terça-feira, 31 de agosto de 2010

Três diários, três destinos...Ou as monstruosidades invulgares


AS MONSTRUOSIDADES INVULGARES


Anne Frank nasce em 12 de Junho de 1929, na Holanda. Morre de tifo no campo de concentração de Bergen-Belsen, pouco antes de fazer 16 anos.

Rutka Laskier nasce no ano de 1929 também, na Polónia. Morre em Auschwitz não se sabe bem em que ano.

1ª edição polaca do Diário de Rutka, 2005

Clara Kramer nasce em 1927 na Polónia. Escondida durante 18 meses com outras famílias num bunker, é uma das sobreviventes do holocausto.
Capa da edição brasileira de "A Guerra de Clara "

Capa da edição portuguesa do livro "Clara, a menina que sobreviveu ao holocausto"

O que aproxima estas três adolescentes é a escrita de um “diário” e o terem passado por uma forma de gueto... E serem as três judias.

Vidas cortadas, violentamente, na adolescência, sonhos interrompidos, vidas escondidas detrás de paredes, dentro de guetos até ao momento do destino se cumprir.

Há nelas uma qualquer forma de presciência, de adivinhação desse destino desigual, anormal, fatídico?

Talvez.

Outro aspecto que as aproxima é o facto de a “depositária” dos diários ser uma “amiga”, que as protegeu de alguma modo e permitiu que se salvasse o testemunho que quiseram deixar, ou, no caso de Kramer, uma pessoa que, ao invés de tudo o que seria de esperar, decide salvar 18 judeus.
Capa do livro que Miep Gies e Alison Leslie Gold escreveram sobre Anne Frank, "O Outro lado do Diário"

Miep Gies, a holandesa que ajudou a família de Anne Frank, ou Stanislawa Sapinska, a jovem polaca que ia conversar com Rutka nos intervalos do almoço, às escondidas.


O Diário de Anne Frank é conhecido em todo o mundo.
A Alemanha invade a Holanda em 1940.É Pouco depois inicia-se a perseguição aos judeus.
É o diário da vida dela e da família, num pequeno esconderijo, numa casa aparentemente normal, de 12 de Junho de 1942 a 1 de Agosto de 1944.

As traseiras do edifício da casa onde viveram escondidos, num sótão, os Frank

Fez 63 anos que foi publicado pela 1ª vez, em 1947, pelo pai dela, Otto Frank, o único da família que sobrevivera a Auschwitz.
Capa da 1ª edição do "Diário", na Holanda, 1947



Anne escrevera-o desde o dia 12 de Junho de 1942, dia do seu 13º aniversário, dia em que recebera o diário como prenda, e chama-lhe “Kitty”.

É com essa personagem fictícia que vai desabafar durante longos meses. Exactamente até ao dia 1 de Agosto de 1944 quando a família Frank é deportada para Auschwitz.

http://www.ipv.pt/millenium/millenium26/26_16.htm (belíssimo trabalho sobre Anne Frank)

O livro de Clara Kramer é no fundo um livro de Memórias, tirado do seu “diário” . Diário esse escrito durante o período em que está escondida num bunker subterrâneo, com outras 17 pessoas, fugindo às perseguições nazis.

Clara é uma adolescente de 15 anos quando o exército alemão ocupa a Polónia e entra na terrinha onde vivia, Zolkiev.

Capa da edição americana de "Clara's War"
Estamos em Julho de 1942.

Enquanto todos os judeus da região são perseguidos, assassinados ou enviados a campos de concentração, Clara e a sua família encontram uma ténue esperança de salvação quando o senhor Beck acaba por assumir a tarefa de ocultar e proteger judeus na cave da própria casa. Tarefa heróica que lhe valeu uma homenagem no Yad Vashem em Israel.

Ali fechada, durante dezoito meses, Clara escreve o diário.

Aos 80 anos, Clara Kramer retomou, com a ajuda do escritor Stephen Glantz, o seu passado, testemunhando sobre um período terrível da história: dos cinco mil judeus que habitavam Zolkiew antes da guerra, menos de sessenta sobreviveram...

Este ano a editora ASA publicou-o com o título: “Clara, a menina que sobreviveu ao holocausto”.

Fora publicado em 2008 em Inglaterra, pela Random House ("Clara's War"), e em 2009, pela Harper Collins, em New York.

Quando esta guerra acabar, apenas as valas comuns testemunharão que em tempos houve aqui um povo”, escreve-lhe uma amiga, conta Clara.
E continua: "Tínhamos os corações partidos. Era o fim. O fim do mundo.Na nossa tradição, uma morte rasga o tecido do mundo. Estamos todos ligados. Por casamento. Por amizade. Por trabalho."
E explica a razão desse diário:
"E um dia, sem mais nem menos, a minha mãe olhou para mim e disse: “Clara, vais escrever um diário.”

Para as três jovens escrever um "diário" seria manter um registo. Uma forma de "estar vivas". Ter um objectivo. Era uma forma de contra-atacar.

O "Diário de Rutka", outro testemunho desses anos, apareceu em 2006, na Polónia.

É desse livro, menos conhecido, que quero falar hoje.
Saíu em Portugal, na Sextante Editora, em 2007.


Um pequeno volume de poucas páginas: que fala de alguns meses só. De Janeiro a Abril de 43.

Rutka, menina de catorze anos, dotada para a escrita, observadora, curiosa, quando percebe que a sua é uma vida que não vai ter futuro, decide deixar um testemunho consciente, voluntário.

Vive no gueto de Bedzin, na Polónia, primeiro no que ela chama um “gueto aberto”, nas casas para onde foram levados, mas “impedidos” de se deslocar livremente, obrigados a respeitar as leis do gueto e a usar a “estrela amarela”.


Meses mais tarde, são levados para uma aldeia perto, Kamionka, um “gueto fechado”, entre muros e arame farpado, e guardas armados nas “saídas”.

Rutka vai vivendo, quer dizer, vai “procurando viver normalmente”. Tem 14 anos, tem namorados, amigos, amigas... Fala dessas paixonetas, das zangas e amuos com as amigas, das queixas da mãe que não a deixa fazer tudo o que ela, na sua ânsia de viver, quer.

No meio dessas queixas e desabafos dos 14 anos de qualquer adolescente normal, surge por vezes a o voz de alguém que amadureceu de repente e “sabe” que nada da sua vida é normal.

Fala com intensidade, sentimento de angústia, do futuro, receia o momento em que, uma madrugada, chegue o “comité de deportação”.

Num dia anódino da sua vida sempre igual, decide recordar (e fixa com palavras terrivelmente lúcidas e cruas) a “aktion” como lhe chama, cuja data anota cuidadosamente: dia 13 de Agosto de 1942.

Para nunca esquecer, diz ela...

Nessa manhã de Agosto, os alemães tinham conduzido ao campo desportivo da cidade os judeus, “arrebanhados” para serem contados, seleccionados como gado, destinados a campos de trabalho. Novos e velhos, homens e mulheres. Judeus.

Diz que a sua intenção é “não esquecer, e poder lembrar um dia” (ela ou alguém que possa vir a ler esse “diário”) a brutalidade do que viu: as mortes gratuitas, a violência sobre pessoas indefesas, mulheres e crianças. Como assassinato banal de um bébé cuja cabeça ela vê ser esmagada contra o poste da luz, só porque gritava.

Tudo descreve minuciosamente, lembrando o choque e a emoção da qual sabe que nunca se poderá curar.

Às vezes ainda tem esperança. Quando fala dos amigos Janek, Jumek, das declarações de amor, dos protestos ou das amigas Hala, Micka, dos ciúmes, dos amuos é como se a vida estivesse à espera dela...

Exclama: “Gostaria tanto de viver!”

Mas o destino dela está traçado: ser deportada para Auschwitz, com a família: o irmão pequenino, a mãe, a avó e o pai, Yakov Larkier, o único que vai sobreviver.

De Auschwitz, Yakov é enviado para um campo de trabalho na Alemanha que foi libertado em 1945 pelos americanos.

Segue para Bari onde fica um tempo num campo de refugiados e depois para Israel, onde viveu em Givatayim.


Casou, criou outra família.

É Zahava (*), filha desse 2º casamento, quem publica o “diário” de Rutka em 2007, com uma apresentação.

Nesse relato breve, Zahava refere o dia em que “vê” pela primeira vez a irmã e tem conhecimento da sua "existência".



Encontrara umas velhas fotografias escondidas detrás de uma roupa e impressiona-a a imagem de uma menina que se parecia com ela, abraçada a uma criança mais novinha: era Rutka que tem nos braços o irmão, Xenius.

O diário foi encontrado por Stanislawa Sapinska, na cavidade entre dois degraus das escadas de casa, onde Rutka lhe pedira que procurasse, no caso de ser deportada.
Guardou-o e lia-o de vez em quando. Mas os anos passaram, e só em 2006 o diário é publicado na Polónia.

Stanislawa contou a Zahava que costumavam sentar-se as duas no pátio da casa, na Kasernerstrass, requisitada pelos alemães quando criaram o gueto de Bedzin e cujo proprietário era o pai de Satnislawa.


Eram amigas e falavam de tudo, abertamente.

Sapinska tinha 20 anos e Rutka 14 mas, dizia ela, era uma “menina séria e madura”

Segundo Stanislawa, Rutka sabia o que se passava fora e conhecia a situação dos judeus deportados, sabendo pois o que a esperava, sem ilusões.
E que lhe dissera que estava a escrever um diário para que “ficasse” a testemunhar, já que ela não sobreviveria à guerra.

É graças ao seu diário, apesar de ela ter desaparecido, hoje nós podemos aquiescer ao seu pedido: “não esquecer, e poder lembrar um dia” a brutalidade do que viveu e viu.
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(*) Doutora em Ciências da Educação, Zahava Laskier Schetz faz parte do Departamento de Educação Científica, na Fundação Weizman em Israel

2 comentários:

  1. Não podemos esquecer nunca a que foi talvez a página mais negra da História da humanidade,e isso que infelizmente há muitíssimas!Temos que cargar com a vergonha alheia de saber até onde fômos capazes de chegar.

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  2. O problema é esquecer-se tão depressa tudo...
    bjs

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