segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ilhas na Bruma: o Sr. Semedo




Mais histórias de S. Tomé que me vêm à memória, sempre, num redemoinhar de pessoas, de cheiros e de cores. A minha casa com os coqueiros, a goiabeira, as mangueiras, as rosas de porcelana rosadas e brilhantes como cera, e os bicos de papagaio bem vermelhos, os papiros.
Os passeios pela ilha, para sul, até à Praia Melão (que se pronunciava Milão), com os barcos de ocá cobertos pelas redes de pesca, ir pelo Pantufo, até Santana, Praia Pomba. As idas a São João dos Angolares ver os amigos: o Sr. Fernadinho, o calulu que se fazia, o Nézò que era ainda nessa altura um miúdo e já era um bom pintor.
Ou, ainda mais longe, até à Praia das Sete Ondas com o seu coqueiral lindo, a curva doce da baía e as correntes que levavam tudo para longe.

E as pessoas do meu quintal, que eram também a minha família: a Dáy, o Wildger -que em casa se chamava Nini-, a Milly, a Nina, a Tina.
E, claro, o inesquecível Sr. Semedo, com o seu cigarrinho, a tratar do jardim, a lavar o meu jeep Umm e a mastigar um fósforo, a conversar comigo, ao fim da tarde, de tudo: do dia que findava, do mar, das ondas, das "encantadas", das marés, do jardim, das crianças que tudo pisavam...
Sim, tenho tantas saudades do Sr. Semedo que contava, contava...
Era uma vez...




O Sr. Semedo...


"Encostava-se ao ancinho de metal e começava a contar. Eu deixava-me ficar deitada na rede e balançava-me devagar, com um livro aberto no colo, que não lia.
Sorria, porque sabia o que eram as histórias sem fim do Sr. Semedo.
Depressa o crepúsculo chegaria e sobre os edifícios das oficinas velhas ia-se já esboçando o vermelho-vivo do sol poente. Os altos troncos afilados dos coqueiros imperiais desenhavam a sombra no negro da noite africana. Como todos os dias a esta hora, os mosquitos desciam do alto das mangueiras.
Fechei o livro para ouvir com mais atenção.
- A dôtôra sabe? Eu vim da Ilha do Príncipe com a minha mãe quando era pequenininho. Assim mesmo...
E com a mão mostrava a altura, quatro, cinco palmos. E continuava a falar, agarrando com força o cabo da ferramenta.
- Ainda não contei, pois não?
- Não, Sr. Semedo...
-Pois foi, vim de lá...
Mudou o ancinho para a outra mão.
- E a vida era dura sempre. Lá e cá... A minha mãe veio trabalhar numa roça na cidade capital e eu comecei a ajudar no que havia...
Interrompi-o:
- A sua infância como foi, Sr. Semedo?...
- A minha infância, dôtôra...
Hesitou e depois disse:
- Sabe, a infância, dôtôra, é quando a gente olha para trás na vida e acha que tudo foi bom... Não é assim, dôtôra?
- É, Sr. Semedo...
Mudou de assunto:
- Pois é, dôtôra, trabalhei no campo, fiz tudo, mas a minha vida principal foi de pescador! Sei tudo do mar...
E, como se achasse que isso era pouco:
-...E da terra! A dôtôra já viu a lua como está agora? Quando tem o bico a apontar para o mar é para a pesca. A lua é que traz o peixe... E quando aponta para aqui, para o lado da terra, é para semear. Eu disso sei...
Sorriu, tímido, e com a mão apoiada no peito magro, encolheu os ombros e continuou:
- Já contei à dôtôra a história do meu naufrágio? Não contei, acho que não...
Olhava com medo que eu dissesse que já conhecia a história. Tinha contado, tinha, mas eu sabia o prazer com que o faria de novo.
- Não, Sr. Semedo, não contou...
- Ah! Bem me parecia! Pois foi assim...
Olhou para o fundo do jardim, como a inspirar-se.
- Estávamos lá para os lados das costas do Gabão. Dias e dias perdidos no mar... Secos, na força do sol, e na noite fria, molhados, cheios de medo... Água quase não havia, nem arroz e a farinha era pouca...
Abanava a cabeça, tirava o cigarro da orelha e voltava a pô-lo no mesmo sítio.
- E o tabaco?! Ah! O tabaco era tão pouco que a gente dividia até um bocadinho dele. Para o fim, cada um dava uma fumada, passava aos outros e descansava até chegar outra vez o cigarrinho..
Abismava-se nos pensamentos, como se voltasse a ver a noite, o mar, o medo, e continuava:
- De repente, dôtôra, no meio daquela noite escura, apareceu a luz dum barco! Um barco muito alto, enorme, era americano acho, devia ser... Era, era!
Com a cabeça acenava, a confirmar a sua certeza.
- Nós todos a gritar e a agitar as mãos... Que tempos!
Calou-se, de olhos assustados.
- E depois, Sr. Semedo?, não resistia eu a perguntar, apesar de conhecer o fim.
- Depois? Tem razão, dôtôra, depois?...Sabe o que eles fizeram?
E sem esperar resposta:
- Gritávamos todos. Nós e eles! Era uma confusão. Então...
Eu olhava-o, ansiosa:
- Então?...
- Então, foi assim... Deitaram uma rede, que parecia assim como as nossas de apanhar peixes, cheia de comida de lata. Com tudo! E a gente agarrou-a logo!
Voltou a parar, a “ver”, com temor. Respirou fundo e continuou:
- A primeira coisa que chegou, sabe o que foi?...
-Não...
- Os cigarrinhos!
Agora ria-se, com vontade, vencera o medo.
- E as encantadas, dotôra? Não sabe o que são, pois não?
- As encantadas, Sr. Semedo? O que são as encantadas?, perguntei.
- Nunca viu..., disse, quase com pena de mim.
Não respondi, não era preciso.
- Pois é, mas eu sou pescador, eu vi!
- São as sereias?...
- É isso, parece que lhes chamam esse nome. São mulheres, são como as outras. Só que andam no mar, por isso também são peixe...
- Têm cauda de peixe?...
- Pois é, é mulher e é peixe... E chamam a gente. Querem é que um homem vá ter com elas.

- Como é que chamam, Sr. Semedo?

Olhou-me de lado a ver se eu estava interessada.

- Chamam por nós, a cantar...Uii!Uii!Uii!...
E apertava os lábios deixando sair um assobio longo, quase um uivo fino.
- Assim mesmo!..., afirmava com um ar teimoso, olhando-me de lado.
O Sr. Semedo era muito teimoso.
- Um dia um meu compadre caíu ao mar e nunca mais voltou. O mar devolve sempre o corpo à terra... Só se peixe o comeu é que não volta...
- Foram as encantadas, Sr. Semedo?
- Eu não digo que foi...Pode ser. Pode ser...
Olhava desconfiado, sem saber se eu o levava a sério.
- Pode ser... Se calhar, ouviu-as... Estão sempre a chamar por nós...
E abanava a cabeça.
- Volto já dôtôra. Criança brinca com tudo...
Ia dar uma volta pelo jardim, varrer as folhas secas, ralhar aos filhos da cozinheira que iam comer a fruta que ele tinha toda “contada” para mim. E fumar o seu cigarrinho. A noite caíra de repente, sem dar por isso. Não valia a pena abrir o livro. Esperei por ele. Voltou, passado um momento, entalando outro cigarro na orelha. Vinha a queixar-se, resmungando baixo:
- Criança não tem respeito!
Mas continuou, logo, noutro tom, a olhar para mim:
- Já tinha contado, dôtôra?
O Sr. Semedo e as suas histórias inesquecíveis, infindáveis, sempre interrompidas e retomadas no ponto exacto em que as deixara. Tinha dias bons e dias maus, estes directamente ligados à quantidade de cacharamba que bebia. Tinham-me contado que era bebida forte, perigosa, feita de cana de açúcar, cuja fermentação era muitas vezes “acelerada” com ajuda de pilhas. Ele próprio me dizia:
- Talvez sejam pilhas...Queima. Mas aquece a gente, dôtôra...
Lembro uma dessas tarde que, como tantas, corriam lentas, na luz indecisa entre o azul e o branco anunciando o crepúsculo que não vinha longe. E, de chofre, sem transição, surgiria a penumbra e a noite. Viera mais cedo para casa. Na cozinha, a rádio transmitia uma “música da terra”, arrastada, dolente, interminável, que falava de uma mulata:
-“Oh! Essa mulata vai-me matar...”
E eu cantarolava-a, quando a Adelina entrou, assustada:
- Dôtôra, venha depressa ao quintal! O “sinhor” não está bom!
- O senhor?, estranhei.
- Sinhor Semedo. Está confuso da cabeça...
Nesse dia ele chegara mais cedo e fora fechar-se na sua toca, espécie de arrecadação que fora um velho galinheiro, abandonado há muito. Pintada, arranjada, era uma minúscula divisão onde tinha a sua cadeira de braços que ele cobria com jornais por causa da humidade da noite.
- É o meu reumatismo, dôtôra!, costumava dizer.
Tinha chegado com um ar perdido. À entrada do portão dissera, aliviado, “já cá estou!” e seguira, cambaleando, até ao seu cantinho, e, quase envergonhado, adormecera.
Agora, acordado, confundira a luz do fim da tarde com o amanhecer, hora a que largava o trabalho e ia para casa.
- A gente estava-se a arranjar para ir e o senhor Semedo acordou. Acho que ele julga que é de manhãzinha, quer ir embora... Pensa que eu e a Tina chegámos agora...
A Adelina ia explicando, baixinho, a arrumar os sacos de plástico, ajudada pela irmã, na varanda da cozinha. Fui ter com ele:
- Sr. Semedo, já viu a luz esquisita que está?
- É mesmo, dôtôra...”
Ele olhava desconfiado, sem perceber por que é que eu estava ali e por que olhávamos para ele.
- Nem se sabe se é dia, se é noite, não é?... Até parece que está a nascer o dia! E são quase cinco horas da tarde! Já viu?! Daqui a nada é noite escura...
Ficámos todas à espera, caladas. Não respondeu, olhou atentamente para o céu, para o relógio, para o jardim, para nós. Tirou devagar o saco que já pusera ao ombro.
- Pois é...
Virou-se e entrou no galinheiro. Voltou logo, agasalhado para a noite, na sua roupa de guarda, a velha farda militar comprada no Mercado do Ponto.
- Faz frio, dôtôra..., disse a disfarçar.
- É a humidade da noite, Sr. Semedo...
Eu e o Sr. Semedo tínhamos muitas histórias para contar...
Como aquela vez em que eu saí à procura de um remédio para o paludismo. Caíra a noite, faltava a electricidade naquela zona e a cidade estava às escuras, como acontecia frequentemente. Levei o meu cão, segurando-o com a trela bem curta com medo que os cães vadios o atacassem. Ele saltitava, olhando para todos os lados, curioso como sempre que ia à rua. O Sr. Semedo, empoleirado no alto do portão, alumiou-me o caminho com a lanterna, e o facho de luz chegava até ao virar da esquina. Depois, acendi uma pilha pequenina para ver onde punha os pés. No regresso, vi-o a espreitar, detrás das ripas de madeira do gradeamento branco. Abriu o portão a correr.
- Não saí daqui, dôtôra! Tinha o coração na boca! Sozinha na noite de S. Tomé! Só que o “compadre” também foi... E é valente que eu sei!
E fazia festas ao cão, agradecendo.
- É é guarda, como eu... De noite fica sentado comigo, a ler e a conversar.
- A conversar, senhor Semedo?...
- Sim, parece que fala...Bem, ele quer falar, só que não pode... Mas é guarda! Tomou conta da dona! O que fazia eu, se acontecesse mal à dôtôra!?”
E dizia-me, abanando a cabeça:
- Não posso esquecer!... É minha mãe... É filha também...O que era de mim sem a minha dôtôra?
- Eu sei, Sr. Semedo, mas já cá estou! Agora pode dormir descansado...
Pus-lhe a mão no braço. Desviou a cara, comovido, encolheu os ombros.
E, na tarde seguinte, tudo recomeçava:
- Dotôra, eu já contei? Acho que não...
- Não, Sr. Semedo, ainda não contou...
Baixava os olhos, respirava fundo:
- Pois é! Bem me parecia...
E recomeçava:
- Uma vez... "

(Ilhas na Bruma, UNEAS, S.Tomé, 2006)



1 comentário:

  1. Se as memórias são contagiosas, eu sinto-as VIVAS de São Tomé! Com sabores, cores, gostares esentires! Obrigada, Amiga, pela companhia que me compensae conforta!

    Beijinhos

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