terça-feira, 14 de abril de 2009

o comboio da noite






o comboio da noite





















O comboio da noite


Sempre senti o fascínio dos comboios da noite, no Inverno. O mistério que têm, com a escuridão e o frio, as estradas cinzentas, as terras com as suas luzinhas que passam a correr, as estações em que se não pára. Tudo sugere a distância, o afastamento das coisas vãs, o movimento: a liberdade.

Imagino-me a viver a aventura que seria viajar no Transsiberiano ou no Orient Express, ou, ainda mais aventuroso, no comboio para Irkutsk, na peugada do cavalo do correio do Czar.
Ou, apenas, no wagon-lit que me levaria a São Petersburgo, a bela, longínqua, cidade de Pedro o Grande, adormecida ao pé das águas do Neva, com o rio Moika, a Fontanka, a laguna.

Imaginando, empre, as estepes desfilando, numa paisagem de neve, as florestas de abetos esguios, e de ulmeiros, com seus troncos brancos salpicados de cinzento esverdeado.

Não é exactamente assim o comboio da noite onde vou, o comboio que me leva a casa, seguindo ao longo da costa.
Hora de ponta. Sentei-me num dos poucos assentos que restavam. Os lugares do lado do mar estavam ocupados.

Fora, adivinha-se a sombra das águas, o cheiro da maresia, um pouco de cais branco e negro, as docas, a areia e os barcos na marinha, a lua reflectida no mar, ou o vermelhão do crepúsculo no horizonte.
Dentro, as pessoas bamboleiam o corpo, ainda rígido, a abandonar-se ao cansaço do dia de trabalho.

Rostos marcados, traços duros, olhar desconfiado, sem vontade de se entregarem, presos da tensão do dia que começara cedo e que ainda não acabara para muitos. Faltava a chegada a casa, outras preocupações para resolver, o jantar, os filhos. Mas acabam por se entregar ao bem-estar que os invade no calor da carruagem, e adormecem.

Uma rapariga, à minha frente, lê um livro volumoso. Com a gola do casaco levantada, prendendo nela os cabelos de um castanho dourado, estremece na carruagem aquecida e, pelo modo como segura as abas do casaco, bem apertadas junto ao pescoço, não parece ter apenas frio, parece ter arrepios de febre.
Duas senhoras iguais, na toilette pouco cuidada, nos cabelos amarelos mal pintados, com o mesmo corte vulgar, vão sentadas em lugares, frente a frente, falando, agarradas ao telemóvel.
Desesperadamente sós...
As conversas cruzam-se, interrompem-se, em vozes e modulações diferentes.
- Olha, querida, a mãe já vai no comboio, diz ao paizinho que estou a chegar...
A outra, numa voz irritada, gritava para o telemóvel:
- Não foi isso que se combinou na reunião, percebes?
E agitava a mão livre, afastando o cabelo da testa.
- Sim, filha, levo o que me pediste. E até uma sobremesa que tu gostas!, continuava a outra, num tom doce, com um sorriso que lhe mostrava as gengivas.
E a da frente continuava, abespinhada:
- Nem penses! Era o que faltava! Não cedo nada!
Atrás de mim, um pouco ao longe, uma voz de homem, impessoal, monocórdica, diz para o telemóvel:
- Minha senhora, os nossos serviços estão a par desse problema... Têm a competência... Claro, claro, assim que for possível... É do nosso interesse...
E as conversas continuam, interrompidas por uma ou outra exclamação, ou com silêncios pelo meio.
Olho para fora. Os prédios correm, com as luzes bruxuleantes da iluminação pública, as silhuetas desenhando-se detrás das cortinas dos prédios altos. A fila de carros no trânsito alonga-se, os farolins são uma mancha vermelha brilhando na esteira deles. Arrancam, travam, avançam, enquanto o comboio desfila, desafiando-os, ultrapassando-os a toda a velocidade. Do lado contrário, está o mar que não se vê, por detrás do espelho negro das janelas, onde se revelam em película colorida os rostos lívidos dos passageiros.
- Vai ligando o forno, sim? Beijinhos...
E esta desliga, olhando-se no vidro, ajeitando o casaco e o cachecol, feliz.
- Isso era o que eles queriam!, continua, teimando, a outra. Mas não foi isso que se combinou na reunião! Eu cá não aceito...
A rapariga do livro embrulha-se melhor no casaco, encosta-se ao vidro fresco da janela, procura uma posição para dormir, a cabeça descai devagarinho.
Os outros passageiros vão silenciosos, uns lêem o jornal que tiraram da rede do comboio, outros cederam ao torpor e dormem, de boca aberta.
Na minha frente, uma jovem mulher, com um casaco preto e uma bonita écharpe verde esmeralda, que lhe aviva a pele clara, tem no colo um monte de fotocópias, sublinha frases, fórmulas, números com um marcador amarelo, e aponta-os cuidadosamente num bloco de notas. Estuda, atenta ao que escreve. Ao lado, um senhor levanta-se para sair na próxima paragem, pede licença, e ela, distraída, ao querer dar-lhe passagem, deixa cair os papéis das mãos, consegue segurá-los com os joelhos, apertando a caneta nos dentes, sorri, desculpa-se. Senta-se outra vez, junta as folhas, põe a caneta e o marcador na mala de mão. Olha os outros passageiros, sem ver, dá um suspiro, encosta-se no assento e adormece. A cabeça vai abanando, docemente, ao sabor do movimento do comboio, ela não sente nada, não ouve o barulho em sua volta, sorri a dormir.

Na minha imaginação, continua a viagem eterna do comboio da noite, através das estepes, cheio de luzes, recortando figuras chinesas, pessoas invisíveis, ou a sombra de alguémque, detrás do vidro da janela, afasta as cortinas de renda na carruagem do wagon-lit.
O fumo sai pela chaminé da locomotiva e espalha-se na noite enevoada, o comboio vai apitando, e desaparece na mancha negra da floresta.

Dentro do comboio há suspiros de cansaço, de impaciência nas paragens, mas eu estou ausente, continuo a viajar. Há tanta beleza pelo mundo fora, paisagens de neve nos quadros, mar, uma árvore vermelha,à beira de um lago
E há sempre o comboio da noite...
Fecho os olhos e continuo o sonho.





o transiberiano






2 comentários:

  1. O combóio da noite levasonhos mas, infelizmente - eu acho - tem uma garede chegada. É tão chato chegar dos sonhos...

    Beijos

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  2. Os combíos têm sempre, infelizmente - acho eu -, uma gare de chegada. É tão chato chegar dos sonhos!!

    Beijos

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