Vinha de Cascais,no comboio da tarde.
Atrás de mim, sentaram-se duas senhoras e começaram imediatamente a falar.
- Tens visto o Luís?
- Não sabes que teve um AVC?!
- O coiso? O Luís Nunes! Não acredito! E ficou bem?
- Não. Ficou péssimo... Tem um braço preso, coitado. E não fala.
- Que horror! E o que anda a fazer?
- Vai à fisioterapia todos os dias.
- E quem é que o leva? Tinha-se divorciado...
- Leva-o a filha, ou o filho, não sei...
- E a Mariana? Somos todos do mesmo tempo. Não a vejo há anos...
- Oh!, essa... Caiu dum escadote, lá em casa, partiu-se toda.
- Como é que se partiu toda!?
- Toda, não, mas partiu um braço, o pulso, sei lá. Está de baixa.
- Mas ela ainda trabalhava?
- Claro. É nova..
- Nova? Com a idade dela? Hum...
- É da nossa idade. E trabalhava ainda. Pouco... Não era do tipo que se esforçasse muito.
- Mas ao menos ficou bem? Enfim, pouco atingida..
- Qual bem? Nestas coisas nunca se fica bem...
- É triste. E o irmão dela?
- O Vítor? Esse está bem.
Riu, divertida, e continuou:
- Arranjou uma brasileira que tem uma filha...
- E mãe, não tem mãe? Essas costumam trazer sempre atrás as mães...
- Isso não sei. Sei é que ele queria ir daqui para fora, até pensou no Brasil...
- E então?
- Agora a brasileira não quer ir...
- Essa é boa! Não quer?! Mas se é ele quem paga...
- Sei lá. Arranjou um trabalho qualquer.
- Ela?
- Pudera! Vive cá muito melhor...
- Tanta desgraça! Meu Deus! O que para aí vai!
E também se riu. Perguntou, a seguir:
- E o teu trabalho? Ao menos contigo corre tudo bem?
Quase pensei que estaria à espera que o trabalho da outra corresse mal...
- Vai indo.
- Ah...
A outra continuou:
- Hoje saí mais cedo... A minha “chefa” foi à médica e não estive para esperar pelas 7 horas para sair. Ficou lá a outra empregada, uma brasileira.
- As lojas estão cheias de brasileiras! E de pretas!
- É verdade, até nas lojas finas de Lisboa.
- O que queres? As de cá não gostam dos ordenados que lhes pagam...
- E têm razão! Olha eu cá, se aquela não me pagasse bem, punha-me a andar! Ainda tenho que aturar a brasileira que não faz nenhum...
- É como todas...
- Sempre de nariz no ar a ver o que se passa lá fora...
Felizmente, nem sei como, tinha chegado ao meu destino. Tinha a sensação que devem ter certos pugilistas ao serem agredidos e levados às cordas: estava baralhada da cabeça, destruída!
Pensei: “como é possível em tão pouco tempo (seis ou sete minutos) dizer tanto mal de tudo e de todos, mostrar tanta insensibilidade, revelar tanta frustração? Como devem viver mal estas duas mulheres!...”
Levantei-me, aliviada, e saí sem olhar para trás...Nem queria ver a cara delas!
Elas eram o Inferno! O de Dante, claro! O pior!
Ilustrações:
1. um fresco de Michelino (existente em Florença) representando Dante a ler o seu poema
2 e 3. ilustrações de Sandro Boticelli, século XV, para "O Inferno de Dante"
(Dante Alighieri na "Divina Comédia" dedica um capítulo ao "inferno" -que ficou famoso- sem dúvida, a parte mais famosa da sua "Divina Comédia...")
2. O "inferno de Dante", DVD "Discovery"
Para os interessados em Dante e no Inferno: mais informação sobre a Divina Comédia...
"A Divina Comédia é hoje a fonte original mais acessível para a cosmovisão medieval, que dividia o Universo em círculos concêntricos.
O poema chama-se "Comédia" não por ser engraçado mas porque termina bem (no Paraíso). Era esse o sentido original da palavra Comédia, em contraste com a Tragédia, que terminava, em princípio, mal para os personagens. Não há registro da data exata em que foi escrita, mas as opiniões mais reconhecidas asseguram que o Inferno pode ter sido composto entre 1304 e 1307-1308 e o Purgatório de 1307-1308 a 1313-1314 e finalmente, o Paraíso de1313 - 1314, data da morte de Dante." (wikipedia)
Tempos modernos, mia cara amica, até pior quando ouça no comboio que td isto lixo tem falado (pra nao dizer gritado) duma pessoa que em teoria teria que falar ao telemovel, mas, na pratica, và ter um comicio, sem que ninguém precisa disso...
ResponderEliminarSeria tam louco procurar carruagem donde sò hà o silencio dos livros??
Buon Ferragosto e bye&besos
É verdade! os telemóveis são outro inferno... Quem tem que ouvir o que têm para "confessar", gritando,ao telefone?
ResponderEliminarBom Ferragosto claro! Que saudades! Era o melhor tempo, em Roma: toda a gente partia e Roma era nossa...
Que feio era Dante,terá sido feliz?!
ResponderEliminar"Per me si va nella città dolente,
Per me si va nell´eterno dolore,
Per me si va tra la perduta gente..."
— Os telemóveis deviam estar proibidos para as pessoas que não sabem comportar-se, não achas?(A educação é uma disciplina que está a fazer falta nas escolas). Beijinhos.
Acho que não podia ser feliz...
ResponderEliminarMas ainda bem que viveu (mesmo infeliz e pessimista) porque deixou a sua poesia tão bela...
Tão belos os versos que citas...
bjs