sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Festa Grande, Aïd El-Kebir, em casa do Mustafá...


A Festa do Sacrifício, em casa do Mustafá

Um dia, o Mustafá, o nosso jardineiro, convidou-nos para passar uma festa com a família. Era o Aïd El-Kebir, a festa do Sacrifício (que seria o de Isaac por Abraão), a Grande Festa, como lhe chamam para a distinguir do final do jejum do Ramadão, o Aïd Es-seguir, a Festa Pequena.

Vivíamos em Marrocos há cerca de dois anos e habituara-me à hospitalidade dos marroquinos, à delicadeza com que recebiam, ao respeito pelos estrangeiros ou pelos mais velhos.

O que não implicava, de modo nenhum, uma forma de aceitação do outro.

Continuava a sentir, passado esse tempo, uma barreira quando tentava aproximar-me dos hábitos, sentimentos mais profundos, ou religião.

Havia como que uma zona de sombra, uma distância, um ligeiro afastamento, quase físico, uma imperceptível inclinação para trás, do busto, os olhos que se semicerravam ou se fixavam, ausentes, na distância, e deixavam de nos olhar.

Aceitámos o convite. Ele viera na bicicleta de manhã, para nos acompanhar.

Mustafá era casado com a Naïma, uma das mulheres mais belas que vi em Marrocos. De olhos escuros, sombreados pelo pó negro do khol, feições delicadas, sorriso aberto, a pele cor de âmbar, cabelos lisos castanhos, era de facto um rosto e uma figura de mulher muito agradável.

A casa ficava pouco afastada de Rabat, numa das estradas que iam para Salé.

Lembro os caminhos empoeirados, na manhã quente, de não sei que mês, até porque as festas islâmicas são móveis, devido ao calendário lunar, e as datas nunca calham nos mesmos dias no nosso calendário solar e, com o andar do tempo, mudam até os meses. No entanto, é sempre o mesmo dia pelo calendário lunar (1)...

À saída da cidade -e nos arredores- sentia-se o cheiro a pêlo chamuscado dos carneiros. Viam-se as cabeças negras dos animais, assadas nas brasas e bem tostadas, que se vendiam por todos os cantos, em pequenas vendas improvisadas. Ao lado, azeitonas de todas as cores, tâmaras, frutos secos.

Era esta a comida própria da festividade, o dia do sacrifício. O borrego era o animal sacrificado.

Passámos primeiro em casa dos irmãos de Mustafá, que viviam numas casas ao pé da estrada, com jardins que recordo cheios de flores, cobertos com trepadeiras, que davam uma bela sombra. A cunhada era uma mulher forte e simpática com grande juventude nos olhos escuros.

Fomos recebidos com doces de amêndoa, chamados "cornos de gazela" -que muitas vezes íamos comer, em Rabat, no "Café Maure", perto da Porta dos Oudaïas-, acompanhados com o perfumado chá de hortelã. Parámos um pouco, numa curta visita, e seguimos para casa do Mustafá, pouco distante.

Atrás do carro, iam agora os sobrinhos todos, em grande gritaria. Éramos os estrangeiros, ali, vestidos de modo diverso, com cabelos diferentes, uma diversão para eles que viviam no campo.

A casa ficava à beira do caminho e Naïma recebeu-nos, sorridente, como era seu costume. Vestia uma djelaba nova, de tecido acetinado cor de oiro, e um avental branco bordado com flores, por cima, os cabelos apanhados com uns ganchos.

Ia por vezes a minha casa ensinar a minha empregada Hannan a cozinhar. A Hannan só sabia cozer pão, óptimos pãezinhos redondos e espalmados com as mãos, que eu adorava comer com manteiga, logo de manhã.

A história da Hannan hei-de contá-la de outra vez.

Naïma levou-nos para a sala, onde um enorme tabuleiro sobre a mesa baixa, estava cheio de bolos, tâmaras e copos de vidro de várias cores brilhantes, onde ela veio depois deitar o chá de hortelã a ferver.

Chá verde com muita hortelã é a bebida mais refrescante que se possa imaginar!

Mas a festa trazia necessariamente o sacrifício do carneiro...

Pouco depois, fomos conduzidos ao pátio interior que todas as casas marroquinas habitualmente têm. E lá trazem o animal que berra e berra.

Quando o Mustafá segura a faca comprida e fina, recuo, não consigo olhar. Sei que lhe vai cortar a carótida e o vai sangrar. Vejo na minha frente o olhar de Naïma, o rosto ligeiramente virado de lado, talvez para não ver, mas para ela esta cena é um hábito de muitos anos, para mim é uma novidade chocante.

Ouço o sangue esguichar, vejo o sangue correr no chão caiado de branco e as manchas serem logo lavadas com o tubo da mangueira e dirigidas para uns orifícios, num dos cantos do pátio.

O Mustafá e os sobrinhos fazem uns furos na pele do borrego, junto das patas, e começam a soprar. A pele encaracolada do borrego começa a soltar-se e o corpo morto transforma-se num grande balão inchado.

Fui-me sentar na sala, enjoada.

A estranheza do espectáculo, que não estava habituada a ver, ou não queria ver, incomodou-me. Voltavam-me à memória as vezes em que, criança, fugia da cozinha, para não ver a Florinda matar as galinhas! O cacarejar delas era sempre o mesmo choque, sentia o coração bater, parecia rebentar, e ia esconder-me, no quarto.

Aqui, tinha que ouvir, mas afastei-me o mais que pude, sem ofender os anfitriões.

Bebia o chá em goles grandes e respirava fundo. Abstraí-me a ver as almofadas bordadas dos sofás baixos, os banquinhos onde quase ficávamos ajoelhados, as paredes enfeitadas com quadros bordados também.

Ao pé de mim , de olhar curioso, veio sentar-se a filha pequenina, de cabelos encaracolados e olhos de azeitona, no seu vestidinho cor de rosa, a carinha besuntada do açúcar dos bolos. Sorri-lhe, deu-me a mão, e ficámos à espera que os outros viessem.

A festa continuou, nós éramos convidados especiais, tínhamos que provar tudo, comer um pouco de tudo...

Sabia que se começava pela cabeça -a cabeça é a parte mais importante, e o que está dentro da cabeça constitui um “petisco”.

Lembro-me de estar noutra festa em Rabat, muitos anos antes, e de me terem ensinado a comer, com as pontas dos dedos, bocadinhos de miolos, o que, aliás, era óptimo.

Em casa do Mustafá comi outra vez esses petiscos e gostei. Só depois de nós comermos, eles comiam. Íamos falando, bebendo chá e comendo bolos, enquanto a Naïma continuava a cozinhar no fogãozinho ao lado.

Durou horas e horas e confesso que já não podia aguentar o cheiro das especiarias e da comida.

Mas faltava ainda a tajine de borrego com amêndoas e ameixas secas! Deliciosa, mas num momento em que eu já não conseguia engolir nada...

Penso que o que me ajudou a sobreviver ...foi o chá!

Quando voltei para casa, fui directamente para a cama.

Hoje recordo com saudades essa festa.

A Naïma voltou a nossa casa. A última vez que me lembro de a ver, estava ela sentada na minha cozinha, a chorar.

Tinham já dois filhos e percebera que estava grávida outra vez. Viera desabafar. Não queria esse filho, dizia, não podia tê-lo, não tinham dinheiro. Sabe-se lá a dificuldade que já tinham para criar aqueles dois!

Chorava, desesperava-se, a limpar as lágrimas ao avental.

Dizia-me:

- Mas porquê eu, madame? Por que me acontece isto a mim?

Ela não compreendia e só me perguntava:

- E agora, madame? O que é que eu vou fazer?...

Eu não podia fazer nada.

Depois dessa tarde, o Mustafá pareceu-me descontente. Nunca mais deixou a Naïma voltar a nossa casa. Desculpava-se que tinha os filhos, que tinha muito trabalho em casa, que não podia vir. Pensava que de um modo ou outro eu me intrometera na sua vida.

E nunca mais a vi...

A bela Naïma, o seu sorriso doce, o vestido de cetim dourado, ficou na bruma, sei que nunca mais a vou ver.

(1) O calendário islâmico é um calendário lunar, composto por 12 meses de 29 ou 30 dias, num total de 354 dias. A contagem do tempo começa com a Hégira, quer dizer, a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 16 de Julho de 622. O mês começa quando o crescente lunar surge pela primeira vez após o pôr do sol. Tem cerca de 11 dias de diferença (a menos) em relação ao calendário solar.

8 comentários:

  1. Olá
    Que beleza de relato,como sempre.
    Uma vida cheia encanta ouvir contar.
    Cordial abraço,
    mário

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  2. Gostei da festa, foi como se tivesse ido contigo, e me tivesse também enjoado...
    Deve ser bonito todo o ambiente dessas celebrações tão exóticas para nós.Entendo perfeitamente que recordes com carinho as tuas tão enriquecedoras vivências,que sabes contar tão bem.Beijinhos
    Ah!,esta noite não posso ir,verei as estrelas cair aqui,tenho a escova mal dos travões.

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  3. Termino de dar conta que em português não se diz escova,mas sim VASSOURA!!
    Nunca mais escreverei a minha língua materna em condições,sinto-me frustrada,e não é para menos:imaginar-me cruzando o firmamento montada numa..."escova",é bastante patético.Oh my God!!!

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  4. AS vassouras são das bruxas mas as escovas também servem, elas também as usam -tipo uitilitárias- não te preocupes!
    Quando vim de Itália, depois de 15 anos, fartava-me de dar erros! Ainda hoje, nada a fazer: é em italiano que me vêm mais espontâneas certas expressões emotivas -intraduzíveis em português, ou sem o mesmo "sabor"...
    Vem quando a vassoura estiver boa...
    bjs

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  5. história cheia de encanto e com pormenores muito interessantes que lhe conferem uma certa magia.
    Votarei a este cantinho

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  6. Acho extremamente importante este encontro de culturas. Ficamos mesmo chocados com as diferenças, mas acabamos nos acostumando. Linda história. Bjs

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  7. uma história maravilhosa sem dúvida!
    até dá vontade de conhecer marrocos ;)
    um livro sobre uma aventura em marrocos não caia nada mal...
    bjs
    gly

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  8. Marrocos é uma terra que vale a pena conhecer! Ainda tenho mais histórias para contar... Mas uma aventura em Marrocos, Gly, essa era muito complicada, não sei o suficiente.
    Por acaso um dos filmes mais terríveis do Hitchcock passa-se em Marrocos: "O homem que sabia demais..."
    Beijos

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