CAPÍTULO 12
A tarde caía e via as luzes da casa. À entrada do jardim, buzinou várias vezes. Joan veio a correr, ofegante:
- Michael! Michael!
Saiu do carro e abraçaram-se, comovidos. Joan tremia.
-Que bom é olhar para ti, saber que estás aqui...
-Querida Joan! Tens um ar tão cansado! Sempre a eterna voluntarista...Não podes aguentar tudo sozinha..
Olhava-a com ternura e voltou a abraçá-la com força. Beliscou-lhe a face.
-A Helen esteve cá... E agora chegaste tu!
- Não te deixo sozinha. Sei o que sofres... Não chores...
-Michael! Quem pôde fazer isto, Michael?
-Vamos descobrir, Joan! Não serve para nada, eu sei, porque não a faz voltar à vida, mas ...será vingada!
-Tenho saudades dela, faz-me falta, tudo era fácil quando sabia que a mãe estava aqui à minha espera. Nenhum mal me podia acontecer.
-Eu sei...
-É horrível! Prometes que vamos encontrar o assassino? Quando tu prometias, eu acreditava...
-Prometo ! Posso demorar, mas tento tudo! Não vai ficar um centímetro nesta Hei-de descobrir...
Levantou a mão aberta, e pousou-lhe devagar os dedos na face molhada.
-Juro.
-É muito doloroso, Michael, é muito triste.
- A mãe era forte, queria que fôssemos fortes, mesmo nesta situação...
-Mas eu quero chorar! Não aguento mais este peso, preciso de chorar!
E encostou-se ao ombro de Michael, a soluçar como quando era criança. Ele pôs-lhe o braço à volta dos ombros com ternura:
-Está bem, chora, precisas de chorar, percebo...
Empurrou-a devagar.
-Vamos para dentro. Está frio e temos muito que falar.
-Ando nervosíssima! Vejo coisas, oiço barulhos de passos... Será só a minha imaginação? Precisava de ti.
-Estou aqui! Vou buscar as malas, não demoro nada, vai indo para dentro de casa, está frio!
Joan afastou-se em direcção à casa. Antes de entrar, perguntou:
-Queres um chá bem quente?
-É claro que quero!
Voltou ao carro e tirou as malas. Ficou a olhar em volta. A casa e o jardim da sua adolescência. A casa de tijolos vermelhos, as janelas de guilhotina com pequenos vidros quadrados, a trepadeira de glicínias que subia até ao telhado, junto da porta pintada de branco.
Lembrava-se de a ver, no fim da Primavera, cheia de flores entre o azul e o lilás, perfumadas, e, depois, com folhas pequeninas de um verde aveludado, vivo. Conhecia todos os recantos da casa, da cave ao sótão. Ergueu os olhos para o telhado, desviou-os para a varanda do quarto, viu o parapeito onde se empoleirava para espreitar o que se passava do outro lado da sebe. Os campos verdes e as estradas que serpenteavam no meio das árvores.
Ficara a viver só com a mãe e com o Gabriel muito cedo. Joan entrara numa boarding school em Londres, nem sempre vinha aos fins de semana. Quando voltava, trazia consigo os protestos de sempre, rebelde, provocadora, tentando zangar-se com Gabriel.
Revia-a na farda do colégio, com o blaser cor de beringela e a saia cinzenta, a camisa branca sempre impecavelmente engomada, primeiro de soquetes brancos e mocassins pretos, mais tarde, com meias de seda e sapatos de verniz com um pouco de salto.
Sorriu, a lembrar-se dela. Uma vez, no Natal, chegara e olhara receosa para a mãe. Tinha as orelhas furadas, e umas argolas douradas que se agitavam a cada movimento. A mãe sorrira e fora buscar-lhe uns brincos pequeninos, com safiras. Ele continuara a viver por ali pela casa, a procurar encher a sua solidão inventando brincadeiras e aventuras. Frequentava uma escola em Brighton, ia na camioneta do colégio, que o vinha buscar e trazer, fizera amizades. Era muito miúdo, adaptara-se, mas Joan fazia-lhe sempre falta.
Ouviu a voz dela, a chamá-lo.
-Michael, perdeste-te? O chá arrefece!...
-Desculpa. Sim, perdi-me a olhar para o jardim. Estava a lembrar-me de nós todos, aqui. Nunca mais vai ser a mesma coisa. Pensamos sempre que temos o tempo todo à nossa frente, que nada vai mudar e não o aproveitamos... Acho que nem o vivemos como devíamos...
Joan veio ter com ele:
-Tu eras o “beduíno”, lembras-te? A mãe chamava-te Beduíno do deserto, por causa das tuas manias de trocar e vender... Nunca mais ninguém te vai chamar assim.
Olhou-o, triste. De repente, pareceu preocupada.
-Estás magro, Michael! Não tomas conta de ti! Se calhar não comes bem...
-Tens razão, às vezes não tenho tempo, nem paciência.
-Tens que arranjar alguém! Tens que te apaixonar... Não se pode viver assim, és um lobo solitário.
-Arranjar alguém? Complicado como sou? Só uma estrela!
-Brincas, mas não se pode viver tão isolado!
Encostara-se ao irmão.
-Tenho amigos, bons amigos...
-Mas eles têm namoradas com certeza.
-Nem todos. E depois isso não importa. Estou vivo!
-Preocupas-me!
-Não te preocupes, minha querida...
Virou-se para trás:
-O que eu adorava esta casa, Joan. Nos últimos tempos, quando voltava, era tudo extraordinário, outra vez. A mãe estava à espera e parecia que o tempo não passava, nem para ela nem para mim... Sentias isso ?
-Oh! Sim! Tudo voltava a ser igual. A alegria dela, a facilidade que tinha de nos pôr à vontade, em nos fazer falar de nós, dos nossos problemas, sem insistir, sem perguntar... Nunca percebi como o fazia. E eu falava, falava...
-Queria facilitar-nos a vida pondo-nos a falar? Nunca se substituía a nós, queria que fôssemos nós a pensar, a interrogar a vida, a analisar o que se passava à nossa volta, e a saber o que era verdadeiramente importante. Creio que nos queria preparar para a vida...
-Nada volta para trás.Acabou esse mundo encantado...
-Acabou.
Zurigo apareceu à esquina da casa, vindo do fundo do jardim. Tirou o boné de pano da cabeça, meteu-o debaixo do braço e hesitava, sem saber o que fazer do machim. Acabou por o espetar na terra do canteiro de onde partiam os troncos da trepadeira sem folhas.
- Olha o patrãozinho! Que prazer em vê-lo! Bem me parecia que tinha ouvido o barulho dum carro!
-Está muito surdo o Zurigo.
Joan falara baixinho.
-Estava a cortar uns ramos da sebe da azinhaga, estavam partidos nem sei quem foi que os partiu...
-Zurigo, velho companheiro! Estás na mesma!
Michael largou as malas e apertou num longo abraço o corpo magro.
-Não, patrão, estou velho! Estou muito velho e não sirvo para nada... Vê estes cabelos brancos? Velho. E sem dentes...
E afastou-se para enxugar as lágrimas.
-Não estou a chorar, são os olhos que estão a ficar velhos.
Joan chegou-se ao pé dos dois, pôs um braço no ombro de Zurigo e agarrou a manga do casaco de Michael.
-Não parece mal chorar, Zurigo...
-Vamos Joan...
E Michael e pegou-lhe no braço com ternura.
-Ajudo-te a levar as malas para dentro.
Zurigo avançou:
-Não, menina Joan, eu é que levo as malas! Ainda tenho forças para isso. Era só o que faltava...
Michael empurrou a irmã à frente dele.
-Vamos...
-Só quando perdes alguém como ela é que percebes o que perdeste.
-E não tem solução... É para sempre... Separados para sempre, murmurou Michael. Uma eternidade! “Meaning you go this way and I go that”...
Joan voltou-se de repente:
-O que disseste?
-São uns versos de que a mãe gostava, não os consigo esquecer...
-Diz outra vez...
-Não importa... Falam de caminhos que se separam...
-Oh! Michael, a separação é horrível! Sempre tive medo de ficar sozinha... A morte assusta-me...
-Viver e morrer...É a nossa condição, não é? E não acredito que depois de mortos nos vamos encontrar outra vez... A eternidade sozinhos, já pensaste o que é? Tenho pena de não acreditar...
-Nada tem sentido agora...
- Sim. Nada disto tem sentido.
-Tens razão...A verdade é que nunca mais vamos ver a mãe.
-Para dar algum sentido à nossa vida sem ela, só nos resta agir de qualquer modo...
-Agir...? Mas, como, Michael?
-Há um assassino à solta, não há?
-Tens razão, Michael... Procurar o assassino.
Fora, começara a cair uma chuvinha miudinha. O nevoeiro envolvia tudo. Entraram.