Ontem a televisão franco-alemã "Arte" passou um filme que não tinha visto. E que me impressionou: "Tsotsi", do realizador sul-africano Gavin Hood, uma co-produção com a BBC.
O filme é baseado no romance homónimo do escritor sul africano, Athol Fugard.
Athol Fugard nasceu em 11 de Junho de 1932 em Middelburg, África do Sul. Escritor, dramaturgo, novelista, actor e realizador, que escreve em inglês, é muito conhecido pelas suas peças políticas de oposição ao regime do apartheid. É hoje professor no Department of Theatre and Dance na University of California, San Diego.O herói, Tsotsi, é um jovem que sobrevive sozinho desde a infância, quando foge de casa com medo do pai, bêbado e violento, que acabara de matar, ao pontapé, o cão rafeirinho que o defendia sempre.
A mãe fica para trás, doente de sida. A mãe que o quer ter ao pé, que lhe pede a mão, e o pai que lho impede.
A mãe fica para trás, doente de sida. A mãe que o quer ter ao pé, que lhe pede a mão, e o pai que lho impede.
Tsotsi corre, assustado, corre na noite e vai ter a um ghetto de Joanesburgo. Ali cresce, com outros meninos da rua, primeiro "protegidos" do frio e dos calores, em tubos gigantescos de betão, roubando por aqui e por ali, ganhando assim o pão do dia a dia.
Passando, cedo, aos assaltos à mão armada.
Quando o filme começa, Tsotsi é já o chefe de um gang: ele e três amigos.
Um jovem duro e violento, menino da rua, delinquente ("tsotsi" em Zulu significa "black hooligan", "delinquente negro") que assalta, rouba e, quando necessário, mata -desde a juventude- para sobreviver.
A figura de Tsotsi é interpretada por Presley Chweneyagae -que nunca fora actor na vida... - e que faz maravilhosamente o papel desse rapaz solitário, perturbado, que vive no fio da navalha, porque nada tem a perder.
Sem laços afectivos -para além dos companheiros de gang- é um ser à deriva, sem referências, sem esperanças.
Alguns encontros, nesses poucos dias que passam, vão marcá-lo. Porque o levam a relembrar (em rápidos e secos flash-backs bem conseguidos) a sua infância desgraçada, a falta de afecto, e “abrir” o coração endurecido.
Depois de um assalto, os quatro amigos vão beber, zangam-se, sem motivo especial, talvez porque tinham morto um homem.
Tsotsi esmurra um deles -que o censura e lhe fala de "decência"-, e deixa-os.
Deambula pelas ruas desertas, vai por debaixo das pontes onde a miséria se esconde e os pobres reúnem.
Vai até à "cidade de vidro", rouba um carro, disparando sobre a mulher que o tenta impedir.
Do outro lado do bidonville...Sim. Porque do outro lado do bidonville existe a cidade dos arranha-céus de vidro, brilhando ao longe como estrelas.
Um terreno abandonado pedregoso, selvático, de muros caídos, ruínas e tubos de cimento das canalizações abandonados, separa as duas realidades.
Tsotsi atravessa essa “terra de ninguém” (ou das pobres crianças abandonadas que, como ele, pequenino, ali vivem nos buracos dos canos.
Mais adiante há os lugares debaixo das pontes, ou nos parkings abandonados onde dorme o resto da miséria.
Um dos encontros é com um velho pedinte meio cego e hemiplégico que ele persegue, talvez com o intuito de o roubar, talvez não...
É tremenda esta cena -de uma violência enorme.
Tsotsi interpela-o, com desprezo. O velho tenta fugir aterrorizado, em frente da arma, arrastando-se no carrinho de rodas, abraçado à latinha das moedas que ganhara, o sustento do dia...
"Se te rebaixas, se te arrastas como um cão ao morrer, para que queres viver?!” , pergunta-lhe, revoltado.
São as imagens do seu cão, de espinha quebrada, a arrastar-se, que ele recorda.
Censura-o por aceitar viver sem dignidade nem respeito por si (mas como poderia?...), sem revolta; achando mais “digna” a sua vida: assaltar correndo um risco –matar ou morrer?-, apostando a vida em cada acto, arrancando à vida em cada instante o que ela lhe negara...
O velho responde, apenas:
“As minhas mãos ainda gostam de tocar nas coisas... Gosto de sentir o sol na cara...”
“As minhas mãos ainda gostam de tocar nas coisas... Gosto de sentir o sol na cara...”
Tsotsi fica espantado com a resposta e deixa-o, a meio do lixo. Foge.
Corre em direcção à cidade das luzes. É nessa noite que assalta a mulher para lhe roubar o carro “topo de gama”.
Guia, pelas estradas desertas, sem saber guiar, até estoirar o carro, perto duma entrada do ghetto.
Tira tudo o que está lá dentro, mas ouve um bébé chorar no assento de trás. Hesita, não sabe o que fazer, quer fugir mas volta para trás e leva o bébé consigo.
O bébé que, num impulso incontrolável, decide “proteger” e amar como nunca amara nem se sentira amado há tantos anos...
Há tanto tempo... A mãe quisera tê-lo ao pé, puxava-lhe pela mão. E o cão que ele adorava, a morte do cão...
Tudo vem à memória do jovem Tsotsi quando leva o bébé com ele, num saco das compras.
Aquele encontro - e, mais tarde, o encontro com Miriam uma jovem mãe que perdera o marido e vive perto da barraca dele, com um filhinho- vai modificar a sua vida.
A ternura, aquele sentimento novo, surpreende-o. A generosidade -que nunca encontrara em ninguém- fragilizam-no...
Tsotsi consegue convencer Miriam (a doce Terry Pheto) a amamentar o bébé roubado, juntamente com o seu...
E... Não vou contar mais. Procurem ver o filme se puderem!
retrato do realizador sul-africano, Gavin Hood
Tsotsi ("Infância Roubada", no Brasil, "Tsotsi" em Portugal) foi o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2006.
Gavin Hood é o realizador do filme. Nasceu em Joanesburgo, África do Sul, em 12 de Maio de 1963, e é cineasta, produtor e actor.
Para saber mais, clicar em:
Mark Kilian e Paul Hepker escreveram a música da banda sonora do filme. Música Kwaito -criada em Joanesburg, nos anos 90, tipo house music combinada com música africana local (segundo o DJ Diplo, Kwaito é um tipo de “slowed-down garage music” ).
http://www.youtube.com/watch?v=uV3nFwUlkYM
ouvir a canção "Mdlwembe", cantada por Zola (em zulu), que entra também no filme.
O filme é falado em língua Zulu, (isiZulu), uma das 11 línguas oficiais da África do Sul (na província de KwaZulu-Natal), em Xhosa (ou IsiXhosa) outra das 11 línguas da África do Sul, em Afrikaner e em Inglês...
E ainda podem ver o "trailer" do filme, na Globo:
Excelente filme. Retrata entre outras coisas que nem sempre o monstro aparente é o que realmente está contido na alma e, que poderá se estabelecer e estabilizar por conta da ausência do temor de Deus e a instabilidade emocional que cauteriza o ser tornando-o impermeável a emoções. Todos nós somos um resultado que vai se sedimentando à medida que somamos aos traumas congênitos os da existência contemporânea. Um filme inteligente, reflexivo.
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