicados em The New Yorker.
Saem ainda Fanny e Zoey e não publica mais nada. Excepto uma longa novela, intitulada Hapworth, 16, 1924, que sai no The New Yorker.
Histórias de dor, do sem-sentido da vida, já que a morte existe e o sofrimento é uma constante. Das expectativas frustradas. Das esperanças e dos espantos da vida. Do absurdo, enfim.

Pessimista? Não mais do que qualquer um de nós, hoje. No seu tempo eram também tempos difíceis… E poucos tiveram a experiência marcante que viveu durante a guerra.

A verdade é que para mim ele seria o tal escritor de que fala Caulfield: "um amigo, um super-companheiro e que pudéssemos telefonar-lhe sempre que tivéssemos vontade…”

Teria muitas coisas para lhe perguntar! Nada se sabe dele de concreto na realidade. Fala-se, inventam-se histórias sobre a vida dele.

Lamento que, ao contrário do que o seu editor tinha prometido, nada tenha saído ainda de Salinger : obras inéditas cuja publicação era prevista entre 2015 e 2020.

E chego ao fim... Agradeço as que me leiam estas repetições sobre os 'meus' escritores!
Salinger merece umas palavras sérias. Ele que foi, como escreveu o New York Times:

 "O rapaz que se tornou um rebelde, o rebelde que se tornou um soldado, o soldado que se tornou um ícone, o ícone que desapareceu.

Sobre a biografia "Salinger"... decidi não a comprar! Porque não me interessa um livro publicado para ganhar dinheiro, espiolhando, à cata de "escândalos", uma vida que se quis 'reclusa'. 
À custa da curiosidade sobre uma personalidade misteriosa que assim o quis ser. 
Respeito a vontade de Salinger: a sua vida não devia ser pública. Por isso não vou ler. Para mim, como dizia e muito bem, Marcel Proust, no "Contre Sainte-Beuve", "os escritores são aquilo que escreveram, que quiseram deixar de si uma imagem" e saber sobre a sua vida não adianta muito.

Se alguma novela aparecer, fico contente. Porque isso é outra coisa! É a continuação da sua criação de gentes maravilhosas e aventuras de gente invulgar e normal ao mesmo tempo! 

(*)Artigo de Ignacio Latorre Zacarés
J.D. Salinger com a última mulher


NOTA: J.D. Salinger (Jerome David Salinger) nasceu no dia 1 de Janeiro de 1919, em Manhattan. Era judeu, filho do rabino Sol Salinger de origem polaca e a mãe era de origem escocesa e irlandesa. Morreu em Janeiro de 2010, em Cornish.

(**) Documentário:


4 comentários:

  1. Muito muito interessante!
    Gosto imenso de ler estas suas "biografias" sobre os "seus" escritores e músicos. Não tinha ideia que J.D.Salinger tinha morrido há tão pouco tempo. Uma vida longa apesar de tanto sofrimento.
    Viver não é fácil, a vida finta-nos muita vez.

    Um beijinho grande:) e espero que o dia tenha corrido MUITO BEM. Que tenha sido um dia FELIZ!

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    1. Isabel querida, tens razão, a vida ?finta-nos'! Gostava que saissem mais histórias dele. Veremos se saem ou não. Correu bem. bjs

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  2. Quis reler algumas coisas do livro e não o encontro...
    Ao contrário de ti, interessa-me muito o lado humano dos escritores e mais de Salinger, que é tão complexo. As memórias da sua filha Margaret dão-nos a imagem duma pessoa extranha, que podia ser "cruel e miserável". As biografias edulcoradas não me interessam, mas sim as que nos desvelam a verdadeira dimensão humana das grandes figuras. Como diz Slawenski (ainda a propósito dele e da sua intensíssima vida), a literatura não deixa de ser un acto de comunicação, uma forma de viver no mundo.
    Que tal na Guarda? beijos

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    1. Querida Maria, eu sei. Neste momento estou farta de ser desiludida. Talvez daqui a um tempo volte a interessar-me saber o lado "real" (?) do Salinger... Guarda sempre magnífica...

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