"Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
sou labirinto, sou licorne e acanto
Sei a distância, compreendo o Ar;
sou chuva de oiro e sou espasmo de luz;
sou taça de cristal lançada ao mar,
diadema e timbre, elmo real e cruz."
(Partida, em Dispersão)
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
sou labirinto, sou licorne e acanto
Sei a distância, compreendo o Ar;
sou chuva de oiro e sou espasmo de luz;
sou taça de cristal lançada ao mar,
diadema e timbre, elmo real e cruz."
(Partida, em Dispersão)
"Quando
eu morrer batam em latas,
Rompam
aos saltos e aos pinotes,
Façam
estalar o ar chicotes,
Chamem
palhaços e acrobatas!
"Que
o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado
à andalusa…
A
um morto nada se recusa,
Eu
quero por força ir de burro.”
Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa em 19 de Maio de 1890 e morreu em 26 de Abril de 1916, em Paris, suicidando-se com estricnina.
O Poeta não suportava a ideia de abandonar o seu amado Paris, e o pai ameaçara cortar-lhe a mesada.
Escreve a Pessoa cartas cheias de angústia. Em 31 de Março de 1916, despede-se dele numa carta e anuncia-lhe que se vai matar:
"Quando receberes esta carta já eu terei deixado de pertencer ao número dos vivos...Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil anos me separam de amanhã. Só me espanta, em face de mim, a tranquilidade das coisas (...)".
O que podia fazer o seu 'colega' do Orpheu, o amigo do coração, Fernando Pessoa - amigo que o considerava um poeta muito superior a si próprio?
Escreve a Pessoa cartas cheias de angústia. Em 31 de Março de 1916, despede-se dele numa carta e anuncia-lhe que se vai matar:
"Quando receberes esta carta já eu terei deixado de pertencer ao número dos vivos...Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil anos me separam de amanhã. Só me espanta, em face de mim, a tranquilidade das coisas (...)".
Chagall, O poeta adormecido
O que podia fazer o seu 'colega' do Orpheu, o amigo do coração, Fernando Pessoa - amigo que o considerava um poeta muito superior a si próprio?
Era demasiado tarde para o evitar: quando a carta chega a Lisboa, Sá-Carneiro tinha morrido. E talvez Pessoa não tenha levado a sério este pedido de socorro, ou, preso por outros assuntos e problemas mentais seus, como referirá depois, adia a resposta. Escreve-lhe no dia 26 exactamente no dia em que Sá-Carneiro se suicida. Falava-lhe de umas traduções que tivera de acabar...
Um livro muito interessante e escrito com clareza é "A
Morte de Sá-Carneiro", de João Pinto de Figueiredo (Publicações Dom Quixote, 1983). A quem se deve também uma óptima biografia de Cesário Verde.
Escreve Pinto de Figueiredo:
"Misto de lucidez e delírio, ambição e renúncia, orgulho e humildade (…) Sá –Carneiro é bem filho de Dostoievski, irmão de Stravoguine e Kilrilov, embora um singular capricho da sorte o haja feito nascer numa pacata travessa da baixa lisboeta." (*)
"Misto de lucidez e delírio, ambição e renúncia, orgulho e humildade (…) Sá –Carneiro é bem filho de Dostoievski, irmão de Stravoguine e Kilrilov, embora um singular capricho da sorte o haja feito nascer numa pacata travessa da baixa lisboeta." (*)
Dostoievski, por Vassili Petrov
Adolescente, o Poeta escrevera estes versos:
"E
sinto que a minha morte –
Minha
dispersão total-
Existe
lá longe, ao norte,
Numa
grande capital.
Como não ver São Petersburgo nessa 'grande capital, ao norte', onde viveu e morreu o grande Dostoievski?
"(...) o autor de Céu em Fogo tinha a confusa consciência de pertencer a uma outra raça, bárbara, agreste, violenta - consciência bem expressa na sua nostalgia do norte e na sua paixão por Dostoievski, no fundo um expressionista avant-la-lettre."(op. cit. pg.111)
A Fernando Pessoa, queixara-se, em 17 de Abril, do seu "quebranto":
"Mas há todo o quebranto -quebranto para mim –que os meus versos maus longiquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me – suplico-lhe- uma longa carta: e diga se mede bem o perigo, se me compreende. Escreva hoje mesmo. Lembre-se da minha angústia."
E, ainda:
"Se eu penso em você? Mas a todos os momentos, meu querido amigo. Em quem hei-de pensar senão em você? É nesses momentos que eu sinto todo o afecto que liga as nossas almas."
Dias antes, 'avisara' o amigo:
"É hoje segunda-feira 3 que morro atirando-me para debaixo do “Metro” (ou melhor «Nord-Sud») na estação de Pigalle."
Mas, no dia seguinte, escreve a desdizer o que tinha escrito. Como uma criança, para se sentir mais amado, ameaça matar-se. E quem não lembrará a história de Pedrinho e o Lobo?(**) "O lobo vem aí, dizia. Olha o lobo!" Quando o lobo chegou de verdade, ninguém acreditou no Pedrinho...
Diz J. Pinto de Figueiredo (p.206):
"(...) o autor de Céu em Fogo tinha a confusa consciência de pertencer a uma outra raça, bárbara, agreste, violenta - consciência bem expressa na sua nostalgia do norte e na sua paixão por Dostoievski, no fundo um expressionista avant-la-lettre."(op. cit. pg.111)
A Fernando Pessoa, queixara-se, em 17 de Abril, do seu "quebranto":
"Mas há todo o quebranto -quebranto para mim –que os meus versos maus longiquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me – suplico-lhe- uma longa carta: e diga se mede bem o perigo, se me compreende. Escreva hoje mesmo. Lembre-se da minha angústia."
E, ainda:
"Se eu penso em você? Mas a todos os momentos, meu querido amigo. Em quem hei-de pensar senão em você? É nesses momentos que eu sinto todo o afecto que liga as nossas almas."
Dias antes, 'avisara' o amigo:
"É hoje segunda-feira 3 que morro atirando-me para debaixo do “Metro” (ou melhor «Nord-Sud») na estação de Pigalle."
Mas, no dia seguinte, escreve a desdizer o que tinha escrito. Como uma criança, para se sentir mais amado, ameaça matar-se. E quem não lembrará a história de Pedrinho e o Lobo?(**) "O lobo vem aí, dizia. Olha o lobo!" Quando o lobo chegou de verdade, ninguém acreditou no Pedrinho...
Diz J. Pinto de Figueiredo (p.206):
"Vivendo em Portugal, Pessoa não podia, é
certo, fazer grande coisa para evitar que o seu companheiro se matasse em Paris.
Imagina-se pois a sua angústia (…) Sá-Carneiro pretendia, em nosso entender,
que Pessoa assistisse ao seu suicídio. Por isso lho comunicou com uma
antecedência de 3 dias – o tempo que uma carta levava entre Paris e Lisboa. (…)"
A 4 de Abril, Sá-Carneiro escreve-lhe: "Perdoe todos os sustos por que o fiz passar e, adiante, "O termo de tudo isto: Mistério...Talvez mesmo ainda o 'metro'...Mas não faça caso..."
A Alma de Sá-Carneiro, a sua 'corda sensível' -como ele diz 'poeira de oiro/espasmo de luz/taça de cristal lançada ao mar' - "balouça": não sabe se o fará ou não. Como os acrobatas no circo, tem a esperança de viver, quando sabe que a morte pode acontecer. Na corda bamba que é a sua vida, hesita sempre...
Treze dias depois, a terrível angústia de Pessoa continuava. “Ainda tenho uma
esperança escrevia-lhe o amigo, referindo-se ao problema de morrer ou não
morrer –mas não me parece. E acrescentava: “não sei onde isto irá parar. Porque
a minha situação –encarada de qualquer forma- é insustentável.”
A 4 de Abril, Sá-Carneiro escreve-lhe: "Perdoe todos os sustos por que o fiz passar e, adiante, "O termo de tudo isto: Mistério...Talvez mesmo ainda o 'metro'...Mas não faça caso..."
A Alma de Sá-Carneiro, a sua 'corda sensível' -como ele diz 'poeira de oiro/espasmo de luz/taça de cristal lançada ao mar' - "balouça": não sabe se o fará ou não. Como os acrobatas no circo, tem a esperança de viver, quando sabe que a morte pode acontecer. Na corda bamba que é a sua vida, hesita sempre...
Chagall e o Circo
"Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar –
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar…
- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar…
Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada…"
(op. cit. pg 154)
Um
espectáculo para "encenar" a sua morte, acompanhado à distância? Quanto desespero durante a semana que decorre entre
18 de Abril (quando escreve a Pessoa) e o 26 de Abril, dia em que se suicida, ingerindo
estricnina. Terá vagueado pelos boulevards, por Montmartre e por Pigalle, como costumava? Quem o pode saber exactamente?
La Butte de Montmartre
O Café de l'Enfer, em Pigalle
"Vida de Café e rua
Dolorosa, suspendida -
Ah!, mas de enlevo tão grande
Que outra nem em sonho eu prevejo."
No dia 25 de Abril, Sá-Carneiro vai falar com um comerciante que
mal conhecia, José d’Araújo, e pede-lhe que no "dia seguinte às 8 em ponto da
noite" passe no seu Hotel, o Hotel Nice.
Hotel Nice
O que Araújo cumprirá. E vai encontrar Mário de Sá-Carneiro, de smoking, a morrer.
“Sá-Carneiro agonizava, congestionado, numa
ânsia horrível. Momentos depois expirava".- contará depois.
"Sobre o mármore do fogão, uma folha de papel escrita a lápis e em francês: nela declara morrer voluntariamente.", escreve Pinto de Figueiredo (op.cit. pg.216), concluindo:
"Sá-Carneiro morreu, pois, só, como já dissemos. Só, e importa acentuá-lo, tendo falhado a sua morte -essa morte em que outrora vira a única maneira de dar um sentido à vida..."
"Sobre o mármore do fogão, uma folha de papel escrita a lápis e em francês: nela declara morrer voluntariamente.", escreve Pinto de Figueiredo (op.cit. pg.216), concluindo:
Chagall e o eterno Circo da vida...
Chagall, Acrobatas
"Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar o ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!"
Sá-Carneiro Tinha apenas 25 anos.
(*) in J. Pinto de Figueiredo, A Morte de Sá-Carneiro, no Preâmbulo, pg.13
(**) Pedro e o Lobo é uma obra de Sergei Prokofiev, de 1936, onde cada personagem 'fala' segundo um instrumento musical diferente.
(**) Pedro e o Lobo é uma obra de Sergei Prokofiev, de 1936, onde cada personagem 'fala' segundo um instrumento musical diferente.
~~~
ResponderEliminarUm génio desadaptado, mentalmente muito perturbado.
Todos lamentamos os suicídios que aconteceram no nosso
meio literário.
Pessoa compreendia-o, pois também sofria de incapacidade
de adaptação, porém teve destino diferente, desdobrou-se
em personagens diferentes e guardou os escritos numa arca
de madeira... Seria uma desonra na família ser poeta...
Uma homenagem muito louvável, MJ.
~~~ Beijinhos. ~~~
Corrijo o pleonasmo.
Eliminar'Desdobrou-se em vários personagens...'
Obrigada pela atenção, Majo. Bom fim de semana!
EliminarHomenagem merecida. Obrigado Maria João.
ResponderEliminarGostando sempre de navegar por aqui, da leitura, das imagens, do conteúdo em especial, desejo-lhe Falcão, ótimo dias.
ResponderEliminarBeijinhos.
Pessoa... pois foi esse que escreveu ao genial -não apenas um inteligente superior- "Você é o melhor de nós..."
ResponderEliminarUm grande poeta, uma existência curta, intensa, dramática.
ResponderEliminar..."De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive."
Há vidas sem solução.
Era genial....
EliminarAdorei este registo, pois são dois poetas que me fascinam. M. S.C. morreu demasiado cedo.
ResponderEliminarA tranquilidade aparente seria uma felicidade libertadora?
É extremamente angustiante não se ter chegado a tempo.
Beijinho. :))
Gostei de todo o post.
ResponderEliminarGosto das pinturas e encantam-me as fotos dos livros!
Espero que tenha sido um bom domingo:)
Um beijinho grande:)