Todas as manhãs, o
Ratinho parece olhar-me um pouco de lado, quando vou dar os bons dias aos três amigos. Encostado
à madeira da escrevaninha, parece mergulhado em pensamentos profundos. É sempre o
primeiro a acordar, mas fica na cama a pensar.
O Ouricinho diz “bom
dia, bom dia!” e salta logo da caminha –uma
espécie de saco-cama que lhes arranjei para o Inverno, numa bolsinha dos meus
bâtons- e vai espreitar à janela para ver se chove ou se está sol.
- Chove outra vez,
Ratinho! Que maçada...
O Ratinho Poeta não responde. Olha para mim com uma expressão triste, diria mesmo, ofendida.
- Bom dia...
E volta aos seus
pensamentos. A gatinha japonesa é sempre ela-própria e gentil, com chuva
ou com sol. Pega na malinha de mão, alisa o kimono cor de rosa e azul e
cumprimenta-me sempre com delicadeza e uma ligeira vénia.
- Bom dia, minha amiga...
Sorrio. Figurinha
etérea e sorridente, guardando lá no fundo de si a dor ou as ofensas da vida, parece-me
saída de um romance do Kawabata ou do livro -que agora estou a ler- de Lafcadio
Hearn, "O Japão".
Katsushika Hocusai
- Bom dia, Shôshô San, respondo, a pensar na
Madame Butterfly do Puccini. Ou na suavidade do quadro de Sinshui Itô...
Sinshui Itô, Noite de neve
E lá vai ela para junto
do Ouricinho, aos saltinhos, e põem-se logo a conversar.
Entendem-se melhor
estes dois, talvez porque ainda são crianças. E o Ratinho? Bem, para eles o
Ratinho é o Mestre e ela tem um grande respeito pelo Poeta. Chama-lhe sempre “Ratinho
San”.
Yosa Buson, Haiku
Por que estará
zangado o Ratinho? Pelo menos, está triste... Será culpa minha? O que teria eu feito?
É verdade que os dias
cinzentos nos enervam e isso não ajuda às relações humanas.
"Mas se fosse só no tempo do Inverno..."
Ele é um sensitivo, um susceptível, um mimoso e presumo que acha que não
lhe estou a dar a atenção devida.
"Sim, o Ratinho é um egocêntrico. Não admira,
ele é um Poeta, um Artista!", penso para mim.
Uma coisa engraçada é
ver que, apesar de egocêntrico, não é narcisista – sentimentos que, por vezes,
coincidem na mesma pessoa. Não, o narcisista cá da casa é o Ouricinho!
O que ele adora
perguntar-me:
- Estou bonito hoje?
Põe um lacinho ao
pescoço ou nem isso, penteia-se com a patinha ao espelho e fica à espera.
Eu respondo-lhe :
- Estás lindo, meu amor!
Ele chega-se para mim
e pergunta:
- Cheiro bem? Cheira
aqui no pescoço...
- Umm, que bem que
cheiras!
E não minto, ele cheira sempre bem!
O Ratinho é
diferente, claro. Dá uma certa importância à sua aparência, talvez seja um
pouco convencido de si, mas não tem a mania das toilettes, é simples.
"E é sempre tão generoso! Por que estará ofendido?"
Não me sai da cabeça a pergunta, apesar de saber que
sei a resposta demasiado bem: é a sua susceptibilidade (se estivesse em Itália,
diria dele: “è permaloso!”, mas como traduzir?). A exigência de ser o preferido, o medo que se
esqueçam dele, menino abandonado que foi.
Ouço-o dizer, baixinho:
- Agora não me falas, pela manhã?
- Eu?
Espanto-me. Mas com um certo
sentimento de culpa porque o tenho deixado mais sozinho. Há sempre preocupações
que nos distraem a atenção que deveríamos aos
amigos, e isso é no fim e ao cabo, indesculpável.
O Ratinho “fareja”
tudo com aquele narizinho que ele tem sempre no ar, a ver o que se passa!
Ele é muito meu
amigo, tem uma dedicação por mim desde que o trouxe para casa um dia. Sei que pressente
que ando preocupada.
- Andas bem? O que
disse o médico da última vez?
-Oh, Ratinho, estou
bem!
- Andas longe,
distraída. Não me falas da mesma maneira. Não me dás atenção...
O desabafo saiu-lhe
de repente, e eu nem esperava nada do género: ele costuma ser mais reservado nas
suas emoções.
- Ó, Ratinho! Não é
verdade! Faço o que posso. Vês-me sempre a andar daqui para ali...
-Não paras, é
verdade. É disso que eu não gosto! Tens de estar sossegada!
E, logo, ansioso:
- É por causa da
crise? Têm problemas?
- Por quê, Ratinho?
- Ah, tu bem sabes.
Dizem que a crise está a dar cabo das pessoas, das vidas de toda a gente.
- Ai dizem? Onde
ouviste?
Como teria ele ouvido
estas coisas todas? Claro que do Ratinho eu espero tudo! Com o seu modo silencioso, de nariz no ar, anda sempre a bisbilhotar tudo.
Espreita a
televisão, lê os meus livros, vai à internet. É um perigo! Queria sossegá-lo mas não sabia como.
- A crise? Sim, a
crise preocupa-me...
- Há gente com fome. Tens
cá comida que chegue para todos? E queijo?...
- Tenho...
Ele acenou com a cabeça
várias vezes, enquanto dizia:
- Sim, preocupo-me
muito! E quando não me falas, é pior! Ele...
E apontava para o
Ouricinho que continuava à janela e agora dava cambalhotas, a rir-se.
- Ó Shôshô, viste
aquele com o guarda-chuva virado ao contrário? Hihihi! E a mulher que anda ali
às voltas.
- É o vento...
E riam os dois às
gargalhadinhas.
O Ratinho continuou:
- Ele... sim, ele é uma
criança! Tudo o faz rir e só quer brincar, na vida. Não se interessa pelos
problemas sérios. Não vês as brincadeiras que ele tem? Tudo lhe serve para brincar!
- Deixa-o ser assim...
Sabia bem o que o Ouricinho adorava divertir-se. E fazia ele muito bem!
- Tu também és jovem, Poeta!
Não te deixes levar pelas coisas sérias da vida! O que te faz falta? Não és
feliz aqui em casa?
Agitou-se todo, cheio
de uma indignação sincera.
- A vossa casa é a
minha felicidade absoluta!
Pus-lhe a mão no
ombro, com ternura. Fiz-lhe festinhas na cabeça, comovida.
- Esta é a tua casa,
Ratinho! E terás sempre aqui o teu lugar!
Vi uma lágrima no
olhinho dele. Deu um suspiro de alívio, daqueles grandes que ele gosta de dar.
-Bem, então posso
ficar descansado? A crise ainda não chegou cá? Obrigada pela nossa conversa. Estava muito angustiado, sabes?
Eu gosto muito de vocês...
- Eu sei, Ratinho, eu
sei. Não deves agradecer nada. Foi muito bom para mim falar contigo.
- Anda cá, está a vir o
sol!
Era o Ouricinho,
sentinela do tempo.
- Chamas a isto sol?,
perguntou o Ratinho, que foi logo ter com eles, a protestar. Julgas que estás na praia?
- É sol! Eu sei que
vem aí o sol!
- Isto não é nada..., contrariou o Ratinho. Não vês como está o nosso jardim com tudo queimado pela geada. Tudo caído! As roseiras não têm flores, nem folhas! Qual
sol!
Ia começar uma discussão... Decidi ir para a sala e deixá-los!
- Não me interessa, é
sol! É sol!, teimava o Ouricinho, de mão dada com a gatinha.
E eu ia pensando que
o Ouricinho é que fazia bem em viver o instante insubstituível, o momento, o
átimo, o respiro de cada dia...