segunda-feira, 14 de junho de 2010

Trieste, os cafés, os seus escritores, e o Caffè San Marco, centro de Cultura



                                O Caffè Tommaseo, outro café histórico
 
Hoje venho falar-lhes de uma cidade um pouco fora deste mundo: Trieste.
Cidade encruzilhada de culturas, ligada à cultura mitteleuropeia e ao antigo Império Austro-Húngaro, de que fez parte.


Por ela passaram – e nela viveram - grandes nomes da literatura e da cultura italianas: Italo Svevo (pseudónimo de Ettore Schmitz - Trieste, 19 Dezembro de 1861 – Motta di Livenza, 13 de Setembro de 1928), grande escritor e dramaturgo austríaco (porque nessa altura a cidade de Trieste pertencia à Áustria), naturalizado italiano. Autor da "Coscienza di Zeno", "Senilità", "Una Vita"
E os escritores Scipio Slataper, Carlo e Gianni Stuparich, o grupo “da Psicanálise” de Edoardo Weiss (Trieste, 1889 – Chicago, 1948), Giorgio Voghera, o crítico Roberto Bazlen que deu a conhecer, em Itália, Freud, Kafka e Musïl.
                                Giorgio Voghera, Edoardo Weiss e Roberto Bazlen

Weiss, conhecido psiquiatra e psicanalista, trabalha primeiro em Trieste e depois em Roma. Teve um papel pioneiro na difusão desta especialização. Em 1932, fundou a Società Psicoanalitica Italiana. Em 1939, exila-se nos Estados Unidos (**).
                                               
                      "Il mio Carso" de Scipio Slataper e "La guerra del '15", de Giani Stuparich.
 

Também Umberto Saba, o poeta, sai da sua Livraria e vem discutir com os amigos no café.
O Caffè San Marco, criado em 1914, é logo desde o início, foi o ponto de encontro favorito para os triestinos, para os estrangeiros, para os intelectuais e leitores de jornais e, também, os jovens irredentistas que pretendiam que a Itália voltasse a pertencer à Itália.
 Por essa independência lutaram jovens escritores como Scipio Slataper, e os irmãos Stuparich, Carlo e Giani, fugindo de Trieste em 1915 para se irem alistar em Itália, no Batalhão dos Granadiere do Sardegna.

James Joyce é um dos estrangeiros "importantes" que passa por Trieste. Onde vai conhecer  Svevo e vai ser seu professor de inglês. E é Svevo que "descobre" e revela as qualidades dos livros de Joyce, o mal-amado, exilado da sua Irlanda natal -que lhe queimara os livros, Dubliners, por exemplo...
O Caffè albergou, nesses anos de luta pela independência, uma organização de passaportes falsos, necessários aos patriotas anti-austríacos, os tais irredentistas, para fugirem para Itália.
Por essa razão, em 1915, uma esquadrilha austríaca destruíu o café.
O café foi restaurado várias vezes mas mantém o seu aspecto original: fascinante.
Entre os mais recentes visitantes so Café encontram-se escritores como Claudio Magris, autor do livro "Danúbio" (do qual existe uma tradução na Dom Quixote) -que fala dessa cultura mitteleuropeia, que se desenvolve e corre ao longo do rio Danúbio.

Magris dedicou o primeiro capítulo do seu Microcosmos ao seu café favorito, o Caffè San Marco. Nesse capítulo recorda nomes de muitos intelectuais que frequentaram o Caffè San Marco, ali discutiram, escreveram, viveram durante uma hora ou muitas mais, alguns mesmo o dia inteiro.

Outros livros de Magris, "Lontano da dove" (Einaudi, 1971) ou "Trieste: Un'identità di frontiera", com Angelo Ara (***) falam desse mundo onde confluiram várias "fronteiras" que enriqueceram a cidade, tornando-a única nesse aspecto. A riqueza e unicidade de Trieste é a Piazza dell’ Unità, desenhada –dizem- sobre o modelo da nossa Praça do Comércio: do mesmo modo aberta ao mar em frente, no caso de Trieste  o mar Adriatico”. 
Trieste é o antigo Caffè degli Specchi, ali mesmo na Piazza dell' Unità. Trieste é o Caffè Stella Polare ou do Caffè San Francisco, no porto e da harmoniosa pastelaria La Bomboniera .
E de tantos outros cafés de classe, "pontos de encontro" de jovens, intelectuais, gente comum, lugares de troca de ideias e de mundividências... Onde ainda hoje se realizam "festivais"-concursos internacionais- de Poesia.
                                     O Caffè San Francisco, no porto de Trieste
 
Recordo Giorgio Voghera que eu e o Manuel conhecemos em Trieste, nos anos 80. Nasceu em Trieste em 1908 e morreu na mesma cidade em 1999. Escritor, pensador, ficou conhecido como escritor e ensaísta. 

Era uma pessoa maravilhosa, doce, cheia de paciência, com uma juventude interior que nunca perdeu. Ainda nos correspondemos com ele, mas nunca mais o vi. Em 1999, quando morre, já eu andava por muito longe de Itália. Personalidade ligada aos estudos do Judaísmo e da Psicanálise, ineressava-o muito mais falar dos outros do que de si próprio. De facto, consagra páginas valiosas nos seus livros a contar a sua Trieste e os seus escritores contemporâneos.
Piero Marussig


Era filho do autor do romance “Il Segreto” Guido Voghera, conhecido por Anónimo Triestino, pois em vida nunca se descobriu a autoria do livro.
Giorgio Voghera vai passar toda a vida em Trieste excepto durante o período das perseguições raciais em Itália nos anos da Guerra, anos que passou num Kibbutz em Israel e sobre cuja experiência escreve no livro "Carcere a Giaffa".

Escreve entre outras coisas: “Gli Anni della Psicanalisi” (1ª ed. 1968) Studio Tesi, 1980; "Nostra Signora Morte" (1983), onde fala da vida e da morte...("La vita à una splendida tragedia/e la morte il suo perfetto epilogo"; ou: "Il segreto della vita è/dimenticarsi della morte./ Il segreto della morte è/accompagnarla come un'ombra")- e mais tarde "Carcere a Giaffa" (1985).

Voghera, no início de "Gli Anni della Psicanalisi", explica bem: 

Trieste foi a encruzilhada de variadas culturas, a porta através da qual muitas correntes de pensamento europeu –ou, antes, mitteleuropeu- entraram em Itália. Ouvia-mo-lo dizer tantas vezes que não acreditávamos que seja verdade. Mas aquela corrente que nos primeiros anos do pós-guerra desceu de Viena para conquistar a Itália – a psicanálise, quero eu dizer- mais do que uma corrente foi um ciclone. Ainda jovem, vivi no olho desse ciclone numa relativa calma pessoal; mas todos os adultos que me rodeavam, pais, parentes, amigos, conhecidos foram literalmente arrastados por esse terramoto”.
 Além de Voghera, poderia falar de outros nomes Giuseppe Prezzolini, de Quarantotto Gambini, dos pintores Como Piero Marussig, Vittorio Bolaffio, Gino Parín ou Arthur Nathan, os artistas plásticos, etc. É infinita essa riqueza cultural de Trieste.
Vittorio Bolaffio


Recentemente, apareceu a escritora Susanna Tamaro, que nasceu em Trieste a 12 Dezembro de 1957 - da qual não falo porque nãoa li. Ainda.

***

(*) Voghera vive toda a sua vida em Trieste excepto o período das perseguições raciais em Itália nos anos da Guerra, anos que passou num Kibbutz em Israel.

(**) Edoardo Weiss:
As leis raciais de Mussolini, saídas em 1939, obrigaram-no a procurar refúgio nos Estados Unidos, primeiro em Topeka e depois (1940) em Chicago. Ali em 1942 torna-se Professor do Chicago Institute of Psychoanalysis

(***) Claudio Magris e Angelo Ara, Einaudi 1982

4 comentários:

  1. Precioso Trieste,e valiosas as suas vivências.
    Eu tomo todos os dias um capuccino num café que se chama "Café irlandes",com o meu amigo de há quarenta anos...
    É estilo ingles (o café,não o meu amigo),pequenino,e está diante duma bahia.No inverno vemos o pôr do sol no mar.

    Em 1998 estive deprimida,e foi lendo o livro de Suzanna Tamaro "Vai aonde te leve o coração",que senti que ia remontar.Nunca esqueci esse livro,não deixe de o ler,e se é em italiano melhor,claro.Beijinhos,Maria

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  2. Vinha á sua procura e cá está... Sim, o "vício" da atmosfera do café não se perde...
    Há histórias que nunca mais acabam que se vêem - e ouvem- nos cafés, enquanto se bebe o tal café escaldante (eu gosto!) ou o capuccino. Foi assim que muito "observei", como toda a gente.
    Trieste é uma cidade única, porque diferente, de fronteira, de limite, cheia de misturas e de culturas...
    Vou procurar a Tamaro (em italiano, se puder claro).
    beijinhos

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  3. Em breve, isto é, ou em Outubro ou em Ourubro/Novembro, lá estaremos mais um mês nessa cidade maravilhosa...

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